A Bravia 9 XR9065 é o atual modelo topo de gama da Sony. Uma escolha ‘polémica’, pois a marca decidiu colocar um modelo com painel Mini LED no ‘topo da pirâmide’ em vez de um OLED naquela que é a sua gama atual de modelos. Movimento acertado ou arriscado?

A verdade é que se não tivéssemos lido na caixa a tipologia de painel usado, em alguns momentos teríamos ficado na dúvida. O que nos leva logo ao primeiro destaque deste televisor – tem os melhores contrastes que já vimos num painel não-OLED. Aquela que é a características mais diferenciadora dos OLED – os níveis de preto profundo, que significam contrastes muito pronunciados, bem delineados e que, conjugado depois com outros elementos, dão um aspeto aveludado às imagens – existe, em larga medida, neste modelo Mini LED. Há momentos esporádicos nos quais ainda se notam ligeiras manchas de luz em torno dos elementos isolados no meio de um fundo preto, mas para a maioria dos consumidores dificilmente isso será um problema.

O bom desempenho nos contrastes deve-se à implementação de zonas de controlo de luz (dimming zones) que a Sony faz e que, finalmente, torna os Mini LED como uma alternativa muito competente aos OLED. Quantas destas zonas existem, ao certo, a marca não revela oficialmente, mas suspeitamos que são muitas, dados os resultados conseguidos.

Sony Bravia 9 XR9065
Sony Bravia 9 XR9065

Os painéis da tipologia Mini LED têm, depois, outras vantagens e que no caso deste televisor ficam bem espelhadas. O nível de brilho máximo que atinge é excelente. Isto dá uma luminosidade muito intensa às imagens, o que se traduz numa saturação forte das cores, o que por sua vez nos dá imagens de grande impacto visual, sobretudo se estivermos a falar de conteúdos muito coloridos – como são os filmes de animação ou os videojogos.

Mas no capítulo das cores, o que nos chamou mais a atenção foi mesmo a nuance de tonalidades. O azul não é apenas azul, é muitas variações de azul (sendo isto válido para qualquer cor), o que dá um perfil muito realista e natural às imagens. Por fim, o elevado nível de brilho que apresenta também dá a este televisor ângulos de visualização muito bons, o que significa que este é, de facto, um televisor ideal para ter no centro da sala e que todos conseguirão ver com a mesma qualidade, independentemente do ponto em que estiverem.

Como é habitual, temos não só vários perfis de imagem (e, desta vez, o nosso preferido foi mesmo o Standard, já que o modo Vívido dá-nos de facto mais brilho, mas também torna as cores mais artificiais), como as opções de ajuste são muito granulares, ideais para os utilizadores mais exigentes. Destaque também para os perfis de cor específicos para filmes em IMAX ou para os serviços de streaming Amazon e Netflix.

Do ponto de vista da imagem, o único elemento que temos a apontar é um ligeiro sombreado, sobretudo quando a imagem é totalmente branca, nas extremidades do ecrã, onde o sistema de retroiluminação parece não chegar de forma tão uniforme.

Bravia 9 XR9065: Som por conta própria

Já tínhamos assinalado esta tendência no nosso teste de grupo a televisores, que volta, com este modelo, a ficar reforçada – os sistemas de som integrados estão cada vez melhores. A Bravia 9 dá-nos um total de oito saídas de som, com uma potência combinada de 70 watts, o que significa: nível de volume muito bom; capacidade de projeção de som, criando envolvência, também muito boa para o que é habitual nos televisores; e uma presença competente de graves, o que dá logo outro ‘corpo’ às músicas, às cenas de ação nos filmes e àqueles momentos explosivos nos jogos, assim com uma boa definição global do áudio. Claro que, no limite, um utilizador que investe 3000 euros num televisor quererá, muito provavelmente, um sistema de som mais perto do home cinema, mas o que existe não só cumpre, como convence. De sublinhar ainda que para termos este som ‘extra’, existe um friso discreto na base do televisor, pelo qual sai parte do áudio.

Já o sistema operativo fica a cargo do Google TV – interface simples, fácil de usar e de resposta rápida –, que disponibiliza as principais aplicações de streaming e dá ainda acesso a muitas outras que o utilizador queira ir descobrindo. O suporte para Chromecast e AirPlay está garantido, sendo ainda possível usar o comando para ações de voz através do assistente Google.

Jogar? Sim por favor

Há coincidências felizes – termos no nosso laboratório, ao mesmo tempo, este televisor e a nova PlayStation 5 Pro. O que evidencia a vantagem dos ecossistemas, com o televisor a reconhecer automaticamente a consola e a suportar o ajuste automático de imagem em função dela. O ecrã dá-nos uma taxa de atualização máxima de 120 Hz, mas, mais uma vez, foi na reprodução vivaça das cores que ‘brilhou’. Em comparação com outros televisores, não tem suporte para as tecnologias de sincronização da Nvidia ou AMD.

Outro elemento que continuamos a apreciar nos televisores da Sony é termos liberdade de escolha na forma como usamos os suportes – pode usá-los ao centro ou nas extremidades, mais rente ao móvel (a nossa posição preferida, mais minimalista) ou mais elevada, indicada para quem já tiver uma soundbar.

Um ecrã de tamanha qualidade pede ligação a fontes externas (consolas, discos, leitores Blu-Ray) para a reprodução de conteúdos e nesse capítulo estão garantidas quatro ligações HDMI (compatíveis com as consolas de ‘nova’ geração, p.ex.), o que não deverá trazer problemas de gestão de equipamentos aos utilizadores. Por fim, destacar ainda a boa qualidade de construção, com uma estrutura metálica sólida nas laterais, que dá um aspeto premium a este televisor e uma presença imponente na sala.

Em resumo, a Sony Bravia 9 é um dos melhores e mais completos televisores do mercado, capaz de entregar um nível de brilho muito acima dos OLED, mas sem abrir mão do efeito realista que tipicamente só teríamos nesses televisores.

Tome Nota
Sony Bravia 9 XR9065 | €3699
sony.pt

Imagem Excelente
Brilho Excelente
Som Muito bom
Conetividade Excelente

Características Ecrã Mini LED 65”, 3840×2160 p, 120 Hz, 2440 nits máx. • Processador XR • HDR10, HLG, Dolby Vision • Som: 6x 10 W + 2x 5 W (Dolby Atmos) • Wi-Fi, BT 5.3 • 2x USB-A, 4x HDMI 2.1 (VRR, ALLM), RJ54 • Google Chromecast, Apple AirPlay e HomeKit • Software: Google TV (Android 12) • 1443x846x349 mm • 34,8 kg

Desempenho: 5
Características: 4,5
Qualidade/preço: 2,5

Global: 4

“Resistência” foi, apropriadamente, a palavra-chave do XXII Congresso do PCP, realizado, este fim-de-semana, em Almada, antiga autarquia icónica do partido, perdida, em 2017, para o PS, e que os comunistas gostariam muito de recuperar, nas eleições locais de 2025. Resistir à erosão, resistir às mudanças sociológicas, resistir à insignificância. A grande novidade foi a presença de um cardeal católico no conclave comunista. D. Américo Aguiar, que é bispo de Setúbal, aceitou o convite, como aceitará qualquer outro, do Chega ao PAN, “espero não me ter esquecido de nenhum”, disse ele, depois de enumerar os partidos representados na AR (esquecendo-se do Livre e do CDS…), porque deve estar “onde estão as ovelhas”. De facto, o mundo já não e o que era. Mas o PCP ainda é. Paulo Raimundo, reeleito secretário-geral, é um homem que provoca empatia: terra-a-terra, pessoa simples, de “pão, pão, queijo, queijo”, que fala a linguagem do cidadão comum, que parece defender alguns valores (como a paz…) que qualquer um subscreveria, segue as pisadas de outro líder simpático, Jerónimo de Sousa, o militante mais aplaudido do congresso. E daí? Que resultados obtém com toda essa simpatia? Comparemo-lo com um líder político como André Ventura: em todas sondagens o líder do Chega é aquele que provoca mais rejeição popular. E, no entanto, o seu partido é o que mais cresce. Também Álvaro Cunhal era odiado por meio Portugal. Mas foi ele que fez o PCP grande – e o mote do Congresso não podia ser, por manifesta impossibilidade, “make PCP great again”. A simpatia, em partidos de forte marca ideológica, não é bom sinal. Porque a simpatia significa que já não são “ameaça”. Todos simpatizamos com o Belenenses – e veja-se onde está o Belenenses. 

