1. de Novembro de 1755
Querido diário,
Este dia de trabalho foi especialmente interessante para mim. Hoje de manhã, depois de acordar, dediquei-me um bocadinho às torturas matinais. A seguir, entrei na barca para ir buscar mais recém-mortos. Estava ansioso por surripiar mais uns ao Anjo, por debaixo do seu nariz. Às vezes, quase sinto pena dele. Tantos mortos a chegar, e tão poucos que ele leva…
Por falar no Anjo, ouvi dizer que arranjou um novo amigo recentemente: Joane, um parvo que não há maior, mas que é exímio a ver os pecados das almas. Desde que ele bateu a bota e fez uns comentários atrevidos aos condenados, ele e o Anjo dão-se muito bem.
De volta ao dia de hoje: Quando entrei na barca e abri a lista dos que iam morrer hoje ou já o tinham feito, quase entornei o meu café infernal de espanto, pois a lista era enorme, com milhares e milhares de nomes. Numa nota à parte estava escrito que era por causa de um terramoto em Lisboa que devia estar a começar por esta hora. Depois do choque inicial, porém, fiquei bastante contente, pois percebi logo que a colheita seria boa. Praticamente toda a gente aqui estava destinada ao Inferno. É que, verdade seja dita, toda a gente é incrivelmente pecadora. Só mesmo aqueles que são demasiado parvos para perceber o que fazem e aqueles que são ilibados por fazerem um grande seviço ao chato do Deus. Bem, ainda há o ocasional frade que segue as regras, mas isso é muito raro.
Como sempre, cheguei por volta das dez horas, mas já havia uma grande multidão à espera de serem levados. Não pude deixar de me rir do Anjo, que já lá estava, bastante desesperado, com tantos mal-aventurados a tentar entrar na barca à força. Joane não era grande ajuda, a gritar pragas para a multidão.
Mal eu cheguei, começou o reboliço também para mim. Pus-me imediatamente a ouvir vinte argumentos de cada pessoa a dizer por que razão não merecia ir para o Inferno. Havia de tudo: fidalgos arrogantes, frades infiéis, onzeneiros gananciosos. Eu lá os fui conduzindo à minha barca, levando também algúns parvos, mártires e homens honestos pelo caminho, como quem não quer a coisa. Mas de cada vez que estava a fazer estes últimos entrar na barca, aparecia-me imediatamente esse Joane com insultos tão obscenos que este papel iria arder imediatamente se eu os escrevesse aqui. E eu, que remédio, era forçado a entregar os malditos benditos.
A partir de certo ponto, sabe-se lá por que cargas d´água, a gente começou a chegar toda molhada. Fiquei bastante chateado, porque isso ia significar que alguém ia ter de limpar a barca a seguir. Não eu, mas o meu companheiro, que desse modo já não me podia engraxar as botas enquanto eu bebia o meu café da noite. Precisei de um monte de viagens para levar toda a gente, ao passo que na barca do anjo ainda sobrou espaço, mas enfim consegui.
Hoje à noite, parece que o Inferno está mais animado do que o costume. Não que isso me interesse muito – estou de mau humor por as minhas botas continuarem sujas; o meu companheiro aínda não acabou de limpar a barca.
Agora, já só vou torturar um bocadinho o Dom Anrique, por causa da maldita carta de reclamação que enviou e que eu tive sorte em conseguir intercetar (teria arruinado a minha reputação se a carta conseguisse passar), e depois vou-me deitar. Boa noite.