Estou em Viseu, num território de 12 hectares, onde para quer que caminhe e olhe vejo carvalhos (muitos com escaravelhos conhecidos como vacas loiras, indicadores de um lugar saudável), escuto águias e falcões acima de mim, e sinto com os pés um pequeno riacho de água límpida e saborosa que ainda corre durante o verão quente de 2024. Este território é nutrido por um casal guardião (e suas duas crianças) há cerca de 5 anos, e o seu projeto é conhecido por Origens. Começou com uma herança de família e tem crescido todos os anos com a compra de novos territórios para preservar o património natural que aqui existe.
Sinto alegria no meu coração quando, ao voltar para a minha caravana, olho para o pôr do sol e vejo as primeiras estrelas. E senti a vontade de escrever o primeiro de uma série de artigos sobre o caminho regenerativo que é fundamental acontecer em todos os lugares, territórios e comunidades, de Portugal, Europa e Mundo! No entanto, por decisão editorial e minha, este artigo vem agora trazer um pouco do que está por detrás do que eu e o Nuno da Silva temos a partilhar e tem sido publicado aqui na Visão a cada 15 dias.
Felizmente já há algum caminho feito em Portugal, com diversos projetos (como a Horta FCUL ou a Herdade do Freixo do Meio) focados nos sistemas socio-ecológicos (envolvendo a permacultura, agricultura regenerativa ou sintrópica, entre outras), fundos de investimento de impacto (como a 3XP Global) a apoiar projetos que vão além de reduzir impactos negativos e compensações através de algumas benfeitorias sociais ou ambientais, ou fundações (como a Fundação Terra Agora) que querem devolver à Terra o território e capacitar guardiões locais para desenvolverem o lugar de uma forma que se criem condições que as comunidades locais e os seus territórios prosperem.
Este ano (2024), a regeneração (com o tema da economia regenerativa trazida pelo John Fullerton) foi tema central da conferência da Business Council for Sustainable Development – Portugal. Por outro lado, a Presidência Belga da UE solicitou um primeiro estudo sobre como evoluir as suas políticas e apoios financeiros para ir além da sustentabilidade, e começar a enveredar por um caminho regenerativo. Ao nível da formação destas temáticas em Portugal, a Universidade Católica do Porto, com a Pós Graduação em Sustentabilidade e Regeneração, já refere o conceito de regeneração e tem criado curiosidade nos seus participantes por um aprofundamento neste tema. Na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, estão abertas inscrições para uma pós-graduação sobre como Transcender a Sustentabilidade, na direção do Desenvolvimento Regenerativo, que é a capacidade de pensarmos, sermos e agirmos mais alinhados com os sistemas vivos, permitindo uma maior viabilidade das organizações e sistemas às quais pertencem.
Num outro formato, e em forma de celebração, durante Setembro, entre os dias 11 e 15, irá decorrer um grande encontro em Ponte de Lima, designado de Gathering of Tribes, onde participarão vários dos promotores nacionais e mundiais de projetos regenerativos, como empresas, ecoaldeias, projetos agroecológicos, turismo rural, coworking, educação, artisticos, entre outros. O objetivo é estarem juntos, partilhar experiências e cocriarem um futuro regenerativo.
Einstein deixou-nos um alerta importante: tentar encontrar soluções no mesmo nível de paradigma de pensamento que criou os problemas, não é uma possibilidade válida. Temos tentado fazer isso durante as últimas décadas e temos criado apenas uma maior crise sistémica, que cresce no espaço (afastando cada vez para mais longe as externalidades negativas) e no tempo (vivendo de um crédito que deveria ser o sustento e prosperidade das futuras gerações). O Stockholm Resilience Institute, instituição reconhecida mundialmente, já declarou em 2023, num estudo, que sem transformar o paradigma societal em que vivemos não vamos atingir mais de 11 dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em 2030, e nem mesmo em 2050. Por outro lado, a tentativa de atingir os 17 ODS, mantendo o business as usual, só nos irá levar a ultrapassar mais barreiras planetárias (atualmente já ultrapassamos 6 das 9 consideradas), como levará outras para zonas bem vermelhas (e perigosas), habitando nós numa Terra bem fora da zona operacional segura para a humanidade.
No entanto, como qualquer sistema vivo, emergem diversas tentativas de fazer o sistema ver-se a si próprio e de o capacitar a evoluir. Recentemente, foram criados e promovidos os Objetivos do Desenvolvimento Interior, que tem como propósito tornar claro que sem mudança interna não iremos atingir nenhuma sustentabilidade, muito menos regenerar os diversos sistemas dos quais fazemos parte.
Os povos indígenas contam que o afastamento da cultura ocidental da relação com a natureza, não só adoeceu os nossos corpos e espíritos, como nos afastou de uma forma de pensar, ser e agir alinhada de como os sistemas vivos realmente funcionam. E que esse afastamento é o que tem causado a crise sistémica e planetária onde nos encontramos. A citação de Gregory Bateson de que “Os principais problemas do mundo se devem à diferença entre a forma como a natureza funciona e a forma como as pessoas pensam” torna nítida esta tensão e suas consequências.