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1. A História da Arte Sem Homens
Katy Hessel

Em outubro de 2015, esta historiadora de arte britânica entrou numa feira de arte e percebeu que entre os milhares de obras patentes nenhuma era de uma mulher artista. Isso conduziu-a a uma epifania: ela própria tinha sempre visto a História da Arte de uma perspetiva masculina. Como todos nós, afinal. A autora resolveu essa lacuna de forma triunfal, elaborando este livro ágil, vivido e fundamentado, amplamente ilustrado, que recupera e recentra a importância e pioneirismo de artistas femininas desde 1500 até 2020. Uma panorâmica que integra tanto luminárias como Artemísia Gentileschi (1593-1653) como emergentes herdeiras dos movimentos pós-coloniais ou queer. “Artistas ignorados não são uma moda. Mulheres artistas não são uma moda”, lê-se. E, avança a autora, “a história está, e continuará, a ser reescrita a cada dia.” Objectiva, 528 págs., €34,95

2. O Coração Pensante
David Grossman

Não é preciso apresentar grandes argumentos para sublinhar a atualidade deste pequeno volume – basta ver um qualquer noticiário. O subtítulo do livro é explicativo: Ensaios sobre Israel e a Palestina. Um dos mais premiados e prestigiados escritores israelitas começou a escrever para melhor compreender o seu lugar depois do massacre de 7 de outubro de 2023. Mas muitos dos ensaios e crónicas aqui reunidos (assinados por uma “pessoa que passou a vida inteira em e entre guerras”) são anteriores a esse dia. A 25 de março de 2023, por exemplo, escrevia Grossman: “Israel encontra-se atualmente numa crise existencial, das mais graves que conheceu.” Dom Quixote, 120 págs., €13,90

3. O Jogo dos Milhões, uma Confissão
Gary Stevenson

O sistema financeiro que domina atualmente o mundo parece-nos um cenário absurdo, complexo, praticamente incompreensível. O britânico Gary Stevenson, 38 anos, que se tornou milionário como o mais bem-sucedido trader da sua geração, e optou depois por mudar radicalmente de vida, assumiu, como uma missão, o desafio de nos explicar como tudo funciona. A sua “confissão” denuncia um mundo de ganância onde os protagonistas, como ambiciosos e febris jogadores, não costumam parar para pensar. “O segredo do seu sucesso foi apostar sempre no fracasso da economia, no empobrecimento dos pobres e no enriquecimento dos ricos”, lê-se na contracapa. “Ou seja, na destruição sistemática do mundo de onde tinha vindo.” Lua de Papel, 416 págs., €18,90

4. Era de Revoluções
Fareed Zakaria

A história do mundo dos últimos quatro séculos tem sido marcada por convulsões e revoluções. Não nos admiremos, assim, por vivermos numa era de grandes transformações, a todos os níveis. Neste livro provocador, o comentador da CNN apresenta uma tese inovadora para nos ajudar a olhar para o que tem sido a evolução da Humanidade: cada revolução desencadeia sempre uma resposta reativa, produzindo uma revolução igual e oposta. Assim tem sido, na sua opinião, desde a primeira revolução que, na sua opinião, moldou o mundo de hoje: a que transformou as Províncias Unidas dos Países Baixos no país mais rico da Europa, com implicações na arte, na forma de governo e na economia. Um livro que ajuda a compreender, com um olhar diferente, aquilo que está a ocorrer à nossa volta. Gradiva, 456 págs., €27,50

5. Porque Caem os Impérios
Peter Heather e John Rapley

Um historiador (Peter Heather) e um economista político (John Rapley) levam-nos por uma longa viagem histórica sobre um tema que, por definição, se vê muito melhor à distância… Os grande impérios, no seu auge, não se veem a si próprios com mortais, finitos. A História ensina-nos o contrário. E neste ensaio, sem precisarem de demasiadas páginas, os autores perspetivam várias quedas de impérios do passado com o olhar no presente e no futuro. Nesse sentido, uma questão percorre todo o livro: a hegemonia ocidental está em risco? Presença, 224 págs., €17,90

6. Nexus
Yuval Noah Harari

Com o historiador israelita nunca há a tentativa de condensar a História em poucas páginas. Mas há sempre a preocupação em procurar, no meio da densidade, encontrar explicações óbvias e fáceis de entender para alguns dos maiores enigmas e, acima de tudo, para ajudar o leitor a compreender como evolui a Humanidade e quais os próximos desafios que vai enfrentar. Ao abordar as redes de comunicação, Harari tem um objetivo bem definido: alertar para o risco imenso que podem representar as ferramentas de Inteligência Artificial à solta ou, o que ainda é pior, ao serviço de poderes autocráticos. Este é, portanto, um retrato extenso, mas fiel, de uma nova era em que a democracia estará, porventura, sob a maior ameaça de sempre. Elsinore, 512 págs., €28,45

7. Viena
Richard Cockett

O subtítulo deste livro é todo um tratado: “Como a cidade das ideias criou o mundo moderno.” Ao longo de quase 400 páginas, Cockett explica-nos, com pormenores deliciosos, como a cidade de Sigmund Freud, Gustav Mahler, Gustav Klimt, Wilhelm Reich, Karl Popper, Peter Drucker, Stefan Zweig, Alfred Adler, Arthur Schitzler teve uma influência global, desde a psicanálise à publicidade moderna e das revoluções urbanísticas comunistas às teorias económicas neoliberais. Mas nem tudo foram luzes. “Além de gerar algumas das pessoas mais humanas e iluminadas desta era, Viena foi também singular ao gerar algumas das patologias mais perniciosas e destrutivas da História Moderna: o nazismo, o antissemitismo organizado e o etnonacionalismo extremista”, lembra o autor. Edições 70, 416 págs., €29,90

8. Mundo Material
Ed Conway

Já alguma vez pensou que o sal, aquele ingrediente que usa para a comida, é uma substância fundamental para o mundo em que vivemos? A verdade é que sem sal não teríamos cloro, que é essencial para desinfetar a água que consumimos, bem como para sintetizar medicamentos que salvam vidas. Sem sal também não haveria microchips nem painéis solares. E sem vidro, a nossa civilização entraria em colapso. “As nossas vidas estão precariamente equilibradas em grãos de areia e de sal e completamente dependentes do ferro, do cobre, do petróleo e do lítio”, avisa Ed Conway. Todos estes materiais têm uma história fascinante para contar e para descobrir. Temas e Debates, 504 págs., €24,90

9. Carta a um Jovem Decente
Mafalda Anjos

Tudo começou com uma carta real escrita pela ex-diretora da VISÃO Mafalda Anjos à sua filha quando esta completou 18 anos. Daí nasceu a ideia, com a palavra “decência” a servir como farol, de se dirigir a todos os jovens nascidos neste milénio, “com o mundo envolto numa bruma que mistura medo, ressentimento e estupidez.” São eles os destinatários destas páginas com grande potencial para se transformarem em presentes de Natal, de avós, pais e tios, para netos, filhos e sobrinhos… No prefácio, 20 figuras de várias áreas respondem a uma pergunta: o que eu gostaria de ter sabido aos 20 anos? Contraponto, €200 págs., €17,70

10. O Ano Zero da Nova Europa
Bernardo Pires de Lima

Ensaio final de uma trilogia dedicada ao momento existencial do Velho Continente, este é um livro estimulante pela forma como nos apresenta uma realidade para que nem sempre estamos despertos, mas que é absolutamente decisiva para o nosso futuro: a certeza de que a UE precisa, com urgência, de encontrar uma autonomia estratégica que lhe permita afirmar-se num mundo em mudança. Como Bernardo Pires de Lima bem escreve, a “União só sobrevive se for um espaço político composto por democracias sólidas capazes de assegurar a segurança continental e acrescentar valor estratégico conjunto no plano externo”. É esse o grande e descomunal desafio que temos pela frente. Tinta-da-China, 208 págs., €15,90

11. Viagem ao Sonho Americano
Isabel Lucas

Nova edição deste ambicioso projeto da jornalista Isabel Lucas (editado originalmente em 2017). Tendo como ponto de partida os escritores norte-americanos, este é um livro que celebra o mais nobre género jornalístico: a reportagem. Num momento em que muitas dúvidas, questões e perplexidades nos ocorrem a propósito da nova presidência de Donald Trump, já a partir de janeiro, revisitamos aqui as encruzilhadas dos Estados Unidos da América a partir desse universo mágico que é ao mesmo tempo caixa de ressonância e agente de mudanças: a literatura. O que significa hoje, afinal, a expressão “sonho americano”? Companhia das Letras, 400 págs., €19,95

