Nem margem para o erro nem espaço para a surpresa — o segundo conce rto lisboeta de Tina Turner, 57 anos, marcado para domingo, 22, no Estádio do Restelo, valerá como uma visita guiada ao património que a dama conseguiu amealhar desde o seu regresso à primeira linha de vendas da indústria discográfica, ressurreição esta iniciada em 1984 com o álbum Private Dancer. Tudo estará ensaiado ao pormenor pelos músicos, pelas três bailarinase pelas dezenas de técnicos e assistentes que, nos b astidores, asseguram o
rigor de um espectáculo para multidões.
A escolha das canções vai misturar de forma sábia o essencial de Wildest Dreams (o disco deste ano) e os clássicos mais recentes da cantora, para conseguir a euforia popular, não sendo de excluir a hipótese de
Tina juntar uma ou duas versões de temas alheios, a piscadela de olho que lhe permite manter–se no posto de «guardiã do templo» da cultura rock. Ou seja, com as devidas revisões e actualizações, a história de
Setembro de 1990 vai repetir–se quase ponto por ponto. Mas, convenhamos, é precisamente isso que se exige agora a esta quase sexagenária que tenta desmentir os dados do BI à custa da voz, das pe rnas e da energia. Ou seja, o tempo conta pouco num show deste género e com esta protagonista: serve para descobrir uma «força da natureza», para matar saudades (com um reportório mais ou menos recente) ou apenas para
participar numa romaria em que todos os tipos de audiência descobrem o seu lugar.
A VIDA QUE DEU UM FILME
A lenda de Anna Mae Bullock (o nome. verdadeiro de Tina) começou há exactamente 40 anos — aos 17, a teenager foi chamada a um palco aberto a amadores adeptos do rhythm`n’blues. Presente no clube estava Ike Turner, músico com algum peso específico na área florescente da música negra. Resultado: Ann, então com a designação artística (inspirada numa antiga banda desenhada) de Little Annie, foi contratada como corista para a banda de Ike, os Kings of Rhythm. Dois anos mais tarde, em 1958, Tina e Ike casaram, a menina «transformou–se» em Tina Turner e foi mãe de Craig. A sua importância no espectáculo da banda foi crescendo ao ponto de o grupo passar a chamar–se Ike & Tina Turner.
Ao longo da década de 60, alguns êxitos pontuais — A Fool In Love, por exemplo — chegaram para criar a aura de «culto» indispensável ao crescimento do projecto. Tina foi convidada para gravar com um dos primeiros «papas» da produção discográfica, Phil Spector, e a consequência foi um tema ainda hoje considerado indispensável para se perceber o «grande salto em frente» dos domínios do rock: River Deep — Mountain High é uma das bandeiras que acompanham a carreira da cantora. Começa a saga das versões que, com alguma antecipação, começam a promover o crossover para outras audiências, empurrando o nome da artista além do circuito negro: Proud Mary (dos Creedence LL Clearwater Revival), Come Together (dos Beatles) e Honky Tonk Women (dos Rolling Stones e da época em que, de acordo com o mito, Tina ensinou Mick Jagger a dançar) deixavam antever o que se passaria mais tarde, quando o gosto por estes «exercícios de releitura» se estenderiam a Acid Queen (The Who), Whole Lotta Love (Led Zeppelin), Johnny & Mary e Addicted To Love (Robert Palmer), Total Control (dos saudosos Motels), Let’s Pretend We’re Married (Prince) e Legs (dos ZZ Top, com um título que bem poderia ser uma homenagem a um dos ex—líbris de Tina).
Depois de outro hit assinalável, com a particularidade de ter sido composto pela própria cantora e dedicado à sua cidade natal, Nutbush (Nutbush City Limits, 1973), vieram finalmente a público os problemas do casal, pacientemente descritos no filme que «valeu» a biografia de Tina Turner: Ike tinha passado das sistemáticas infidelidades e de uma relação cada vez mais dependente com a cocaína, que no final da década de 80 o levaria a uma longa jornada na prisão, a violentas agressões físicas, num crescendo impossível de suportar.
