Juliana e Eduardo, um casal de brasileiros na casa dos 70 anos, apreciam a montra da Sant’anna, na Rua do Alecrim, em Lisboa. Conhecem bem os azulejos e as peças de cerâmica, que se vendem também “lá no Brasil”. O que não sabem é que a loja, a poucos meses de comemorar o seu centenário, tem os dias contados porque o edifício, propriedade do grupo Visabeira (com negócios do turismo à indústria), vai ser convertido num hotel.
É no número 95 daquela rua que funciona, desde 1916, o principal ponto de venda da Sant’anna, a última fábrica de azulejos e faianças feitos à mão de Lisboa, e cuja atividade teve início ainda antes do Terramoto (1741). “A loja faz parte da história da fábrica, vem referenciada em livros e guias, recebemos aqui pessoas de todo o mundo”, salienta Francisco Tomás que, aos 25 anos, assume o cargo de diretor comercial da Sant’anna. Ao todo são 30 os empregados, muitas gerações de famílias, que vão perpetuando no tempo um saber que não vem nos livros. Como a intensidade da pincelada de tinta de água que se dá no azulejo e que, depois de ir ao forno, ganha outros tons. Ou a capacidade de manter a temperatura certa da cozedura, sob pena de estragar a fornada.
Ao fecho iminente da loja da Sant’anna, soltaram-se as vozes em sua defesa. Foi o caso do movimento cívico Fórum Cidadania LX, que apelou a que o projeto de construção do hotel fosse reformulado de forma a permitir a manutenção da mesma. Entre os assinantes da carta, enviada ao promotor e à Câmara Municipal de Lisboa, está Carlos Leite de Sousa que, “farto de ver este tipo de lojas a fechar”, decidiu criar o Círculo de Lojas de Carácter e Tradição de Lisboa, em conjunto outros seis elementos do Fórum Cidadania. “O nosso objetivo é ajudar a preservar as lojas com mais de 50 anos que reúnem várias características – como seja o património arquitetónico ou a venda e produção de artigos de excelência -, e a manter a sua atividade económica até porque o tipo de consumo mudou bastante”, explica.
Destinatários da ordem de despejo, enviada em abril pelo grupo proprietário da Vista Alegre, foram também a loja de iluminação Ana Salgueiro, e o restaurante Das Flores, já na rua que lhe dá nome. Contactada pela revista VISÃO, a Visabeira alega, através de José Arimateia, das Relações Públicas do grupo, que “o estado de degradação do imóvel é evidente e a construção da infraestrutura hoteleira implica, tanto do ponto de vista técnico como legal, que sejam realizadas obras de remodelação e restauro profundos”. Acrescenta ainda que as obras do futuro hotel “implicam vários tipos de intervenção que oferecem perigo para a segurança das pessoas, sobretudo, dos atuais inquilinos de frações do imóvel”.
O projeto de arquitetura foi aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa, tendo o município, em janeiro deste ano, comunicado à Vista Alegre, uma das empresas do grupo, a sua decisão. Por ser um edifício inserido num conjunto de Interesse Público da Lisboa Pombalina, os trabalhos vão centrar-se, esclarece a Visabeira, “na reformulação interior dos espaços e percursos, adaptando-os a quartos, suites, zonas de estar e zonas técnicas e de serviço”.
As obras do novo hotel, que a Visabeira diz ser inspirado na obra de Bordalo Pinheiro e no património da marca Vista Alegre Atlantis, deverão estar concluídas no final de 2016. Entretanto, os inquilinos do edifício não sabem o que lhes irá acontecer. Todos contestaram, através dos seus advogados, a denúncia do contrato de arrendamento, têm as rendas pagas e, apesar de o prazo para o despejo terminar no próximo dia 8, ainda não receberam resposta a essa contestação. “A nossa postura não é radical, ao ponto de dizermos que daqui não saímos. Estamos abertos à negociação, a reconfigurar o espaço da loja se necessário for”, diz Ana Salgueiro. “A minha loja não tem a história da Sant’anna, mas, à sua maneira, também é uma loja única e o hotel poderia beneficiar com ela”, defende Ana Salgueiro, para falar da loja de iluminação contemporânea com peças de mobiliário antigo, que preserva a ligação ao antiquário aqui aberto pelo seu pai em 1967. “Sabemos que não temos a Lei do nosso lado, mas vamos lutar até ao fim”, diz, por sua vez, Francisco Tomás, diretor comercial da fábrica Sant’anna.
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