12. A Última Lição de Manuel Sobrinho Simões
Luís Osório

A coleção A Última Lição dá voz a figuras que se afirmaram na sociedade a partir do seu percurso no mundo académico e do conhecimento. Neste primeiro número, ouve-se a voz de Manuel Sobrinho Simões, patologista de renome mundial, Prémio Pessoa, em 2002, e grande especialista no tema do cancro. O livro apresenta-nos a sua sabedoria em entrevista a Luís Osório – que dividiu o volume em seis capítulos, como “o provocador”, “o médico” ou “o homem de família.” Contraponto, 184 págs., €18,80

13. Autocracia, Inc.
Anne Applebaum

O livro está dedicado aos otimistas, que, dada a atual ascensão dos chamados “homens fortes” e dos Estados permeáveis a discursos radicais, têm de ser bastante mais resilientes. A jornalista e historiadora norte-americana, autora de Gulag: Uma História (2004) ou O Crepúsculo da Democracia (2020), faz aqui uma radiografia negra dos “ditadores que querem governar o mundo”. E são muitos, numa era em que, defende, as autocracias não são apenas “um homem mau isolado”, mas antes “redes sofisticadas assentes em estruturas financeiras cleptocráticas”, serviços de segurança, peritos em tecnologias de vigilância, propaganda e desinformação. O mal antidemocrático e manipulador em modo franchise global – é preciso ler para crer, compreender e combater. Bertrand, 192 págs., €17,70

14. O Labirinto dos Perdidos
Amin Maalouf

“A Humanidade está atualmente a viver um dos períodos mais perigosos da sua história” – a primeira frase deste livro não é propriamente tranquilizadora, nem sequer, convenhamos, uma grande novidade. Mas é uma forma de agarrar o leitor logo pelos colarinhos para o que vem a seguir: aceitar a explicação de que muito a que estamos hoje a assistir mantém-se na linha de conflitos anteriores que puseram o Ocidente contra os seus adversários. Num ensaio geopolítico de óbvia atualidade, Amin Maalouf consegue surpreender em cada um dos quatro capítulos – em especial naquele dedicado ao Japão, com uma visão surpreendente, e pouco realçada, sobre a importância que teve para o resto do mundo a derrota, em 1905, da frota imperial russa frente à marinha nipónica. Marcador, 368 págs., €20,90

15. O General que Começou o 25 de Abril Dois Meses Antes dos Capitães
João Céu e Silva

2024 foi rico em edições a propósito dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. Esta foi uma proposta original e pertinente a chegar as livrarias. O jornalista João Céu e Silva faz aqui uma espécie de biografia de um livro. E esse livro, fundamental para o que se passou na Revolução dos Cravos, é Portugal e o Futuro, de António de Spínola, publicado em fevereiro de 1974, um verdadeiro campeão de vendas (com mais de 230 mil exemplares vendidos) que antecipava mudanças profundas. Contraponto, 312 págs., €18,80

16. Os Mentirosos da Natureza e a Natureza dos Mentirosos
Lixing Sun

A mentira, o engano e a batota não são um exclusivo dos humanos, mas antes características comuns às espécies do mundo biológico. Mais: são absolutamente essenciais à sobrevivência. E, segundo este cientista chinês radicado nos EUA, o engano é, por si próprio, um potente motor de evolução, porque promove a competição entre o enganador e o enganado, obrigando-os a encontrar novas trapaças ou estratagemas para poderem cumprir dois principais objetivos: ajudar a sobreviver e promover a reprodução. Ao enumerar os inúmeros estratagemas que se encontram no mundo animal, este é um livro de leitura divertida, mas também de grande atualidade: afinal, a era da mentira em que vivemos, sobretudo na política, pode ter uma explicação… biológica. Temas e Debates, 360 págs., €19,90

17. Como Saciar Um Ditador
Witold Szablowski

Parece uma daquelas ideias fantásticas que aparecem num relâmpago e se dissipam logo a seguir por se revelarem praticamente impossíveis de concretizar… O jornalista polaco Witold Szablowski não se deixou desanimar perante o desafio a que se propôs: entrevistar, em várias partes do mundo, cozinheiros que trabalharam para grandes ditadores. O projeto ocupou-lhe quatro anos de trabalho e obrigou a viagens por quatro continentes. E assim, por portas travessas (as das cozinhas), podemos ficar a saber algo mais de figuras históricas como Saddam Hussein, Enver Hoxha, Fidel Castro ou Pol Pot… Zigurate, 244 págs., €19,80

18. A História do Mundo
Peter Frankopan

De uma forma ou de outra, todos nós, humanos, temos consciência de como, ao longo da História, fomos mudando o planeta. E, como nesse processo, nos fomos adaptando às exigências do clima, enfrentando crises como, por exemplo, a chamada Pequena Idade do Gelo, responsável por grandes transformações na Europa, entre os séculos XVI e XIX. Só há muito pouco tempo, no entanto, ganhámos consciência – e, infelizmente, nem todos… – da forma como a sociedade humana tem contribuído para alterar o clima, de forma acelerada nas últimas décadas. A verdade é que, ao longo da História, o clima tem desempenhado um papel fundamental na nossa existência. É a esse exercício que o historiador Peter Frankopan se dedica, com mestria e irreverência. Crítica, 698 págs., €24

Ingredientes 

8 ovos 

6 gemas 

350 g de açúcar 

350 g de farinha 

Groselhas  

Preparação

  1. O primeiro passo é bater os ovos e as gemas com o açúcar durante algum tempo e este é o segredo de um bom pão de ló, por isso, devemos bater durante pelo menos 12 minutos.  
  2. Depois, envolvemos lentamente a farinha. Nesta fase podemos também incluir as groselhas ou outro ingrediente à sua escolha. 
  3. Mas, caso prefira, pode manter simplesmente a massa. Humedecemos a forma e forramos com papel vegetal. 
  4. Vertemos o preparado na forma e levamos ao forno a 220 ºC entre 20 e 30 minutos. O nosso pão de ló está pronto a servir.  

O novo livro de Marlene Vieira, Cozinha de Chef 2 (Casa das Letras, 160 págs., €21,90), traz-nos receitas de todas as regiões de Portugal (continente e ilhas) e de países aos quais estamos ligados pela História. Alguns exemplos: arroz de polvo, bacalhau à Braga, pescada à poveira, lulas à algarvia, empada de perdiz e cogumelos, morcela com ananás e queijo de São Jorge ou, entre outras, moamba de pintada com funge. A chefe de cozinha tem três restaurantes, em Lisboa: o gastronómico Marlene, o gastrobar Zunzum e Marlene Vieira (no Time Out Market).

O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa quer desaparecer na reforma, quando, em março de 2025, abandonar Belém. Sendo como é, ninguém acredita que desvanecerá na bruma. No mínimo, o Presidente terá de, e deverá, escrever as suas memórias da Presidência ou as impressões que mais marcaram os dez anos no cargo.

Pode não desejar, como nunca desejou, mas ele, ou alguém por ele, terá de deixar essa memória para o futuro. Marcelo, repito, foi o Presidente que melhor aproximou Belém dos portugueses, diariamente, e que puxou pelos Governos, em crise ou fora dela, nunca esquecendo o distanciamento institucional entre cargos e poderes.

Acarinhou Costa na “geringonça”, assumiu os falhanços do Estado em tragédias impensáveis, ajudou e protegeu os portugueses na pandemia e deu ao ex-primeiro-ministro, por mérito próprio, a oportunidade de alcançar uma maioria absoluta, que, infelizmente, acabou mal.

Faz agora o mesmo com Luís Montenegro: colocou toda a pressão na aprovação do Orçamento de Estado, algo que terá de voltar a fazer no outono de 2025. É um adepto consumado da estabilidade política e institucional. É assim: genuinamente aberto, franco e sempre disponível para ouvir e falar. Não haverá outro Presidente como Marcelo Rebelo de Sousa. Aguardemos pela autobiografia, memórias, impressões e estados de espírito, quando chegar a altura.

(Cautela, contudo: o que sempre aprendi com as autobiografias é que tudo aquilo que nós, jornalistas, comentadores e outros, pensávamos ter acontecido numa determinada altura não batia, de todo, com a realidade vivida pelo protagonista. E, muitas vezes, nem sequer era um episódio real!)

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Luís Oliveira e Silva, 54 anos, é professor catedrático do Instituto Superior Técnico, onde coordena o Grupo de Lasers e Plasmas no Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear. Há um mês, numa cerimónia realizada na Academia de Ciências de Lisboa, recebeu a Medalha Blaise Pascal, sobretudo pela sua investigação em aceleradores a plasma. Em entrevista à VISÃO, entre muitos outros assuntos, fala sobre a importância deste prémio e também acerca do papel das universidades nas sociedades atuais. Olha para o poeta António Maria Lisboa, que diz “totalmente insubmisso”, como uma referência por causa do seu “desejo de ir mais além”.