Em Julho de 1976, Tina, recém—convertida ao budismo, solta o «grito do Ipiranga», ao fugir do hotel Hilton de Dallas com 36 cêntimos e algumas senhas de gasolina. Esconde-se e escapa às perseguições de Ike, cujo declínio musical e pessoal se acentua a partir daí.
No entanto, o divórcio, lançado em 1978, deixa a dama em maus lençóis: quase meio milhão de dólares de dívidas. É a fase mais difícil da vida e do percurso musical de Tina Turner, obrigada a buscar sustento no decadente circuito dos clubes e casinos norte-americanos, atirada para contratos pouco aliciantes
em terras estranhas, do Barain a Singapura. O universo artístico tem preparado o seu epitáfio: mais uma esperança que não deu certo, mais uma figura devorada pelas circunstâncias.
A VOLTA POR CIMA
Há, no entanto, um encontro providencial que permite a inversão desta tendência descendente. Tina conhece o empresário australiano Roger Davies, desejoso de uma subida no ranking dos managers rock. O contrato assinado entre ambos, que ainda se mantém, data de 1980 e marca o ponto de viragem. No ano seguinte, Tina e Davies conseguem o apoio de velhos amigos, com a cantora a garantir o lugar de «suporte» na digressão norte-americana dos Rolling Stones e o mesmo posto secundário num concerto californiano de Rod Stewart transmitido via satélite para mais de 50 países. O primeiro convite sério vem de uma dupla
inglesa de produtores, Ian Craig Marsh e Martyn Ware, que decide «actualizar» uma série de clássicos da canção e confia a Tina Turner um velho êxito dos Temptations, Ball of Confusion. O álbum chama-se Music of Quality and Distinction e ajuda a virar alguns focos para a cantora, cujas potencialidades e garra continuam intactas.
Davies consegue furar o cerco da indiferença: um concerto no Hammersmith Odeon, de Londres, anuncia o regresso da voz. Depois, há um novo passo e mais um «empurrão» decisivo: David Bowie, recém pela Capitol, faz saber aos executivos da etiqueta que gostaria de assistir ao show privado da sua «cantora favorita» no
Ritz de Nova Iorque. Os «patrões» acompanham-no e acabam por render-se à força de Tina Turner. Os dados estão lançados e o contrato com a Capitol é a sequência natural. Em 1983, Tina Turner volta a trabalhar com Marsh e Ware, em mais uma versão, desta vez para Let’s Stay Together, de Al Green. O disco chega ao Top-30 norte-americano, mas, mais uma vez, é a Europa que mais efusivamente saúda este novo fôlego da acid queen, fazendo subir o tema ao sexto lugar de vendas. A vingança vinha a caminho
GLORIA UNÂNIME
Daí para cá, o que era passado tornou-se omnipresente. O álbum Private Dancer (1984), que rende à artista o seu primeiro top one, com What’s Love Got To Do With It, ultrapassa a barreira dos 10 milhões de exemplares vendidos. Daí em diante, com discos «abrangentes», de «vocação familiar» (quer dizer, para agradar a todos os públicos e de todas as idades), Tina Turner está presente no Live-Aid (1985), grava duetos com rockers de formações distintas (Eric Clapton, Rod Stewart, Bryan Adams e, mais recentemente, Sting), ganha Grammies, é chamada ao Guinness Book of Records por conseguir a maior audiência de sempre num espectáculo só com uma «cabeça» no cartaz (182 mil pessoas no Estádio do Maracanã, Rio de Janeiro, a 16 de Janeiro de 1988), conquista o seu lugar no selecto Rock and Roll Hall of Fame. Em resumo, com uma
«ressurreição» alcançada bem depois dos 40 anos, chega à glória unânime.
Break Every Rule, Live In Europe, Foreign Affair, Simply The Best (uma colectânea de êxitos), What’s Love Got To Do With It (banda sonora), The Collected Recordings/From Sixties To Nineties (uma caixa de três CD que recupera gravações do tempo de Ike e as «cruza» com os êxitos a solo) e o recente Wildest Dreams garantem
o prolongamento do estado de graça.