Todos os verões falamos sobre o nível de água das barragens. Se chega para dar de beber aos animais de pecuária, como o gado… Se é este ano em que teremos de racionar água para usos essenciais (e proibir lavagem de carros e de ruas, rega usando água potável, etc…). Questionamos as origens de tal acontecimento, se é devido às culturas de irrigação intensiva, ou excesso de turismo e uso de água per cápita, menor precipitação annual… Uns anos permitem mantermos a cabeça fora de água enquanto noutros tomamos medidas drásticas e temos tanques de bombeiros a transportarem água para zonas de maior necessidade. E cada vez que temos anos consecutivos de seca começam as vontades de começar a negociar a escassez das àguas transnacionais entre Portugal e Espanha, mas também entre regiões e municípios.
A questão é que a água é um elemento dinâmico, sempre movendo-se de um estado para outro (sólido, líquido, gasoso), armazenando-se nos oceanos, nas calotes polares, nos rios, nos aquíferos, nas nuvens, etc… No entanto, esta é apenas a água azul, branca e transparente. Sim, a água tem muitas outras cores. É vermelha quando circula na maioria dos animais. Quando no solo, é castanha, barrenta, irrigando os microorganismos do solo e as raízes da flora que cresce à superfície da terra. É verde quando está armazenada na flora aérea (ramos e folhas), permitindo servir de transporte entre a àgua subterrânea e a atmosfera, por vezes promovendo uma maior precipitação local, devido a esse aumento de humidade, associado a uma maior percentagem de partículas de nucleação de humidade (como o pólen e esporos de fundos) que permitem com que as gotas de água se formem e ocorra precipitação. “Sim, as florestas promovem chuva.”
É verdade que os mais recentes cenários climáticos para a zona sul de Portugal indica que poderemos ter perdas de mais de 7% por década de precipitação até ao final deste século. A concretização de tal cenário terá um resultado desastroso, levando a que grande parte dos ecossistemas que conhecemos, como o montado e sistemas agrosilvopastoris, na diversidade e produtividade que conhecemos, não terão condições de sobrevivência e muito menos de desenvolvimento.
Em 2024, e nos anos vindouros, podemos tomar uma de três medidas:
1) Aceitar o que os cenários nos indicam e iniciar uma adaptação às alterações climáticas que promovem a substituição atempada e adequada para espécies adaptadas (ex, como os figos-da-índia) a um clima semiárido daqui a poucas décadas, e das quais podemos ter algum benefício socioecológico e económico (permitindo a permanência de comunidades humanas nesses territórios mas que vai reduzindo ao longo das próximas décadas);
2) Abandonaremos gradualmente esses lugares que se tornaram propícios ao instalar de painéis fotovoltaicos e geradores eólicos face à mortalidade e morbilidade da floresta autóctone, assim como das monoculturas de pinheiro, eucalipto e outras de rega mais intensiva, como é o caso dos abacateiros. (E lembro que continuam a ocorrer cortes ilegais de árvores autóctones protegidas como o sobreiro, para que alguns destes projetos acima mencionados sejam actualmente implementados. Ou seja, quanto mais necessitamos que estes seres vivos estejam saudáveis e as suas florestas se tornem viveiros reais para uma reflorestação em massa, mais vulneráveis estes sistemas estão na luta contra a transição energética “verde”.);
3) Aceitamos os cenários pelo que são e alteramos as suas premissas, considerando que o ser humano, as organizações e as políticas internacionais, nacionais e locais têm uma capacidade suficiente ou mesmo elevada de promover e sustentar uma forte reflorestação de floresta autóctone (exemplo: projetos rewilding e agroflorestais) e forte produção de solo (através de processos de compostagem), favorecendo florestas maduras daqui a poucas décadas, se bem geridas. Uma das florestas que tive o privilégio de conhecer é a floresta privada do Vale das Amoreiras, promovida pela Rewilding Sudoeste, em Aljezur. São 53 hectares, dos quais mais de 10 são uma floresta densa, alta, madura e cujo meu ser sentiu uma presença maior, um ecossistema saudável e vibrante (em pleno verão). A associação Rewild Sudoeste defende que renaturalizar “não significa plantar” árvores, mas sim “permitir que a natureza siga o seu curso” e ajudar na sua conservação, quer seja eliminando espécies exóticas ou criando condições para que as autóctones “possam crescer e sobreviver.”
Esta opção pode ser fortemente apoiada pela recente Lei do Restauro da Natureza, já aceite por Portugal. Esta lei tem como objetivo a adoção de medidas para restaurar, pelo menos, 20% das zonas terrestres e marítimas da UE até 2030 e todos os ecossistemas que necessitem de restauração até 2050.