Que importância teve ganhar a medalha Blaise Pascal, para si e também para a comunidade em que está inserido?
É sempre importante quando o nosso trabalho é reconhecido. Obviamente que estes reconhecimentos se refletem em mim, mas também são o resultado do trabalho que, ao longo do tempo, desenvolvi com a minha equipa e com as pessoas com quem tenho colaborado. Tudo isto não só tem reflexos na visibilidade do nosso trabalho, interna e externamente, como também acaba por amplificar o impacto do que fazemos. 

A visibilidade continua a ser um dos problemas da academia?
Nunca senti essa dificuldade. Para nós, sempre foi importante transmitir o que fazemos. Claro que é um desafio conseguir comunicar para lá das fronteiras da nossa comunidade. Nem sempre o conseguimos, mas penso que estamos a fazê-lo cada vez melhor. 

No seu CV, diz que o seu motto é “exceder-se de tal forma que não seja possível conceptuar-se”, uma citação atribuída por Mário Cesariny ao António Maria Lisboa. Em que medida se identifica com esta frase?
Gosto muito do movimento artístico do modernismo. O princípio do século XX foi muito estimulante, não só nas artes mas também nas ciências. É o período em que vemos a revolução da mecânica quântica, Einstein, tratou-se de facto de uma altura fascinante do ponto de vista cultural e científico. O António Maria Lisboa morreu muito cedo, com 25 anos, mas foi totalmente insubmisso na procura da visão que ele tinha da poesia, da filosofia poética que ele perseguia. Não tinha dinheiro, mas foi para Paris porque queria conhecer a comunidade surrealista da altura. E não estava disponível para fazer qualquer tipo de concessão em relação ao seu objetivo. Sempre entendi que devemos ser ambiciosos, que não devemos ceder nos objetivos que traçámos. Não é comum os cientistas assumirem-no, eu sei, mas sempre me inspirou este desejo de ir mais além.    

Em termos de investigação, o que de mais importante tem em mãos?
Depende do que se considera importante… Há coisas importantes porque têm impacto na vida das pessoas. Há coisas importantes porque são intelectualmente mais estimulantes e me dão prazer. E depois há o que é importante para a comunidade. 

Vamos primeiro à última hipótese: o que a comunidade científica considera importante.
Vou tentar explicar isto assim: a minha área genérica, que é a física dos plasmas, tem um grande objetivo desde que foi fundada, em 1958, quando se realizou uma conferência em Genebra, na sequência da qual se desclassificou a investigação. E esse grande objetivo é conseguirmos, no curto prazo, construir uma central de fusão nuclear que forneça energia para a rede elétrica. Isto tem dimensões de ciência fundamental, de ciência aplicada, de engenharia, de economia, de ética… Há dois anos, houve um grande resultado nos EUA, no Lawrence Livermore National Laboratory: foi demonstrada a ignição, o processo através do qual a energia que é libertada da fusão nuclear é superior aquela que foi injetada na pequena esfera de combustível. Até tornar isto uma central nuclear, uma central para produção de energia elétrica, há um conjunto de passos…

No ano passado, num artigo publicado no Público, escrevia: “Arrisco-me a prever (e a apostar!) que, nos próximos dois anos, outro enorme avanço irá acontecer na área da fusão nuclear, agora do lado da fusão por confinamento magnético.” Continua a apostar?
Continuo, continuo.

Falta um ano, portanto.
E acho que não vou falhar por muito [risos]. Esta procura da fusão nuclear tem seguido essencialmente dois caminhos: uma via com lasers, uma esfera de combustível que é irradiada ou comprimida; a outra via é criar um género de uma garrafa, um donut magnético que guarde lá dentro o combustível. A primeira foi seguida nos EUA em ligação ao programa de defesa, para testar as condições das armas nucleares. A Europa tem apostado na segunda via, associada a grandes máquinas, como o projeto ITER [Reator Termonuclear Experimental Internacional]. Muitas dessas máquinas foram desenhadas com tecnologia dos anos 80 e 90, mas entretanto tem havido evoluções, sobretudo nos materiais supercondutores, que permitem ter campos magnéticos mais fortes. Um conjunto de avanços, nomeadamente no MIT, permitiu lançar uma empresa, a Commonwealth Fusion Systems, que está a desenvolver uma máquina de confinamento magnético, mais pequena e mais fácil de construir do que a do ITER. Portanto, tudo indica que vão conseguir fazer uma máquina em que a energia que é libertada será maior do que a energia que é injetada. Ainda estamos longe de fazer uma central elétrica, mas estes passos estão a mudar completamente a perspetiva dos investidores, das agências de financiamento e dos governos. 

Neste momento, o que lhe dá mais prazer investigar?
Duas questões que parecem disjuntas, mas que estão relacionadas. Em primeiro lugar, como é que conseguimos luz em matéria? Quais são as intensidades luminosas, qual o tamanho dos lasers que temos de usar para produzir eletrões, positrões, matéria, antimatéria no laboratório? Será que com laser de determinada energia conseguimos gerar eletrões e positrões como fontes para aplicar? Em segundo lugar, sabemos que há locais no Universo, com física muito semelhante a esta, onde existe apenas luz e subitamente aparece matéria e antimatéria. Sabemos que isto acontece, nos buracos negros, por exemplo. Estes objetos emitem ondas de rádio e têm propriedades na luz que não conseguimos explicar. As ferramentas, os métodos e os modelos computacionais que usamos para estudar estas duas físicas são muito semelhantes e isso é particularmente interessante porque nos coloca numa oposição que é única. 

Como é que um cientista concilia o seu interesse em determinadas áreas e o interesse para a comunidade?
Só posso falar da minha própria experiência. Tenho uma teoria, que digo a todos os meus estudantes quando têm de decidir o que vão fazer: há problemas intelectualmente estimulantes em todas as áreas da atividade humana. E isto também acontece na Física: neste momento, estou a trabalhar nestes tópicos, mas se, por outras razões, tiver de trabalhar noutros, não há problema. Agora, o que me leva a mim a escolher? Os estudantes, as áreas em que eles querem trabalhar e se sentem mais entusiasmados. Muitas vezes, alinho os meus interesses de investigação com o que eles querem. Também é importante alinhar com o que as agências de financiamento estão a privilegiar. Porque, sem recursos, não consigo pagar aos estudantes, não consigo viajar, não consigo comprar equipamento.

Na Ciência, não é possível trabalhar sozinho, como apesar de tudo é possível na literatura, como aconteceu com António Maria Lisboa?
Bom, António Maria Lisboa conseguiu falar com André Breton e com os outros surrealistas, mas quando regressou dessa ida a Paris já vinha com tuberculose… Pelo menos na minha área, concordo que é muito difícil trabalhar sozinho, a Física é incompatível com esse trabalho de ermita. Talvez no princípio do século XX fosse possível, mas mesmo nessa altura a questão da comunidade científica já era importante…  

Este ano, quer o Prémio Nobel da Física quer o da Química foram para a área do machine learning.
O que isso nos diz?
Acho que nos diz que existe uma grande excitação, um grande interesse à volta da aprendizagem automática. É natural, são ferramentas excecionais. Talvez exista também um grande desconhecimento sobre o assunto… Acho isso espetacular, é claramente uma fronteira, porque não percebemos exatamente como aqueles modelos funcionam. Para um físico, que se rege por leis, aquilo ainda é um bocadinho uma caixa negra, põem-se umas coisas de um lado, saem umas coisas do outro. Dou uma cadeira que se chama Descobertas da Física Moderna, que é uma cadeira menos técnica, mais de cultura e da história da Física, e reparei que, subitamente, os estudantes estão a escrever com uma fluência notável [risos]. Significa que estão a usar as ferramentas – e bem! A reflexão que faço é que, provavelmente, não faz muito sentido estarmos a treinar os alunos para escrever com alta qualidade, o necessário é explorar outras dimensões do que eles têm de aprender. Porque, de facto, ponho uma lista de pontos no ChatGPT e digo-lhe para fazer aquilo como se fosse o António Maria Lisboa e ele faz-me um poema que reproduz o vocabulário e o estilo. [Risos.] 

