Na história da música popular nada se compara ao poder de atração dos Beatles. Só assim se explica que, mais de 50 anos passados sobre o fim da banda, um “novo” documentário, dividido em três partes, se estreie no canal Disney+ com grande alarido global e uma operação de marketing digna dos lançamentos mais esperados de um disco, livro ou filme novo. O primeiro episódio de Get Back, com a assinatura do realizador Peter Jackson, estreia-se hoje, 25, em exclusivo no Disney + (nesta sexta, 26, e sábado, 27, chegam a segunda e terceira partes). E prometem-se imagens nunca vistas. Ou seja: novidades.
Verdade seja dita que ao longo dos anos, das décadas, os representantes do legado dos Beatles têm sabido criar momentos de interesse e revelações (gravações nunca ouvidas, remasterizações, histórias ou imagens por divulgar…), mantendo viva a beatlemania em todo o mundo. Mas ao fim de mais de meio século (a separação definitiva dos Beatles aconteceu em 1970) pareceria difícil continuar nessa senda.
Realidade mais real
Um desses momentos, anunciado com pompa e circunstância, aconteceu em outubro de 2000, com a edição de um livro gigante, The Beatles Anthology, no qual a história da banda inglesa era percorrida, ao pormenor, em longas entrevistas com os sobreviventes (Paul, George e Ringo) e recuperando antigas declarações de John Lennon (assassinado em dezembro de 1980). No capítulo final recordavam-se precisamente estas palavras de Lennon: “Foi infernal fazer o filme Let It Be. Quando as pessoas o viram, muitas queixaram-se de que Yoko Ono [mulher de John Lennon desde março de 1969] parecia miserável. Mas mesmo o maior fã dos Beatles teria dificuldade em sentar-se ali durante aquelas seis semanas de miséria. Foi a mais miserável sessão do mundo.” Mais: “Já não conseguíamos jogar o jogo. De repente, já não acreditávamos no que estávamos a fazer. Chegámos a um ponto em que já não estávamos a criar magia como antes.”
Durante anos olhámos para esse filme (Let it Be, estreado em maio de 1970, quando por todo o lado se falava da já confirmada separação dos Beatles) como sinal do triste fim de uma das bandas mais apaixonantes do mundo. Get Back, com Peter Jackson aos comandos, parte das gravações originais que deram origem a Let It Be e quer, de alguma forma, alterar essa narrativa. O processo para o fazer foi longo e prometem-se surpresas no resultado final.
Ao longo de quatro anos, Peter Jackson e a sua equipa mergulharam em mais de 60 horas de filmagens e ainda mais tempo de gravações áudio. O CEO da Apple Corps (a empresa que gere todo o acervo dos Beatles), Jeff Jones, lembrou-se do nome do neozelandês Peter Jackson para esta missão depois de ter ficado muito bem impressionado com o seu trabalho no documentário de 2018 They Should Not Grow Old (Eles Não Envelhecerão), sobre a Primeira Guerra Mundial, em que se mostravam imagens de época nunca vistas, editadas com recurso a novas tecnologias (ao ponto de se lhes acrescentar cor). Não deixa de ser irónico: um centro tecnológico que se notabilizou por dar o máximo realismo a cenários de ficção (especialmente a Terra Média da saga O Senhor dos Anéis) é procurado, agora, para sublinhar a autenticidade de imagens reais, maximizando a sua qualidade.
Aquilo com que Peter Jackson se confrontou, e o ocuparia de forma quase obsessiva, foi o resultado de filmagens exaustivas feitas por Michael Lindsay-Hogg durante 22 dias de janeiro de 1969, nos estúdios cinematográficos Twickenham, nos subúrbios londrinos, e na sala de gravações da Apple, no número 3 de Saville Row, Londres (edifício que ocuparam totalmente a partir de junho de 1968).
Quando foi desafiado a aceitar este projeto, o realizador neozelandês, nascido em 1961, hesitou. Conhecedor da história dos Beatles, assumido fã da sua música, sabia que essas imagens estavam irremediavelmente associadas à separação do grupo e não tinha grande vontade de ver o seu nome ligado a mais um deprimente “break-up movie”. Mas não resistiu a pedir para aceder a todo esse material inédito antes de dar a resposta final. E o que viu fê-lo mudar de ideias. Começou aí a desenhar-se a tal nova narrativa, a partir de imagens registadas há quase 53 anos.
