Apesar de Portugal e mais seis países europeus terem apresentado a candidatura à UNESCO há mais de um ano e de essa ser, supostamente, a base da nossa alimentação, apenas metade da população sabe o que é a dieta mediterrânica. Segundo um estudo da GFK, esse conhecimento permite identificar o consumo elevado de frutas, legumes e peixe e uma forma de confecionar os alimentos, utilizando azeite e mais especiarias e ervas do que sal.
A maioria dos inquiridos associa a dieta mediterrânica à prevenção de um conjunto de doenças, sobretudo as do foro cardiovascular.
E associa bem, porque há vários estudos internacionais a comprová-lo. O primeiro e mais emblemático foi o do médico norte-americano Ancel Keys, que, em 1957, permitiu diferenciar o azeite das outras gorduras no que respeita à prevenção de enfartes do miocárdio.
Não será por isso de estranhar que a Fundação Portuguesa de Cardiologia, através do movimento Mulheres de Vermelho, tenha lançado uma petição para esta candidatura.
“A sociedade civil mexeu-se e conseguiu pressionar os poderes políticos”, nota, orgulhoso, António Peres, o rosto por detrás do movimento.
Escolheu-se Tavira para cidade-ícone desta dieta pelo facto de a região algarvia ser a mais mediterrânica de um país banhado pelo Atlântico. E ali, no Sotavento, a relação entre a serra e o mar é ainda estreita, apesar de uma ser visivelmente rural e a outra mais cosmopolita. Em Tavira, algumas tradições ainda são o que eram.
À volta da mesa
Quando entramos na casa da família Baptista, num bairro de pescadores, em Santa Luzia, já Ofélia tem o almoço cozinhado. Há polvo assim e assado, resguardado no forno. A mesa está posta, o LCD ligado, o marido mesmo a chegar de mais uma noite no mar, à pesca do polvo: 160 quilos dele.
Fernando está quase nos 60 anos de vida e no meio século de faina. Sai com o filho e outro sócio num barco de sete metros e meio para procurar os 1 100 covos (armadilhas) que espalharam no mar. À medida que, com a ajuda de uma roldana mecânica a que chamam homem de ferro, puxam os cestos onde estão os polvos, vão atirando os animais, ainda vivos, para dentro de bidons. “Só quando nos aproximamos da terra é que os matamos, espetando-lhes uma faca no meio dos olhos”, conta, com naturalidade.
Sentemo-nos, que a refeição é para ser saboreada à mesa, com a cunhada Maria do Carmo e a amiga Manuela. A neta Cátia, que estuda aqui perto, também se junta ao grupo, embora dispense o animal que dá sustento à família, obrigando a avó a fritar-lhe um bife de peru.
A garrafa de vinho tinto já está aberta e pousada ao lado do pão, das azeitonas, da salada de alface e das cenouras temperadas de uma forma deliciosa. O polvo há de chegar, ora frito, ora em pataniscas, ora no forno, com azeite e alho. “Antigamente só comíamos carne duas vezes por ano: em agosto e no Natal”, lembra o pescador. “Pois, a mim, se me derem todos os dias peixe, todos os dias o como.”
Dieta vem do grego díaita, que significa “modo ou método de viver”. Jorge Queiroz, diretor do departamento de Cultura da Câmara de Tavira e membro da comissão da candidatura, bate nessa tecla. “Dieta mediterrânica não se resume a um regime alimentar. É um património com milhares de anos, existente, pelo menos, desde que as populações se sedentarizaram.” Fala-se então de um modo de vida, em que as festividades, a socialização, a convivialidade se concentram na mesa. Mas também em que o exercício e a mobilidade desempenham um importante papel. Há 3 mil anos, percebeu-se como o pão, o vinho e o azeite eram fundamentais, ao permitirem superar os períodos de fome. Por isso mesmo, foram alimentos sacralizados pelo cristianismo, o judaísmo e o islamismo.
São eles a base da dieta mediterrânica e com eles se faz uma refeição. Como aconteceu, já passava da uma da tarde, em casa de Leonilde Madeira, 59 anos, no Barrocal, em redor de um forno a lenha. O pão saiu a fumegar, juntou-se-lhe uma taça de azeite caseiro, outra de azeitonas maçanilha apanhadas ali ao lado. Para rematar, um copo de vinho tinto. É preciso mais alguma coisa? Campos de cereais, olivais e vinhedos formam, de facto, as paisagens culturais da região que engloba Grécia, Espanha, Itália, Marrocos, Portugal, Croácia e Chipre. Estes são os países que integram a atual candidatura os quatro primeiros já tinham conseguido o reconhecimento da UNESCO, em 2010. Além disso, em qualquer cidade dita mediterrânica, como Tavira, as praças e os mercados são locais incontornáveis.
À volta da praça
O edifício que serve de casa ao mercado de Tavira parece grande de mais a quem lá entra. Dizem-nos que a saída do centro da cidade afastou algumas pessoas da compra direta, mas que o sábado continua a ser um dia forte.