Portanto, o Nobel é sobretudo um reflexo dessa descoberta?
Os físicos ficaram um bocadinho perturbados com a atribuição do Nobel… John Hopfield é formado em Física, mas em relação a Geoffrey Hinton já tenho mais dúvidas de que se enquadre naquilo que é o cânone da Física. Várias pessoas me provocaram, perguntando: agora dão o Nobel a pessoas que não são físicos? Citei Wolfgang Paul, um físico que era conhecido por ser bastante polémico e confrontacional, que dizia (não sei se me devia citar nisto…): “All science is physics or stamp collecting”. Portanto, a ciência ou é a física ou é coleção de selos [risos], que é uma frase muito…

Ortodoxa?
Bastante ortodoxa. Não quero que pensem que partilho desta opinião, que não partilho. Mas há aqui qualquer coisa de bastante profundo: a física tem uma forma de olhar para os problemas, procura um conjunto de leis fundamentais, princípios baseados em simetrias, leis de conservação, isso tudo… E o seu sucesso, desde Galileu, é baseado nesta perspetiva. Muitas das outras ciências reproduzem também uma parte dessa procura e, portanto, é normal que as fronteiras da física se expandam cada vez mais, à medida que a maturidade nas outras ciências se aproximam desta visão. 

A Europa está preparada para recuperar a distância que tem perdido face aos EUA no que diz respeito à Ciência?
Do ponto de vista competitivo, não estamos numa situação que nos seja muito favorável. As grandes instituições de referência, que atraem as melhores pessoas do mundo, estão nos EUA. A Europa tem de fazer escolhas e encontrar uma voz – até porque a China também está com uma pujança e uma capacidade extraordinárias, já está a ultrapassar os EUA naquelas métricas de produção científica. Gosto de pensar que sou um otimista, mas a realidade é bastante dura. A Ciência que tem impacto na vida das pessoas é feita com investimentos significativos e o investimento europeu em Ciência é uma fração, um terço ou um quarto, do investimento norte-americano.

Qual o papel das universidades e dos cientistas num mundo dominado por fake news, opiniões e desprezo pela evidência, sobretudo na tomada de decisões?
Tenho pensado muito nisso… As universidades são instituições, quase por definição, imutáveis, no sentido em que as coisas mudam em escalas de tempo muito longas. São, por isso, instituições muito fortes. Estão cá há 900 anos e, provavelmente, daqui a 900 anos, ainda cá estarão. 

Provavelmente, foi isso que as fez sobreviver.
Pois, mas nesta fase a velocidade e a transformação tecnológica e social são absolutamente avassaladoras. Como é que as instituições se adaptam a isto? Se há pessoas, se há comunidades que conseguem – não diria guiar, porque parece um pouco paternalista – colaborar na interpretação do mundo de uma forma crítica, sistemática e estruturada são as universidades. 

Como é que isso pode ser feito?
Não sei, há uma grande diferença nas escalas de tempo. Todos sentimos que é cada vez mais importante o contributo das pessoas que são especialistas, que têm o conhecimento científico, que conseguem fazer as sínteses e as análises. O problema é que a velocidade a que essa reflexão é feita nas universidades ainda é um bocadinho lenta para aquilo que são as necessidades atuais. A curto prazo, podemos dar mais visibilidade a essas pessoas para que a sua voz seja ouvida de forma mais presente. A médio prazo, na minha opinião, o maior impacto ainda é na formação e no treino dado por um professor universitário. Se fizermos as contas, no final da carreira, um professor cruzou-se com um número extraordinário de alunos. Se ele conseguir transmitir um conjunto de valores (nem é tanto o conhecimento para resolver equações…) que os alunos vão depois transportar para os seus contextos, isso tem um valor muito superior a qualquer informação que eu consiga transmitir durante uma aula.  

No Orçamento do Estado (OE), o que está previsto para a investigação em 2025 é o valor mais baixo desde 2018, menos 68,1 milhões do que em 2024. Os constrangimentos financeiros no Ensino Superior em Portugal, para ensino e investigação, são um problema grave?
Do ponto de vista macro, há um indicador que nos deve deixar muito orgulhosos, que é o número de investigadores por mil habitantes. Trata-se de um valor comparável aos dos maiores países europeus. Mas, depois, há um outro número que nos deve deixar muito preocupados e o OE é apenas uma parte desse problema: qual é o financiamento disponível por investigador? E aqui estamos muito abaixo. Em relação aos EUA, é um fator 8 ou 9, mas até em relação a países que nos estão relativamente próximos é muito baixo: julgo que República Checa é um fator 2, Irlanda entre 2 e 3. Já fiz estas contas todas, até ajustando ao custo de vida, e há aqui um intervalo de investimento. Continuamos subfinanciados, e a diferença é muito grande. O meu grupo não sofre deste problema, porque atraímos muito dinheiro europeu, mas isto tem custos: significa equipas reduzidas a limites muito críticos e significa também que tudo é muito mais imprevisível. Não fomenta nas equipas a confiança para arriscarem mais, para ter projetos de médio e longo prazo. Tudo isto só aumenta a desigualdade. É o princípio de Mateus: os mais ricos ficam mais ricos, os mais pobres ficam mais pobres.

Os dias de chuva e as baixas temperaturas podem afetar a nossa energia. Sente maior dificuldade em manter a boa disposição? Tem menos ânimo para as atividades rotineiras? Tudo isso pode ser explicado pela ciência e sim, está relacionado com o tempo metereológico e com as mudanças que estamos a registar.

Segundo a psicóloga clínica Jacquelyn Johnson, a forma como o clima afeta uma pessoa depende sempre de preferências pessoais, mas estudos científicos comprovam que existem tendências seguidas pela maioria da população e que a meteorologia realmente afeta a saúde mental.  

Um estudo feito com uma amostra de 500 pessoas comprovou que temperaturas entre os 10º C e os 21ºC são aquelas que estão mais ligadas à boa disposição. Um céu azul e a luz do sol melhoram o estado de espírito, tornam-nos mais confiantes e tolerantes. Por outro lado, os humores menos felizes estão associados à chuva, humidade e nevoeiro pois esse clima faz com que o corpo humano produza menos endorfinas, serotonina e dopamina.

Está também provado que o tempo frio inibe a energia, uma vez que o corpo parece receber um sinal para repousar mais nestes períodos. Os maiores picos de energia são sentidos em temperaturas mais amenas, abaixo dos 21ºC, sendo que quando estes valores começam a aumentar surge uma maior sensação de cansaço. Já as temperaturas mais altas estão associadas a stress, ansiedade, agitação e irritabilidade.

A luz do sol também transmite uma maior sensação de energia, uma vez que diz ao nosso corpo para estar acordado. Isso faz com que o inverno, que tem menos horas de luz solar, seja mais propício ao repouso e a estados mais letárgicos, em comparação com os meses de verão. Além disso, a chuva ajuda a dormir melhor, pois o som vibra numa frequência que é considerada calmante.

A eficiência energética e o baixo consumo são fatores determinantes na hora de escolher sistemas de ar condicionado. Por isso, as marcas especializadas têm investido fortemente nesta área. É neste contexto que surge a startup austríaca Social Cooling, que está a desenvolver um sistema inovador de ar condicionado, prometendo reduzir o impacto ambiental e consumir pelo menos 40% de energia face aos sistemas tradicionais.

Philippe Schmidt, de 28 anos, natural do Luxemburgo e residente em Viena, é o fundador e diretor executivo (CEO) da Social Cooling. Com um passado como advogado, o jovem austríaco abandonou a carreira na área do Direito para criar um negócio que pretende revolucionar o setor do arrefecimento doméstico. A empresa aposta numa tecnologia que não só reduz o consumo energético, mas que também quer “oferecer soluções mais sustentáveis do que as disponíveis até ao momento”.

Uma ideia que nasceu da necessidade

A inspiração para o projeto surgiu durante os anos de estudante de Philippe Schmidt, quando procurava formas acessíveis de regular a temperatura do seu apartamento. Após várias experiências e estudos, chegou a uma solução que mais tarde seria validada por profissionais. Utilizando todas as poupanças, contratou técnicos freelancers para realizar cálculos e simulações, além de conduzir uma extensa pesquisa de patentes. Foi então que conheceu Ben Assa, um físico que se tornaria cofundador do projeto. Juntos, iniciaram a construção da Social Cooling, focando-se no desenvolvimento de uma tecnologia de ar condicionado inovadora.

O produto que a startup austríaca está a desenvolver, o TerraBreeze

O TerraBreeze

A principal tecnologia da Social Cooling é o TerraBreeze, um sistema de ar condicionado que armazena calor em dissipadores e o converte em eletricidade. “Não dissipamos o calor para o exterior”, explica Philippe Schmidt em entrevista à Exame Informática. Esta abordagem reduz significativamente o consumo de energia e utiliza refrigerantes naturais, tornando o sistema mais sustentável e eficiente.