O conceito de pensamento de sistemas vivos surgiu nas décadas de 1950 e 1970, com pioneiros como Ludwig von Bertalanffy, que introduziu a Teoria Geral dos Sistemas em 1968. Outros pesquisadores, como Gregory Bateson e Howard T. Odum, integraram cibernética e ecologia. Nos anos 1970, o Instituto de Santa Fé tornou-se importante para estudos de sistemas complexos, e Fritjof Capra destacou-se com o livro “A Teia da Vida” (1996). Recentemente, autores como Daniel Wahl (“Design de Culturas Regenerativas”) e Leen Gorissen (“Natural Inteligence”) forneceram visões contemporâneas, promovendo uma profunda integração entre sistemas naturais e humanos. Daniel Wahl apresenta no seu livro um diagrama que torna bem claro e distintivo o que no dia-a-dia reduzimos a ações sustentáveis e não sustentáveis, dando-nos uma maior resolução e compreensão dos diferentes níveis existentes, permitindo uma maior reflexão sobre onde (e de/para onde) estamos a agir.
A ilustração mostra as diferentes mudanças de perspetiva à medida que nos movemos do business as usual (em baixo) para uma cultura regenerativa (acima). A maioria das ações das grandes organizações na Europa está no nível convencional, dado que seguem as legislações nacionais e europeias, ou o trend do mercado, como a não utilização de determinados componentes tóxicos ou não poder descarregar poluentes nos rios ou exportá-los para países com legislações mais fracas do ponto de vista de saúde humana e ambiental. Algumas organizações vão mais além implementam melhorias que tornam mais eficientes os produtos, ou a utilização de uma maior percentagem de material reciclado, entre outros. A sustentabilidade, atualmente, perdeu a sua força de pensar na consequência dos atos presentes nas próximas sete gerações, deixando-lhes um mundo viável, para a mera capacidade de sustentar o que existe (zero impacto negativo, ou pelo menos compensados por outros impactos positivos).
O objetivo de culturas regenerativas transcende e inclui sustentabilidade. O design restaurativo visa reconstruir a autorregulação saudável em ecossistemas locais, e o design reconciliatório dá o passo adicional de tornar explícito o envolvimento participativo da humanidade nos processos da vida e na união entre natureza e cultura. O design regenerativo cria culturas capazes de contínuas aprendizagens e transformações em resposta, e antecipação, à mudança inevitável. Culturas regenerativas salvaguardam e aumentam a abundância biocultural para as futuras gerações da humanidade e para a vida como um todo.
Carol Sanford e o Regenesis Group têm aprofundado, ao longo de mais de 40 anos, formas de promover a evolução de pensamento em comunidades de prática, quer comunitárias quer em organizações. Carol Sanford apresenta quatro paradigmas que podem ser utilizados para melhor compreendermos e distinguirmos os diferentes pensamentos, formas de ser e ações que vemos atualmente no mundo à nossa volta. O primeiro paradigma de pensamento, Extração de Valor, permite aos líderes o direito de maximizar os recursos humanos e materiais, utilizando trabalhadores como partes de uma máquina com foco em contratos transacionais e gerir comportamentos adequados. O segundo paradigma, Combate à Desordem, aplica o método científico para reduzir problemas, tratando as pessoas como entidades mecânicas que necessitam de intervenções externas para melhorar o desempenho, priorizando padrões e promovendo boas práticas. O terceiro paradigma, Fazer o Bem, fundamenta-se em normas culturais e morais para determinar o valor do trabalho, focando-se na filantropia, voluntariado e impacto positivo, com ênfase na restauração ambiental e conservação dos sistemas sociais e/ou naturais. O quarto paradigma, Evoluir Capacidades/Regenerar a Vida, promove o desenvolvimento contínuo das capacidades das organizações, seus colaboradores e ecossistemas, incentivando comunidades e indivíduos a serem saudáveis e evoluírem, potenciando a sua essência única.
Sinto-me contente por fazer parte de um movimento em Portugal, que reflete, testa e evolui a sua forma de pensar, ser e agir de uma forma mais alinhada com os sistemas vivos.
Para ancorar, no momento presente está a ser lançada a cooperativa Lúcida, que tem como objetivo promover o evoluir destes paradigmas de pensar, ser e agir nas comunidades e organizações em Portugal. Desde 2020 que os seus cooperantes promoveram na Europa mais de 5 cursos na área do Desenvolvimento Regenerativo e capacitando mais de 60 praticantes que vivem atualmente em Portugal, fora os restantes 110 participantes espalhados pela Europa.
Tal como o impulso da Vida é permanente, tendo já ultrapassado 5 extinções em massa, é nosso papel conseguir evitar a 6ª extinção em massa, e apoiar a humanidade, em relação com o planeta Terra, a evoluir para um novo equilíbrio dinâmico, alinhado com a forma como a Vida opera neste planeta.
Onde há vida, há esperança e vontade!!!