É preciso andar muito distraído na vida para não ficar azamboado com o que se vê daqui: todo o vale glaciar do Zêzere, os contornos mais altos da montanha, a vila de Manteigas aos nossos pés, terras espanholas nos dias mais limpos. Estamos no hotel desenhado originalmente pelo arquiteto Rogério de Azevedo, pioneiro da arquitetura modernista portuguesa, ao quilómetro 49 da Estrada Nacional 232, a 1 250 metros de altitude, pendurados sobre a paisagem delineada por 20 mil anos de degelo. Esmagados, azamboamo-nos e, na verdade, reduzimo-nos à nossa pequena, grande, enorme insignificância.
O hotel leva o nome da capela que existe por perto, do século XIV, e que está rodeada de carvalhos com mais de 400 anos. Chama-se Casa de São Lourenço porque os donos assim o quiseram: “A ideia é termos casas e não hotéis; as casas são mais familiares.” Sucessora da pousada do Secretariado Nacional de Informação (SNI), dos tempos da outra senhora (literalmente, a inauguração ocorreu em 1948), a casa reabriu, remodelada e ampliada, em outubro de 2018, pelas mãos de João Tomás e de Isabel Costa, também proprietários da Casa das Penhas Douradas, que andam há anos a mudar a serra da Estrela – para melhor. João faz questão de dizer que não constroem nada de novo. “Recuperar o passado é a nossa missão aqui. Só pegamos em património. No Centro de Portugal, não é necessário construir nada. Apenas precisamos de recuperar”, afirma este adepto das caminhadas que não parece arrependido de ter trocado a advocacia pela montanha.
Uma loba, uma flor e uma estrela
Na Casa de São Lourenço, com os ateliers P-06 e Site Specific Arquitetura, acrescentou-se-lhe uma parte nova, onde estão os quartos com as janelas mais rasgadas para o vale. No total, contam-se 21, incluindo quatro suítes. Na zona que já existia, entre granito e madeiras, aproveitou-se tudo o que havia para aproveitar, nomeadamente a herança de Maria Keil que, nos anos 40 do século passado, se responsabilizou pela decoração dos interiores. Foram restaurados alguns dos móveis criados pela artista (casada com outro dos mais conhecidos arquitetos modernistas, Francisco Keil do Amaral) e, um pouco por toda a casa, encontram-se agora reproduzidos os três elementos desenhados por Maria Keil: uma loba, uma estrela e uma flor.
Maria Keil lembrou-se do trabalho a canivete dos pastores da serra da Estrela, numa inspiração de uma delicadeza sem fim, à qual, ainda hoje, não é possível ficar indiferente. O objetivo de João Tomás também é, explica, conseguir chegar aos clientes que valorizam a paisagem em que a Casa de São Lourenço está inserida – “que se afastam e que mergulham. Que se deixam tocar e acarinhar pela Natureza”, acrescenta.
Por isso, nas estadas, está sempre incluído um passeio pedestre, sob orientação de Luís Cunhal, responsável pelas atividades ao ar livre dos hotéis do grupo Burel Mountain Hotels. Sugere-se, por exemplo, o da Rota das Faias (cinco horas) ou o da ligação entre as duas casas (Penhas Douradas e São Lourenço). Neste último, com uma duração de quatro horas, passa-se por alguns dos chalets mais bonitos da serra e pelo Fragão do Corvo, um miradouro de que ninguém se esquece. Todos os dias, para os hóspedes que estiverem interessados, é ainda organizada uma visita à Burel Factory, a antiga fábrica que João e Isabel levantaram das cinzas, recuperando operários, teares centenários, artes e ofícios a caminho do esquecimento.
No regresso dos passeios, manda a tradição haver lanche, isto é chá, scones e bolo caseiro à discrição, que é assim que se tratam os que vêm por bem. Ao jantar, na sala das refeições, está acesa a grande lareira com fogo de chão; no teto, uma instalação em burel, o tecido em lã que domina quase toda a casa. São seis mil estrelinhas em burel amarelo-torrado que formam um céu estrelado tão bonito quanto o de lá de fora.
Casa de São Lourenço > Estrada Nacional 232, km 49,3, Campo Romão, Manteigas > T. 275 249 730/96 828 5937 > a partir de €185

Nas estadas na Casa de São Lourenço, está incluída uma visita guiada à Burel Factory, no centro da vila de Manteigas
Créditos: Rupert Eden
Aqui à volta
Locais que, na região de Manteigas, merecem a visita
1. Centro Interpretativo do Vale Glaciar do Zêzere
Criado em 2013 na antiga Casa do Guarda Florestal, o centro interpretativo possibilita uma viagem de balão ao longo dos 13 quilómetros do vale glaciar do Zêzere. Através de representações 3D, compreende-se melhor o fenómeno da glaciação e, nos quadros interativos, há explicações sobre percursos pedestres, fauna e flora da região. Bom programa para pais e filhos. Fonte Santa, Manteigas (junto ao viveiro de trutas) > T. 275 981 113 > qua-sex 10h30-12h30, 14h-17h, sáb-dom e feriados 10h-12h30, 14h-17h (horário de inverno) > €1 (adultos), €0,50 (10-18 anos), grátis até aos 9 anos
2. Loja Burel Manteigas
É uma das quatro lojas Burel (existem mais duas em Lisboa e outra no Porto). Localizada junto à antiga Sotave, hoje Burel Factory (também recuperada pelos proprietários da Casa de São Lourenço e da Casa das Penhas Douradas), nela podem encontrar-se muitas das peças da marca: sapatos, malas e mochilas, mantas, fundos de cama, almofadas, bancos e cadeiras… A recomendação não é apenas para comprar, também serve como visita a um exemplo de património português bem preservado. Amieiros Verdes, Manteigas > T. 91 328 5370 > seg-sex 10h-17h, sáb 10h-13h
3. Restaurante Soadro
Seja pela comida, seja pelo atendimento, é difícil uma ida ao Soadro correr mal. Da ementa costumam constar, além dos queijos e enchidos da região, truta, cabrito, bacalhau assado e uma vitela no tacho irrepreensível. O serviço é amabilíssimo e, no final, o buffet de doces, uma gulodice (leite-creme, arroz-doce, abóbora com requeijão…). Estrada Nacional 232, Valhelhas > T. 275 487 114 > ter-sáb 12h30-22h, dom 12h30-16h