Além disso, o TerraBreeze distingue-se pela simplicidade de utilização: “Não há instalação. É como um ventilador: é só ligar e usar. Mas, ao contrário de um ventilador, arrefece o espaço.”

Embora ainda em fase de investigação e desenvolvimento, os primeiros dados indicam que o TerraBreeze terá uma maior durabilidade do que os sistemas tradicionais e evitará o uso de plásticos comuns. A manutenção também será prática: “Um componente precisa de ser substituído anualmente, como acontece com o toner de uma impressora”, detalha o jovem austríaco.

Validações e mercados-alvo

Atualmente, a Social Cooling detém patentes de utilidade e desenhos industriais na Europa e está a trabalhar para obter certificações como a marca CE. Os primeiros testes-piloto estão previstos para 2025, em parceria com grandes empresas e o setor público. O lançamento do produto está planeado para 2026, com pelo menos 1.000 pré-encomendas já garantidas.

Inicialmente, a empresa irá focar-se na Europa Central e do Sul, com um destaque especial para Portugal. “O clima europeu é perfeito para o TerraBreeze. Em climas mais quentes e secos, como no Médio Oriente, também teremos vantagens, mas a Ásia, com o seu ar quente e húmido, não é o nosso mercado-alvo inicial”, adianta o fundador.

Parcerias e sustentabilidade

A Social Cooling está aberta a colaborações com o setor de energia solar. Em 2023, estabeleceu contactos com a EDP e outras empresas de painéis solares. “Poderíamos ser um dos primeiros sistemas de ar condicionado a funcionar apenas com energia solar”, sublinha Philippe Schmidt.

Com uma equipa de sete pessoas, incluindo especialistas em termodinâmica e engenharia, a startup planeia um crescimento rápido. Além das vendas diretas, considera modelos de subscrição e aluguer para tornar o produto mais acessível. Os principais clientes-alvo são empresas e governos, com um foco inicial em pequenos escritórios. “Estamos a criar soluções para equipas de uma a quatro pessoas, num espaço de até 20 metros quadrados”, conclui o CEO.

Com o TerraBreeze, a Social Cooling poderá não só redefinir o mercado de ar condicionado, mas também contribuir significativamente para um futuro mais verde e energeticamente eficiente.

Nicolau Santos tinha 20 anos no 25 de Abril de 1974. Era um revolucionário, em Luanda, que acreditava, entusiasmado, que ia contribuir para o nascimento de um país justo e totalmente novo. A ilusão durou só até 1975 quando decidiu que o melhor era rumar a Lisboa. Consigo ficariam para sempre memórias vívidas: das longas distâncias, dos cheiros, dos piqueniques intermináveis ou da comida picante acompanhada pela Pepsi-Cola que nunca faltava em casa, trazida da empresa do pai.

Com Amarelo Tango passou a integrar a lista, bastante significativa, de jornalistas que publicam um romance. Era um sonho antigo? A concretização levou muito tempo?
Há muito tempo que achava que tinha de escrever alguma coisa sobre o período que passei em Angola. Um tempo muito marcante para a minha geração, quando perto dos 20 anos começámos a ter consciência e atividade política. E havia uma história anterior a tudo isso, que era a da ida do meu avô para Angola. Achei que havia episódios riquíssimos que se tinham passado, alguns que eu nem conhecia na altura. Fui descobrindo, fui ouvindo, fui lendo. A certa altura decidi avançar, e isso aconteceu quando me demiti do Público, em 1997, e estive seis meses como freelancer. Aí tive oportunidade de passar algum tempo na Biblioteca Nacional a consultar o jornal A Província de Angola, que foi uma fonte de informação importantíssima, descobrem-se ali coisas extraordinárias, com vários pontos de contacto com as histórias que queria contar. Mas ao fim desses seis meses, o dr. Balsemão convidou-me para ser subdiretor, e depois adjunto, do Expresso, e tive que parar. Não se consegue escrever um romance aos fins de semana, nas férias… Aliás, neste processo fiquei com um enorme respeito por todos os escritores. Escrever um romance exige uma dedicação total durante um período importante da vida. Com um emprego, filhos, uma casa para sustentar… é muito difícil. Se fazemos muitas paragens longas, quando regressamos ao livro os personagens já não estão, pensávamos que estavam, ou estão a fazer outras coisas [risos], é uma confusão.

Foi escrevendo este livro desde 1997, então…
Sim, e a única coisa que se manteve foi o título, sempre achei que Amarelo Tango era bom. Mas tenho umas sete ou oito versões do livro lá em casa. Quando, mais recentemente, enviei uma primeira versão que considerava terminada à minha editora, a Maria do Rosário Pedreira, ela leu-a e devolveu-a com tantos sublinhados a vermelho que eu achei que nunca mais ia terminar o livro! Mas, depois, achei que merecia um esforço final.

Luanda, 1974 Na praia da ilha do Mussulo, guarda-redes em futebolada de praia e conversando com uma amiga, sempre com um “penteado afro”

E isso foi quando?
Ali por altura da pandemia. E ainda acrescentei mais uns episódios, uns capítulos.

Já tinha feito uma abordagem poética a Angola, por exemplo em Aroma de Pitangas num País que Não Existe, que lançou com o seu amigo António Costa Silva.
Tenho vários livros de poesia, com uma matriz angolana, talvez, mas que vai para lá disso.

O romance é um género muito mais desafiante…
Não tenho nenhuma dúvida. Um poema nasce rapidamente, escrevo-o, e fica ali a repousar, a levedar. São experiências literárias completamente diferentes. E, lá está, fiquei com um enorme respeito pelos romancistas.

No início, avançando pelo Amarelo Tango dentro somos levados facilmente a pensar que se trata de um livro de memórias. Há aqui muito de autobiográfico?
Sim, há bastante…

O Tau, protagonista, é o Nicolau? E tem mesmo esse diminutivo?
Identifico-me com essa personagem, claro, mas o nome é inventado, nunca fui Tau. Há episódios ficcionados, imaginados, outros que se baseiam no que li n’A Província de Angola e muitos que partem de memórias e de relatos da minha família. A história da ida do meu avô para Angola, por exemplo, é real, mas ele também não se chamava Estanislau, era Nicolau. Aliás, na minha família somos todos Nicolau: já o pai desse meu avô era, o meu pai, eu, o meu filho, o meu neto…

No romance, todos os nomes são inventados?
Os únicos não inventados, fiz questão nisso, são dos tipos que torturaram os meus amigos em Angola. Eles eram nossos colegas na universidade, escolheram o seu lado, legitimamente, cada um fez as suas opções no mundo muito dividido da época, mas o que não lhes perdoei foi terem passado para o aparelho repressivo e torturarem colegas com que pouco tempo antes conviviam na universidade.

E há, ainda, os nomes reais de figuras históricas…
Sim, claro, o Agostinho Neto, o Salazar, o Adolfo Pina era mesmo o diretor desse jornal… Uma personagem real de que gosto muito é a do responsável pela Coca-Cola em Angola, que teve uma história extraordinária… No livro é o Aristófanes, mas ele não se chamava assim, tinha outro nome grego.

Faz faz parte da mitologia da Angola colonial, a Coca-Cola, que estava proibida na metrópole…
Sim. E o meu pai trabalhava numa empresa chamada Refrigerantes Lda. que fazia a Pepsi-Cola. Eram rivais, concorrentes. Fui alimentado a biberões de Pepsi-Cola! Lá em casa não se bebia vinho, nem sequer cerveja.

Muitas vezes, partiu para a escrita como se estivesse a escrever um livro de memórias…
Mas não queria que fosse só uma autobiografia minha. Houve uma ideia que guiou todo o processo e que quis passar, num momento em que tanto se discute a colonização, o racismo, etc… O racismo, e mesmo a escravatura, é algo que ou é vivido diretamente ou torna-se complicado ter consciência deles. O meu amigo António Costa Silva, por exemplo, que foi ministro da Economia, vivia no Sul de Angola e quando tinha seis anos lembra-se de ver negros que eram agrilhoados pelo pescoço e levados assim para trabalharem nas fazendas… Eu, em Luanda, nunca vi isso; era uma realidade que não existia para mim. Pelo contrário, na sociedade luandense havia uma grande miscigenação, mesmo em famílias muito importantes, como os Van Dunem. E o que eu tento passar é que apesar da geração do meu avô nunca ter pensado na independência, houve sempre uma tensão latente entre Angola e a metrópole – porque eram obrigados a comprar certos produtos a Portugal, não tinham uma moeda com valor internacional… No século XX, houve sempre essa tensão e queria refletir isso.