Em busca da pureza perdida
E o que estavam os Beatles a fazer, realmente, nesse janeiro de 1969? Basicamente, tinham chegado ao ponto de poderem escolher o caminho que mais lhes apetecesse percorrer. O arrojado “álbum branco” (oficialmente chamado simplesmente The Beatles), duplo, tinha sido lançado, com sucesso global, em novembro de 1968 e, no verão desse ano, tinha-se estreado o filme Yellow Submarine (a banda sonora, com quatro canções inéditas dos Beatles, seria editada precisamente em janeiro de 1969). Havia várias ideias para o futuro da maior banda do mundo. Uma delas passava por embarcarem num navio transatlântico, com uma equipa de filmagens, onde ensaiariam novas canções. Outra foi gravarem o novo disco numa atuação nas ruínas do teatro romano de Sábrata, na Líbia – nessa altura, os Beatles não davam concertos há muito tempo (pararam de tocar ao vivo em 1966, em boa parte devido à histeria incontrolável do público). Optaram por aquele que parecia um caminho mais simples e honesto: voltarem a juntar-se como nos velhos tempos, ensaiando, improvisando e compondo (sempre com uma equipa de cinema a registar todos os momentos) com vista a um novo álbum que seria gravado ao vivo num programa especial de televisão pronto para bater recordes. O nome de trabalho dessa sessão seria Get Back. Mas foram percebendo que o regresso a uma simplicidade ou pureza original não era uma via fácil – ou, sequer, possível. Vinham de dois anos em que o trabalho demorado de estúdio, com muitas experiências tecnológicas à mistura, era a sua rotina enquanto banda, e a composição de canções em equipa, apenas com os seus instrumentos, tornou-se um lugar de desconforto. No fundo, já não eram os mesmos. Michael Lindsay-Hogg filmava tudo, em 16 milímetros, mesmo em muitos momentos em que os músicos julgavam que as câmaras estavam desligadas. A ideia do programa especial de TV foi abandonada e o grande concerto sonhado, com canções novas, acabou por ser a última atuação da história dos Beatles: apanhando todos de surpresa, no terraço do edifício da Saville Row, no dia 30 de janeiro de 1969, em pleno inverno londrino.
Todas as filmagens desse processo foram vistas repetidamente por Peter Jackson, ao mesmo tempo que se melhorava a qualidade das imagens e do som. Há, por exemplo, momentos em que os músicos tocam acordes aleatórios só para que não se perceba o que estão a dizer, mas as tecnologias do século XXI permitiram separar e limpar tudo. A ideia do realizador neozelandês era concluir um filme de cerca de duas horas e meia para se estrear nos cinemas. Mas a pandemia deu-lhe mais tempo e novas ideias e Get Back tornou-se uma “docusérie” de três episódios (onde, pela primeira vez, se pode assistir à versão integral do concerto do terraço). E o que descobriu Peter nestas imagens que o fizeram aceitar o projeto e acreditar numa nova narrativa? O realizador respondeu numa entrevista online para vários órgãos de comunicação: “They are decent normal guys.” Ou seja: aqui, como nunca, temos acesso a Paul, John, George e Ringo de uma forma “100% pura, sem representações”. No fim, tudo se resume a isto: “São quatro seres humanos diferentes, como qualquer outro conjunto de quatro pessoas.” Os Beatles como nunca os vimos?
Em Get Back, como nunca, temos acesso a Paul, John, George e Ringo de uma forma “100% pura, sem representações”
O derradeiro concerto Na “docusérie” Get Back, de Peter Jackson, pode ver-se, pela primeira vez, a atuação integral dos Beatles no topo do edifício da Apple, a 30 de janeiro de 1969
O último disco
Ao mesmo tempo que no canal Disney + se estreiam os três episódios de Get Back, chega às lojas uma nova edição do derradeiro disco de estúdio dos Beatles, Let It Be, de 1970 – com uma nova mistura do álbum, gravações inéditas e um completo booklet com prefácio de Paul McCartney. Na verdade, a série e o disco complementam-se, pois foi das sessões exaustivamente filmadas que Peter Jackson esmiuçou que nasceu este disco. Entre as suas 12 faixas contam-se quatro canções que nunca foram esquecidas: Across The Universe, Let It Be, The Long and Winding Road e Get Back. “Sempre achei o filme Let it Be muito triste, ao lidar com o fim da nossa banda”, escreve McCartney nesse prefácio. “Mas o novo filme mostra a camaradagem e o amor que existia entre nós os quatro.”“