Se vários destes projetos restaurativos ocorressem na grande parte do Alentejo e Algarve, tenho a percepção, ancorada em estudos científicos, que a precipitação desta região não ia reduzir e poderia até aumentar a partir do momento que as florestas conseguissem promover uma evapotranspiração significativa, o que poderá levar 20 a 30 anos. E por isso não temos tempo a perder, pois estas espécies necessitam dos níveis de precipitação atuais e em redução dos próximos anos, para se estabelecerem.
Tal convicção e concretização na prática é vivida pela Herdade do Freixo do Meio, que em colaboração com a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (centro cE3c) e a 2adapt (também conhecida pela promoção do Guia Mini Florestas para Mega Aprendizagens) tem investigado formas de regular localmente o ciclo da água promovendo as condições para aumentar a precipitação local (exemplo do projeto OnePlanet4all).
A um nível regional, e em conversa com a Marta Cortegano, coordenadora de projetos na ESDIME e da Terra Sintrópica, partilhou que tem projetos passados e a decorrer que têm conseguido criar comunidades regionais de prática (intermunicipais) de agricultores, produtores de madeira, industria, instituições administrativas, entre outras por forma a caminhar para a regeneração dos territórios, das produções, das comunidades e das economias locais. A área de abrangência destes projetos vão de Odemira a Mértola e alguns territórios adjacentes, face à curiosidade do que estes projetos e equipas conseguem criar. E sim, uma estrutura florestal mais saudável e densa, e solos mais altos e com mais matéria orgânica, são as principais estruturas que regulam o ciclo da água ao nível regional.
Esta terceira opção é algo que não se encontrar no mesmo paradigma das duas opções anteriores. Esta opção atua de um nível de pensamento de sistema vivo, que funciona com o todo dinâmico e, tal como a vida, promove abundância, e não num paradigma mecânico, linear, fragmentado e que funciona em escassez. O pensamento em sistemas vivos compreende que o sistema planetário e regional está vivo e é através de ações em pontos nodais que podemos alterar a dinâmica em que o sistema se encontra. Nós não precisamos de melhores respostas e soluções… precisamos de melhores perguntas, que nos fazem expandir o nível de consciência.
Por exemplo, há 15 anos, num seminário em que participei na EDIA, fiz o seguinte comentário e porterior pergunta: “Sabendo que cada vez haverá (segundo os cenários climáticos da altura) menos água no alentejo, e que estão a ser promovidas culturas de rega intensiva, a EDIA tornar-se-á uma galinha de ovos de ouro, atendendo que os Espanhóis continuem a deixar passar água e de qualidade (outra questão a resolver no futuro). Mas, o que seria se a EDIA fosse paga pela água que não vendesse? … Silêncio … E depois um “Ah, mas isso é hipotético”… “Sim”, disse eu, o que estou a trazer é outras formas de gestão financeira que promovem outro tipo de comportamentos e se possível uma regeneração ecológica e socioeconómica.” “Vamos tentar explorar esta situação hitotética”. E assim foi. Durante 20 minutos havia muita energia na sala, por forma a garantir que os territórios mantinham água nos solos, carregavam os seus aquíferos e que os agricultores e criadores de gado não necessitassem de recorrer às águas do alqueva. E sim, um bom travão às culturas de rega super-intensiva. Depois desdes 20 minutos, apesar de a energia ser contagiante, houve o encerramento que nos voltou a trazer à “realidade”.
No entanto, apenas a terceira opção permite começar a caminhar o percurso de restaurar os ciclos da água (grandes e pequenos), a seu tempo. Tal irá permitir ter solos com mais água e produtivos, aquíferos cheios dos quais voltam a brotar durante grande aprte do ano nascentes que nutrem rios e ribeiras quase permanentes.
Por outro lado, enraizamos um direito universar que é a soberania de água, pois tudo o que é vivo tem necessidade de acesso à água. Já se escuta no vento que as guerras do futuro serão sobretudo sobre a posse e distribuição de água. Mas porquê chegarmos a um futuro onde a água é escassa quando grande parte do planeta é agua (embora que salgada) e se soubermos compreender como funcionam os ciclos e processos naturais podemos ter a própria natureza e seus ciclos naturais a produzirem a quantidade “suficiente” (baseado no conceito de suficiência) para que possamos viver em harmonia entre nós humanos (regionalmente e internacionalmente) e em estreita relação de interdependência com a restante natureza.
Tal opção nos fará percorrer um caminho fundamental de sermos guardiões dos ciclos da água, assim como seremos missionários da Paz, promovendo que a abundância de água nunca permita que se iniciem guerras por causa da escassez deste elemento essencial à Vida.
Para saber mais:
A reportagem de 2023 do Público sobre a floresta do Vale das Amoreiras conta a estória inspiradora deste projeto , da sua resiliência e da necessidade de expandirmos esta pratica no território Algarvio e Alentejano.
Para saber mais sobre os projetos regenerativos que a ESDIME e a Terra Sintrópica estão a realizar, contactem cada uma das instituições.