Quais são as suas primeiras memórias de infância?
Até aos seis anos, acho que não há nenhuma fotografia minha em que não esteja na praia, numa canoa, a nadar… A vida era muito feita disso. E havia coisas extraordinárias: eu vivia num terceiro andar, com terraço, e tinha lá um “bambi”, porque o meu tio era caçador e tinha-o salvado. E lembro-me de muitos outros animais: cágados, cães, sobretudo pastores-alemães, pombos, coelhos, peixes… E havia aquelas grandes reuniões de família e amigos com piqueniques que duravam o dia inteiro, perto da praia. Um dos choques que tive quando regressei a Portugal…

Quando regressou ou quando veio?
Quando vim, sim, que eu não sou retornado, sou devolvido [risos]… Uma das coisas que mais estranhei foi que o convívio entre as pessoas era muito mais formal. Também havia uma coisa que marcava bem a diferença nesse aspeto: aqui havia televisão desde 1957 e lá só houve depois de 1975. Também é uma recordação da minha infância as pessoas irem passear ao fim de semana sempre com um rádio, para ouvirem os relatos de futebol.

As primeiras memórias passam muito por essa convivialidade…
Sim, e são coisas hoje muito raras, quase impensáveis. No livro falo da casa grande que o meu avô mandou construir, e viviam três gerações lá. Os mais velhos, a geração dos meus pais, e nós, os mais pequenos…

O grande prémio de lotaria que o seu avô ganhou, e lhe permitiu vários investimentos, também é real?
Sim, aconteceu mesmo.

O 25 de Abril, em 1974, apanha-o com 20 anos, a idade certa para os sonhos revolucionários e românticos…
Antes, aos 16, 17 anos, frequentava o Liceu Salvador Correia, a escola mais emblemática da cidade. No início do ano havia uma grande festa de abertura e muitas vezes acabava por descambar, atirávamos água aos carros que passavam, assim umas coisas, e chamavam a polícia… Julgo que a minha consciência política foi-se formando a partir daí, pouco a pouco. Mas realmente decisivo nesse processo foi a minha entrada na universidade, em 1971/72, para estudar economia. As associações de estudantes estavam proibidas, mas havia o centro cultural universitário, onde, por exemplo, víamos filmes que depois discutíamos. Eu já gostava muito de poesia e a certa altura começou a fazer-se um jornal mural e eu é que era o grande responsável por aquilo. Através dos poemas que escolhia para pôr lá, do Agostinho Neto, do António Jacinto, do António Cardoso…, fui começando a perceber que as coisas não eram tão simples como antes eu achava que eram. Durante anos, na minha juventude, nem tinha bem noção de que vivia numa colónia.

Em sua casa debatiam-se muito as questões políticas e sociais?
Não, isso não passava muito pelo nosso quotidiano. A minha mãe era diretora de um colégio…

Também está no livro, chamava-se mesmo Augusto Gil?
Sim, Augusto Gil. E tinha o lema “tu podes, assim tu queiras.” Mas política não era um assunto lá de casa… As discussões acaloradas passaram a acontecer já depois de 1974, com o meu pai. Ele conhecia bem grande parte dos dirigentes do MPLA e achou sempre que ia ficar lá, onde tinha nascido; sentia mesmo que aquela era a terra dele e não havia razões para a deixar. E ficou, até 1977, quando as coisas começaram a ficar insuportáveis, com a guerra civil… Eu integrava na altura os chamados Comités Amílcar Cabral, que apoiando o MPLA, como o meu pai, eram mais à esquerda… Claro que isso dava grandes discussões.

Lisboa, 2024 Há 50 anos a viver em Lisboa, Nicolau Santos tem orgulho de dizer que nasceu em Angola

Não havia repressão e controlo nesse centro cultural da universidade?
Não. O sistema repressivo em Angola, representado pela PIDE, estava mais preocupado com os movimentos de libertação do que com os estudantes da universidade. Mas houve aí algum erro de cálculo… Depois do 25 de Abril praticamente não existia, em Luanda, uma estrutura do MPLA, e foi uma boa parte dos estudantes universitários que ajudaram a criá-la.

Via-se, nessa altura, como um jovem rebelde e revolucionário?
Claro! E sentia que ia fazer um país completamente novo. Como escrevo no livro, quando vim para Portugal, em 1975, demorei cinco anos a ser lisboeta e mais cinco a ser português.

Nesse ano sentiu que não podia continuar essa sua luta lá?
O MPLA, apesar de estar ensanduichado entre a FNLA e a UNITA, começou também a pedir o fuzilamento dos esquerdistas, que éramos nós. Hoje parece um bocado surrealista pensar que acusávamos a cúpula do MPLA de desvios social-democratas… Rapidamente achei que aquilo já não ia a lado nenhum e fui perdendo as ilusões. Percebi claramente que, naquele momento, da parte de um grupo mais sectário de negros do MPLA não havia lugar para os brancos. Alguns amigos ficaram, e acabaram por ser presos e torturados. Ainda antes, até houve colegas que estavam a assistir a manifestações e foram mortos; havia muita gente com armas nas ruas, e muitas vezes disparava-se primeiro e perguntava-se depois… Mas aos 20 anos toda a gente acha que é imortal, fizemos muitas loucuras, com aquela típica irresponsabilidade da juventude.

O seu pai não devia mesmo achar muita graça a essa militância…
Não achava, não. Até porque ir às aulas tornou-se uma coisa muito secundária para mim. Houve bastantes discussões em casa, mas nessa altura também passava lá pouco tempo: não se dormia, passavam-se muitas noites em casa dos amigos… Uma animação. Foi um período extraordinário na minha vida e dos meus amigos. Para muitas pessoas, foi muito, muito complicado. Hoje olho para trás e vejo de outra maneira como os meus pais, o meu pai com 50 anos e a minha mãe com 40, tiveram que vir para Portugal sem nada, começando tudo de novo.

Como foi a chegada a Lisboa em 1975?
Cheguei no dia 28 de outubro. Vim num avião, já não sei se da Mobil ou da Shell, que tinha ido buscar funcionários. A minha mãe e a minha irmã já cá estavam, o meu pai ficou lá sozinho. Fomos viver para o Pragal, com o Cristo Rei de costas para nós. E a vida aqui era completamente diferente, houve mesmo um choque. Tinha feito em Lisboa, no [colégio] Valsassina, o primeiro ano do liceu, mas nunca tinha passado cá muito tempo seguido.

O que o chocou mais?
A gastronomia, por exemplo. Não havia frango de churrasco com piripíri, a comida não era picante… E praticamente não se ouvia, na altura, música africana em Lisboa. Foram vários choques. A tal questão do convívio, que era aqui muito mais difícil, formal, cerimonioso. E apesar de Portugal ser muito mais pequeno, aqui as distâncias pareciam muito maiores do que em Angola! Lá podíamos fazer 1200 quilómetros num fim de semana para ir ver uma corrida de carros; aqui, antes de uma viagem de Lisboa ao Porto, a família despedia-se, chorava, e lembro-me das idas homéricas de Lisboa para o Algarve, em que toda a gente vomitava… Ah, e o clima! O primeiro inverno que estive aqui usei ceroulas, coisa que ainda hoje me envergonha [risos]. E quando cheguei cá, eu que já tinha terminado o segundo ano e estava a fazer cadeiras do terceiro, percebi que não tinha equivalências, era obrigado a repetir o segundo ano todo… Fiquei irritadíssimo, pensei em desistir, e andei aí a tirar uns cursos, de psicopedagogia, computação, programador. Mas lá voltei e fiz as cadeiras todas que me pediam. Depois o ISCTE acabou com o curso de economia e fui fazer os últimos dois anos para o ISEG. Desde a inscrição na universidade em Luanda foi um curso bastante atribulado. Acabei em 1980.

Nas idas posteriores a Angola sentiu que regressava a um país que já não existia? Com nostalgia e tristeza ou também alegria por voltar aos lugares da juventude?
Sempre que voltei a Angola foi em viagens de trabalho e claro que não era o mesmo país onde cresci. Mas nostalgia pelo sistema colonial também não tenho nenhuma… Quando vou lá reconheço os sítios, claro, continuo a achar que é uma cidade lindíssima, mas que já não é a minha. Mas não posso falar em tristeza ou amargura. Gostei muito de voltar a sentir os cheiros, ver aquelas cores… Tenho muito orgulho de dizer que nasci em Angola, mas vivi uma realidade que deixou de existir. Não há nenhum mal entendido por resolver. Há tempos para tudo na vida.