Nesta quarta-feira, muitas bancas estão fechadas mas, ainda assim, há imenso por onde escolher. A frescura do peixe, da fruta e dos legumes é evidente e a simpatia dos vendedores generalizada. Percebe-se que os clientes são os habituais, mas cruzam-se com turistas, que se desenvencilham, apontando para o que querem levar. Como este casal que agora está na banca de Inácio Policarpo, 50 anos, a encher um saquinho com azeitonas a quatro euros o quilo. Ele tem cerca de duas mil oliveiras na região e as azeitonas que não servem para a venda, vão para a produção de azeite.
Em Tavira, há duas hipóteses: ou se entregam à cooperativa ou ao lagar de Santa Catarina, que, este ano, comemora 100 anos. As máquinas pararam de trabalhar em dezembro, no final da campanha, e só voltarão a ser ligadas em outubro, aquando da apanha da azeitona nos campos das redondezas. Trata-se de um negócio em que não circula dinheiro. A cobrança faz-se em maquias de azeite que depois são vendidas aos embaladores. “Em 2000, existiam cerca de 20 lagares, no Algarve, agora há cinco”, lamenta Renato Rocha, o filho que ajuda ao negócio familiar.
Aos poucos, perde-se a noção da origem dos produtos. O azeite compra-se às grandes empresas, os campos são abandonados, e o contacto direto entre o produtor e o consumidor dá lugar a uma impessoal relação com as grandes superfícies. As tradições vão caindo, à medida que deixam de fazer sentido numa sociedade plastificada.
Foi assim em Portugal, como no Chipre, na Croácia, na Grécia, em Espanha, na Itália e em Marrocos, onde a dieta devia ser cumprida. “Temos a obrigação de defender este padrão alimentar que promove a sustentabilidade e a qualidade de vida e que se tem vindo a perder por culpa da globalização”, nota Vítor Barros, coordenador do grupo interministerial, responsável pela candidatura.
Para preservá-la, basta seguir os dez princípios que a norteiam, ainda que estejam nos antípodas do que hoje é norma: a cozinha deve ser simples e preparada de forma a proteger os nutrientes; usar o azeite como principal fonte de gordura; há que moderar o consumo de laticínios; preferir as ervas aromáticas ao sal; comer mais peixe do que carne; beber vinho às refeições, moderadamente; consumir muita água ; dar importância ao convívio à mesa; preferir produtos vegetais; esses vegetais devem ser da época, produzidos localmente e, por isso, sempre frescos.
À volta dos produtos
É para ter a certeza de que os produtos são cultivados de forma consciente, sem pesticidas, que a italiana Brunella, 41 anos, a viver em Tavira, leva os dois filhos pela mão até à Horta Formosa. É aqui que se abastece de frescos, quando abrem as portas, às terças, sextas e sábados de manhã.
Como Brunella, outros consumidores que se transformam em amigos conhecem a quinta de quatro hectares, que termina em cima da ria Formosa e pertence ao parque natural.
Quem os recebe é a holandesa Pauline Santos da Gama, 38 anos. O marido só pode ajudá-la no campo ao final do dia e ao fim de semana. Diogo, o filho de 4 anos, também pode andar por aqui “sempre sujo”, como diz a mãe, enquanto lhe limpa a boca dos morangos que acaba de comer, depois de os puxar da planta rasteira que lhe dá origem.
Pauline acorda bem cedo para tratar dos cultivos. Só depois desperta os homens da casa, às 8 e 30, para tomarem o pequeno-almoço e, mais tarde, levar o Diogo à escola, de bicicleta. O resto do dia passa-o ao ar livre, entre árvores de fruta, legumes e galinhas. “Aqui, acorda-se ao som dos passarinhos, apesar de ainda estarmos dentro da cidade”, conta João Pedro, 43 anos, enquanto Pauline acena com a cabeça em sinal de concordância. Entretanto, Diogo chama-os, insistentemente, para mais um passeio pela quinta.
Consumir produtos frescos e da época contribui para “diminuir o risco de desenvolvimento de doenças neurodegenerativas, cardio e cerebrovasculares, de diabetes tipo 2 e de vários tipos de cancro”, regista Maria Palma Mateus, nutricionista. As evidências são esmagadoras. “É o padrão alimentar ótimo, mas está a ser substituído pela junk food”, lamenta Manuel Carrageta, presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia.
Em 2010, quando a UNESCO reconheceu a dieta mediterrânica como Património Imaterial da Humanidade aos quatro países que se candidataram (e a que Portugal se quer agora juntar), escreveu que ela “garante a conservação e o desenvolvimento de atividades tradicionais ligadas à agricultura e às pescas”. É este um dos benefícios que se espera tirar deste processo.
Terá de haver muita divulgação, mas daqui deve nascer uma alavanca para o turismo e para a internacionalização dos produtos nacionais. Na espera, beba-se um copo de vinho, ponham-se em prática os mandamentos da dieta. Saúde!