A vida não é fácil, nem nas histórias infantis. A menina órfã, que vivia com os tios e se viu perdida na Terra de Oz, após um ciclone, não encontrava o caminho para casa. Teve a “sorte” de conhecer companheiros de jornada que, como ela, andavam à procura de um mágico para obterem respostas: o espantalho queria pensar, o homem de lata precisava de um coração e o leão, de coragem. Juntos venceram tormentas e descobriram as respostas. Elas não estavam no mágico, mas dentro deles, como na canção Além do Arco-Íris, tocada com frequência em cerimónias fúnebres.
Dito de outro modo, cada dificuldade ou perda envolve sentimentos de desorientação, melancolia e, também, o anseio por dias melhores, sabendo que não estamos sós, entregues à nossa sorte.
Quando se fala de temas difíceis, a morte surge no topo da lista pelo seu caráter definitivo, embora nem sempre seja assim nos livros, filmes e séries infantis. Na escala de stresse desenvolvida pelos psiquiatras norte-americanos Thomas Holmes e Richard Rahe, nos anos 1960, a morte do cônjuge, o divórcio, a prisão, a morte de um familiar e os acidentes e doenças graves foram identificados, numa lista de 43, como sendo os cinco acontecimentos de vida mais stressantes (um novo elemento na família surge em 14º lugar, as discussões no casal em 19º e a mudança de casa ou de escola ficaram nas 32ª e 33ª posições).
Por mais difícil que nos pareça uma situação, “não há conversas impossíveis, elas podem é demorar mais um bocadinho”, avança o psicólogo clínico e secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança, Manuel Coutinho. O segredo está na capacidade de “conter as angústias das crianças e filtrar a informação que se lhes dá, percebendo antes o que elas já sabem sobre determinado assunto”.
O que não deve fazer
Abordar assuntos difíceis, como a morte, o divórcio e outros temas da vida que envolvem sentimentos, dúvidas e receios, é um teste às competências dos pais. Eles são uma referência para os filhos, que esperam encontrar neles um porto de abrigo. Saiba o que é de evitar, segundo os especialistas
Desvalorizar
Passar por cima do que sentem, “são crianças, não percebem”, humilhando-as, ou não as levando a sério
Mascarar a dor
“O cão morreu, eu dou-te outro”, “Estás triste? Esquece lá isso”. Tapar o desconforto faz a criança sentir-se mais só
Fugir às respostas
“Agora não”, “pergunta ao pai / mãe” ou fingir que não a ouviu contribui para que ela não recorra a si da próxima vez
Transferir mal-estar
Falar num tom descontrolado e descarregar angústias, comum em situações de divórcio, assusta e causa danos nas crianças
Confundi-las
Ocultar a verdade ou mentir pode gerar perda de confiança. Se a informação for muita, tende a causar desorientação
Perguntar e ensinar a pensar
No caso da morte – e “não há boas maneiras de se dar más notícias” –, é preferível fazer um paralelismo com o que se sucede na Natureza, em vez de inventar histórias, ou seja: “falar com verdade e clareza, para que os miúdos não percam a confiança nos adultos”. A melhor forma é “dar a informação com perguntas e complementar as respostas em função da idade e da maturidade das crianças”, continua Manuel Coutinho.
Ao contar aos pais que o amigo está triste porque o cão dele morreu, será sensato indagar, “então, o que é para ti a morte?” e, consoante o que o filho responder, acompanhá-lo com novas perguntas. “A ideia é ensinar a criança a processar o que sente, a pensar e a chegar às próprias conclusões”, sem cair na armadilha do “tens razão” ou “não tens razão”.
Lembrando que os adultos já foram crianças e que elas nunca foram adultas, o psicólogo sublinha a importância de “prestar atenção e de ouvir até ao fim”. Em momentos de tensão, o melhor é mesmo adiar a conversa para uma altura mais propícia.
O lema também se aplica aos mais crescidos: embora possam adotar atitudes rebeldes (no plano cerebral, predomina a amígdala em relação ao neocórtex, onde se processa a reflexão), “os adolescentes tendem a acomodar o que as figuras de referência lhes transmitem, desde que se sintam respeitados”. Isto significa espaço para serem ouvidos e expressarem diferenças de opinião, sem recearem ser alvo de julgamentos.
