“Podia ter sido autorizado pelo Papa, mas não deixa de ser um crime ambiental.” Rosa Pinho, investigadora do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro (UA), está chocada com o que vê. No preciso momento em que diz a frase, foca, com a máquina fotográfica, uma bolsa de salgueiro anão destruída. “São Jacinto é a zona de Portugal onde há mais salgueiro anão. Até dói a alma”, indigna-se. A espécie está protegida pelo Plano Setorial da Rede Natura 2000. E não é a única a que a proteção legal de pouco ou nada valeu. A cladonia, outra espécie dunar protegida, teve o mesmo fim.
Desde junho passado, o Exército já destruiu mais de uma centena de hectares de pinheiro bravo e de dunas cinzentas, sem pedir a autorização devida, numa área que integra a Zona de Proteção Especial (ZPE) da Ria de Aveiro e a Reserva Ecológica Nacional.
Em resposta, por escrito, à VISÃO, o porta-voz do Exército, tenente-coronel Silva Perdigão, diz que o que se passou foi, “tão-só, mais uma das limpezas da vegetação rasteira, que sazonalmente são realizadas na zona de lançamento, contemplando o corte e a remoção da biomassa vegetal ali existente”.
A zona de lançamento a que se refere, e que diz ser regularmente utilizada para o treino operacional de salto em paraquedas, abrange ainda segundo o comunicado “157 hectares”. A limpeza teria como objetivo salvaguardar “a integridade física dos paraquedistas, durante a aterragem”.
Um antigo paraquedista que prestou serviço em São Jacinto, e que pediu anonimato, espanta-se com a afirmação. Garante que os lançamentos de paraquedistas na área foram pontuais e a título experimental. A zona em questão servia apenas como campo de tiro e de treino tático para militares: “Os saltos sempre se realizaram na zona do pinhal de Leiria e de Arripiado.”
MELHOR DO QUE A RESERVA
A área em causa, explica Rosa Pinho, “só não pertence à Reserva Natural das Dunas de São Jacinto por acaso”. Conforme a VISÃO apurou, nos anos 1990 terá havido uma tentativa por parte do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB) de anexar os terrenos da vizinha Área Militar àquela reserva. Mas a intenção terá esbarrado na resistência dos militares.
Especialista em Botânica, Rosa Pinho, responsável pelo herbário da UA, não hesita em afirmar que a Área Militar estava, até agora, “muito melhor preservada do que a reserva de São Jacinto”. Não só por ser uma zona privada e resguardada do público, mas também por ter escapado a um violento incêndio, em 1995.
O facto de não integrar os 960 hectares da reserva não significa, porém, que esta área, situada na zona do Muranzel, entre as localidades de Torreira e São Jacinto, não esteja protegida. Está e, por isso, qualquer intervenção teria de ser autorizada pelo ICNB.
A assessora de imprensa daquele instituto, Sandra Moutinho, explica que, por ser uma ZPE, “qualquer afetação de uma área superior a cinco hectares está sujeita a um parecer do ICNB”. Garante que tal parecer nunca foi pedido pelo Exército e, no início de junho, o instituto levantou um auto, em que se dava conta de “uma área entre 20 e 25 hectares de pinhal destruída sem autorização”. A penalização foi encaminhada para a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro que, por sua vez, informa que o caso está em fase de instrução.
O certo é que os trabalhos na área continuaram. A VISÃO visitou o local em finais de dezembro e encontrou um camião gigante com troncos de pinheiros bravos empilhados, um trator em movimento e trabalhadores da firma Arturcarma Comércio de Madeiras, Lda. Por todo o lado, eram visíveis marcas de rodas de camiões e de tratores, e o solo mostrava-se despido de vegetação. Em algumas áreas verificava-se, até, a alteração da topografia do terreno.
As autoridades nada mais terão feito para impedir a intervenção. Confrontado com a continuidade dos trabalhos, o ICNB revelou-se surpreendido e diz nada saber. O que não deixa de ser estranho, dado que a sede da Reserva Natural das Dunas de São Jacinto se situa a poucos quilómetros do local.
CONVIVÊNCIA ESTRAGADA
A presença dos militares em São Jacinto remonta a 1918, altura em que um pequeno posto aeronaval francês ali foi instalado, com o intuito de vigiar os submarinos alemães que cruzavam a costa atlântica. Durante décadas, foi pacífica a convivência com o cordão dunar litoral, que combina a formação arenosa com uma área florestada em finais do século XIX, para fixar as areias. Até agora. A duna primária (mais próxima do mar) mantém-se intacta. Ali, continua a ser possível admirar a beleza e a estratégia de sobrevivência de plantas como o feno das areias, o estorno, a eufórbia ou os cordeirinhos da praia. Já a aproximadamente 500 metros do oceano, numa faixa paralela à costa, a duna cinzenta, barreira natural que impede o avanço do mar, foi grandemente danificada. Rosa Pinho explica que o número e a antiguidade das espécies são “obviamente maiores nesta área do que na duna primária”. O que a especialista vê no terreno entra em contradição com o comunicado do Exército. Se a limpeza fosse sazonal, como é dito pelos militares, “seria difícil encontrar pinheiros cortados, com anéis que denunciam mais de três décadas de existência “.
Mais uma vez se confirma o que os ambientalistas defendem: as plantas invasoras são a principal causa de destruição da biodiversidade mas só depois do Homem.