Os istmos são os castores da geologia. Impõem esguias barreiras para que os oceanos não corram livres entre si. Ao longo da História, foram abordados pela gente de mar como caprichos da Natureza, com reverência e resignação.
A pior humilhação para um istmo é ser traçado por um canal artificial. E a maior esperança para a sua integridade reside no fundamentalismo religioso.
Filipe II era amigo dos istmos. Depois de três décadas de estudos encomendados pelo pai do monarca, o imperador Carlos V, os engenheiros da coroa espanhola apresentaram um traçado para uma via marítima pelo istmo do Panamá que ligava o Atlântico ao Pacífico. Filipe II recusou.
Com um argumento teológico. Pois que, se Deus quisesse que os dois oceanos estivessem unidos, tê-los-ia unido Ele.
Uniram os americanos, quatro séculos depois, naquela que seria a primeira afirmação de predomínio tecnológico mundial mas também a primeira demonstração de arrogância extraterritorial da sua curta história. Para tal, encenaram uma secessão provincial, na Colômbia, e criaram um país fictício, que hoje se chama Panamá. O canal também.
Quando o atravessei, o canal já não pertencia aos americanos. O país que ele provocara tinha-o finalmente assimilado.
O Canal do Panamá relacionava-se, por fim, plenamente, com o seu nome.
Embarquei em Colòn, a cidade portuária na extremidade atlântica do canal. Diz-se que é a cidade mais violenta das Américas, a mais suja, a mais pobre. Uma periferia sem centro, um gueto sem limites. Pareceu-me que sim, que era tudo isso.
A riqueza absurda que o comércio mundial gera e que passa, em boa parte, por ali, não deixa sequer migalhas em Colòn.
Era uma madrugada bonita, quando o enorme cargueiro levantou âncora. Os navios são construídos em todo o mundo de acordo com duas categorias: os que cabem no canal e os que não cabem. Este cabia. Demorámos nove horas para atravessar os 80 quilómetros entre o Atlântico e o Pacífico. O continente que os separa, a América, coloca um oceano a leste, o outro a oeste. Mas nós, baralhando o senso comum, avançámos de norte para sul.
É a beleza deste istmo: é contorcido.
Para ser sincero, prefiro outro: o de Tehuantépec. Gostos pessoais. Fica no Sul do México, já a fazer a transição para a Guatemala. Marca a fronteira entre a América do Norte e a América Central. Produz ventos lindos e uma vegetação única.
E escolheu como pretexto um cansaço da Sierra Madre, a mãe de todas as cordilheiras, que precisou de descer das alturas. O istmo aproveitou. Tehuantépec foi uma das hipóteses avançadas pela civilização, a nossa, quando procurou construir a passagem entre os dois oceanos. Outra foi a de aproveitar o rio San Juan que desce para o Atlântico a partir do lago da Nicarágua, junto do Pacífico. Era a mais sensata. O mapa explica porquê. As intrigas da política internacional acabaram por decidir pelo Panamá.
O truque de engenharia que tornou esta passagem tão eficiente foi a criação de um enorme lago artificial, o Gatun, no centro do istmo. Para aceder a este lago, que se encontra uns 30 metros acima do nível do mar, e depois para o baixar de novo, as embarcações utilizam um sistema de comportas, acionadas com a própria água do lago. Simples e genial.
A minha travessia do Canal do Panamá não se tratava de um ato isolado, mas sim da primeira parte de uma viagem interoceânica da América para a Ásia.
Um épico da navegação planetária, que iria durar várias semanas e fazer escalas para descarregar contentores na Polinésia, Nova Zelândia, Japão e Coreia. Que melhor lugar para iniciar tudo isto do que o Canal do Panamá, um feito extraordinário de engenharia, que vence um capricho da Natureza e contraria os desígnios de Deus?