Infelizmente, os filhos nem sempre podem contar com o apoio dos pais quando dele mais precisam, como sucede, com frequência, nos casos em que os pais decidem pôr fim à relação conjugal. “Pior do que um divórcio é a forma como muitos o fazem”, adianta o clínico, referindo o clima de guerrilha e de humilhações constantes em que os adultos se esquecem de que “os descendentes não só deixam de ter os pais juntos como perdem o próprio espaço”.
É imperativo que os respeitem, se alinhem com eles e identifiquem aquilo que os assusta, pois, “se criarem a ideia de um mundo mau, os filhos passam a viver num estado de atenção permanente, como se estivessem sempre a ser ameaçados”.
Conversas sérias
“Mudar de cidade, por exemplo, pode não ser difícil para um adulto, mas para uma criança ou um adolescente, sim”, observa a docente na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Maria Filomena Gaspar. A especialista defende uma “parentalidade sensível”, ou seja “a qualidade da relação com cada filho, levando em conta as suas necessidades e o seu temperamento”.
Parece fácil, mas nem sempre o é: “Nas sociedades individualistas, coloca-se muita responsabilidade nos pais, espera-se que eles – sobretudo os mais escolarizados – tenham competências para resolver questões difíceis.” O divórcio é uma delas, na medida em que muitos não foram educados para comunicá-lo à prole. “É preciso preparar a conversa e não vale a pena falar com os filhos sem se chegar a acordo sobre coisas básicas, como com quem vão viver ou se vão ver os avós”, elucida. Sem isto feito, “as crianças correm o risco de ter sérios danos no seu desenvolvimento e de ver afetada a sua saúde mental”.
O recém-criado programa Crianças no meio do Conflito conta com 60 profissionais e pretende criar as bases para uma “coparentalidade cooperante” em famílias que estão em processo de divórcio conflituoso. Nas oito sessões de formação, em regime semanal, o treino de competências inclui a análise de vídeos com atores a simularem situações difíceis e tristemente familiares.
Por exemplo, uma filha chega a casa e diz “estou cheia de fome”, o que é o bastante para ativar as defesas da mãe: “Não me digas que vieste sem jantar da casa do pai! Eu não sou tua criada”, e por aí fora. A meta é “sintonizar-se com as emoções da criança e aprender estratégias para regular as suas e pensar com sensatez”.
Lidar com assuntos sensíveis implica disponibilidade, honestidade e clareza. “A uma criança de 4 anos que, após mais uma discussão, pergunta ‘mamã, o papá já não gosta de ti?’, importa explicar que, às vezes, os adultos dizem coisas que não deviam e devem pedir desculpa por isso”. Outra situação é os pais estarem separados de facto, mas ainda coabitarem. Neste caso, será pertinente dizer algo como “o papá e a mamã já não são namorados e cada um vai passar a dormir no seu quarto”, até resolverem as questões logísticas, aconselha Maria Filomena Gaspar.
Em qualquer dos casos, é fundamental “não fazer de conta, fingindo que está tudo bem”, para os poupar ao sofrimento, ou ainda confundir papéis, como tantas vezes acontece através das ações, que contam tanto ou mais do que as palavras e geram confusão na identidade das crianças. A docente deixa bem claro que o território das crianças deve ser preservado: “Não pode haver indefinição sobre qual é o quarto dos pais e o quarto dos filhos.”
Uma vez tomada a decisão, cabe aos dois comunicá-la, “num espaço seguro e sem pressões de tempo, a fim de permitir aos filhos fazerem perguntas”. Falar na primeira pessoa e identificar emoções é outro requisito indispensável. Por exemplo: “Estou triste porque vou dizer-te uma coisa que também pode ser triste para ti; o pai e a mãe não vão continuar casados, mas continuam a ser os teus pais, só que vão viver em casas separadas.”
A este respeito – as responsabilidades parentais – a psicóloga faz saber que “é de uma crueldade imensa perguntar a uma criança em idade escolar o que ela acha”. A partir da pré-adolescência, quando o grupo de amigos passa a ter um peso determinante, pode fazer sentido indagar se preferem uma semana com cada um ou de outra forma, nomeadamente se a residência de um dos progenitores ficar longe”.
O que precisa de ter em conta
Cada filho é único e, na hora de tocar em assuntos sensíveis, pode ser necessário adaptar a linguagem ou o tipo de abordagem que funcionou com um irmão, quando tinha a mesma idade. Ir ao encontro da criança, com sensibilidade, e estar presente, de forma genuína, faz toda a diferença
Preparar-se antes
Planeie a conversa, antecipando as perguntas da criança e tendo em conta a sua idade, maturidade e temperamento
Disponibilidade
Procure um sítio seguro, certifique-se de que tem uma postura calma e tempo para proporcionar a conversa, sem interrupções
Ouvir, perguntar
Coloque questões abertas, como “O que farias nessa situação?” e ouça até ao fim, dispondo-se a voltar ao assunto mais tarde
Validar sentimentos
Acolher o que a criança expressa e sintonizar-se com o seu estado emocional, dizendo algo como: “Sei que estás triste”
Dizer a verdade
Mensagens simples, claras e que a criança perceba tranquilizam e inspiram confiança, até mesmo um genuíno “não sei”
Não há receitas
Da mesma forma que não há uma família igual à outra, cada filho é um mundo por descobrir, que se atualiza na relação com os pais, os irmãos, os amigos e o meio onde cresce. Em meados do século XX, o crescimento dos estilos parentais afetuosos coexistiu com os adeptos do estilo firme (nem autoritário nem permissivo) que contemplava o “não com confiança”, permitindo às crianças lidarem, de forma saudável, com as suas emoções e o conflito.
Numa sociedade mais complexa e digital, compara-se, categoriza-se e aponta-se o dedo aos pais. Dos “cangurus” (nunca largam as crias) às “escavadoras” (colocam-nos numa redoma), passando pelos “helicópteros” (vigiam os filhos em demasia), não admira que eles se sintam perdidos e sem bússolas no oceano informativo das horas difíceis, como o luto.
“Quase que preferem ficar sem um braço do que falar com os filhos”, afirma a psicóloga clínica e investigadora Ana Valente. Aqui, dar-lhes balizas faz toda a diferença: “Não é benéfico querer protegê-los e esconder ou, pelo contrário, dar informação em excesso.”
Até aos 6 anos, as crianças ainda têm pensamento mágico e encaram a morte como reversível, como nos desenhos animados. Acolher, sim; recorrer a metáforas, nem por isso: “Pode confundi-las dizer que o avô foi para o céu; mesmo que custe horrores, é melhor reconhecer que a doença e os acidentes podem tirar a vida a quem amamos, que a pessoa desapareceu e que isso causa dor, é triste e podemos chorar.”
Uma vinculação segura permite falar de tudo, dos conflitos à violência, passando pelo racismo e outras questões sensíveis. “Perguntar-lhes como correu o dia na escola abre caminho para eles, ainda sem filtros, trazerem estes assuntos, criando-se a oportunidade para explicar o que o outro pode sentir, orientar e passar valores, mas sem apontar o dedo.” A docente do ISPA – Instituto Universitário frisa que “nenhuma pergunta deve ficar sem resposta”, seja sobre bullying, sexualidade ou pornografia. Estar atento a alterações do sono ou do apetite e ser um porto de abrigo sereno é o grande desafio: “Se não os ouvem, eles não se farão ouvir e fecham-se no quarto; o seu silêncio conta mais do que as palavras.”
Os especialistas são unânimes: a perda, ou a morte é a questão mais difícil de abordar. “Temos de transmitir tranquilidade, e não ansiedade”, sublinha o pediatra Paulo Oom, e acrescenta: “Não há receitas, há que adaptar o discurso à fase de desenvolvimento e personalidade da criança e ensaiar o que se vai dizer.” Se sentem falta de jeito ou se têm dificuldades, a solução pode passar por uma ajuda externa à família, sobretudo em face de acontecimentos traumáticos, como descobrir que a criança tem cancro e ter de dar a má notícia aos irmãos.
Lembrando que “as crianças têm uma capacidade de adaptação superior à dos adultos”, o médico admite que o que custa mais é dar o primeiro passo. E sossega os pais: “Não precisa de ser perfeito, pode fazer-se dias depois e talvez implique mais do que uma conversa, porque o luto é um processo; viver sem a presença do outro é algo que se aprende com o tempo.”