Como olha para a mudança, nos últimos anos, das abordagens ao nosso passado colonial? A insistência na palavra “reparação”, os cuidados com a glorificação da nossa História…
Quando se fala de “reparação” e devoluções eu penso sempre nos museus europeus, em França, Reino Unido, Alemanha, com grandes peças de arte, e até pórticos inteiros, que vieram do Médio Oriente, da Grécia Antiga… E eu pergunto: em Portugal onde é que estão essas grandes obras de arte vindas de África? Conheço o Museu de Etnologia e estão lá, sobretudo, máscaras, estatuetas, artesanato… Se se considera que trouxemos esses objetos indevidamente e que devolvê-los, não sei bem a quem, é um ato de reparação não tenho nada contra, mas acho incomparável com os exemplos que dei… Portugal trouxe muitas riquezas a partir do sistema de exploração colonial mas não foi na forma de obras de arte. A “reparação” que se pode e deve fazer, e que, diga-se, o Estado português tem feito, passa pela cooperação – no sistema judicial, na educação, na saúde… E isso acho que é justo e essencial para esses países. Na RTP, por exemplo, todos os anos damos cursos de formação, quando solicitados pelos nossos congéneres em Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé…, enviamos material técnico. Essa é a única “reparação” que podemos fazer. A ideia de pagamentos parece-me um verdadeiro disparate. E pagar a quem? É que se vamos por aí também temos que ir pedir a França uma reparação pelo que roubaram nas invasões francesas. É abrir um precedente que me parece disparatado…

O jornalismo era uma ideia antiga ou aconteceu um pouco por acaso na sua vida?
Quando, finalmente, acabei o curso disse à minha mãe que ia ser jornalista e ela não ficou nada contente, achou que devia antes ir para um banco, uma empresa… Eu comecei pelo tal jornal mural, que era alimentado sobretudo por artigos recortados que saíam no Comércio do Funchal, onde estava o Vicente Jorge Silva, e no Expresso. Já gostava de jornalismo. Em Portugal surgiu a oportunidade de trabalhar com O Jornal, onde fazia uns suplementos, e para o Jornal de Notícias, na secção de economia, a que concorri depois de ter acabado o curso.

A partir do cargo que ocupa atualmente, de presidente do conselho de administração da RTP, como olha para o futuro do serviço público de media, e especialmente da RTP?
Em Portugal e em toda a Europa, nesta era da desinformação em que vivemos – acho que hoje não vivemos na idade da informação mas sim da desinformação, com manipulação, verdades alternativas, fake news, pós-verdade… – é cada vez mais importante existirem marcas credíveis que possam contribuir para combater isso. Estou a falar do setor privado, claro, mas também do setor público. Penso que o universo dos media em Portugal vai passar por dois movimentos: um é o do encerramento de publicações em papel, por causa das restrições do mercado e da falência do seu modelo de negócio; e outro é uma eventual maior concentração em poucos grupos. E não é líquido que não haja nesse movimento a entrada de capitais que não defendem os valores e o jornalismo feito até agora nas publicações desses grupos, que podem, portanto, alterar a sua orientação editorial. Neste quadro, o serviço público é mesmo indispensável. Pode achar-se que não tem o glamour ou o rasgo de operadores privados, mas resulta seguramente numa informação, e entretenimento, que é fiável, rigorosa, na medida do possível, e que assenta nos valores fundamentais da democracia em que queremos viver. No caso da RTP, julgo que está criado um sistema que permite a independência editorial, sem interferências, nem da administração nem do poder político.

Sente que esse sistema está em risco?
Não penso que esteja… O atual sistema, com o Conselho Geral Independente da RTP, foi criado pelo Dr. Poiares Maduro no governo do Dr. Pedro Passos Coelho, e tem dado estabilidade à empresa. A RTP é hoje muito mais do que a RTP1, e as pessoas às vezes não se lembram disso. Temos oito canais de televisão, sete de rádio, o streaming, o arquivo, o RTP Arena, que trabalha na área dos eSports, o RTP Palco… E todos os anos apoiamos, com 18 milhões, a produção independente de séries, documentários e filmes em Portugal. Aquela série magnífica que o António-Pedro Vasconcelos nos deixou, A Conspiração, sobre o 25 de Abril, foi apoiada pela RTP e por mais ninguém. É a nossa memória coletiva que está aqui em causa também. Ou seja, a RTP é estratégica para o Estado português, é um instrumento que vai muito além da RTP 1 e da RTP 2, o único canal dedicado sobretudo à cultura.

O livro

A estreia de Nicolau Santos na arte do romance faz-se num registo que se aproxima muito de um livro de memórias – pessoais e daquelas histórias de várias gerações que correm nas famílias. Amarelo Tango (Oficina do Livro, 288 págs., €17,90) obriga o leitor a várias viagens no tempo, construindo um puzzle entre capítulos breves e muitas personagens que nos falam dos últimos cem anos, entre Portugal e Angola.

Palavras-chave:

A morte de Odair Moniz continua a dar que falar. Nos últimos dias, soube-se que a investigação da PJ e do Ministério Público aponta para que o auto da notícia não tenha sido escrito pelo agente da PSP que baleou a vítima, avançou a CNN Portugal. O Expresso confirmou que a PJ suspeita que tenha havido manipulação de provas, pois o imigrante cabo-verdiano teria consigo, dentro de uma bolsa, uma faca, mas a arma branca acabou por ser encontrada no chão, junto ao seu corpo.

O primeiro comunicado da PSP referia que Odair Moniz, 43 anos, tinha tentado agredir os dois agentes “com recurso a arma branca”, versão que seria negada, pelos polícias envolvidos, no primeiro interrogatório, no âmbito da investigação conduzida pela PJ as declarações não contaram com a presença de magistrado ou advogado (podem ser nulas em tribunal). O relatório da PSP também garantia que a vítima tinha sido “prontamente assistida no local”, mas um vídeo, divulgado pela VISÃO, mostra que, após os disparos, e durante vários minutos, nenhum dos polícias se aproximou do corpo de Odair Moniz para qualquer manobra de salvamento. Apenas, após alguma insistência dos homens que estão a filmar a cena do alto de um prédio, os agentes verificam o pulso da vítima.

O polícia que disparou os dois tiros fatais para Odair Monniz constituído arguido pelo crime de homicídio simples foi interrogado, na passada quarta-feira, pela procuradora Patrícia Agostinho, só que, desta vez, escolheu permanecer em silêncio. Recorde, aqui, o artigo, publicado na edição de 31 de outubro da VISÃO, que conta a história de Odair Moniz, e o que aconteceu na madrugada do dia 21 de outubro:

Odair Moniz não era anjo nem demónio. O purgatório em que viveu, durante 43 anos, não é diferente do habitado pelas gerações antes dele, nem daquele em que, hoje, resistem as quase seis mil almas que moram no bairro do Zambujal, concelho da Amadora. A vida e morte de Odair pôs Portugal a falar deste “país invisível”, mais pobre, mais vulnerável, mas também mais jovem, que continua a crescer, silenciosamente, às portas da capital – nos bairros a norte e a sul do Tejo vivem perto de meio milhão de pessoas.

Ao subirmos a rua até à casa que era de Odair, não é possível ignorar o estado de degradação dos edifícios, os buracos nas estradas e passeios, o lixo acumulado nas bermas. Pelo caminho, rostos tristes e desconfiados lamentam terem sido “abandonados pelo Estado”, denunciam o “racismo” e a “violência policial” constantes, confessam “ter medo”, mas demonstram “esperança” que a morte de “um filho do bairro”, “que gostava de dar gomas às crianças”, “conversar com os mais velhos”, “amigo de africanos” e “respeitado por ciganos [um terço dos habitantes do bairro]”, não tenha sido em vão. “Os tiros da polícia levaram o Odair, mas, naquela noite, podia ter sido qualquer um de nós. Desta vez, não nos vamos calar”, garante o bairro do Zambujal.

O crescimento de Odair

A “dor” e a “revolta” explicam-se porque “[Odair] era quem era”, resume, à VISÃO, uma familiar do imigrante cabo-verdiano, chegado a Portugal há 26 anos, que tinha mulher, dois filhos, “pai” de uma sobrinha, que cometeu erros, pagou por eles, e hoje era cozinheiro e empresário, explorava um pequeno café, situado a apenas 200 metros da sua morada. “Era onde a família e os amigos se reuniam”, faziam por esquecer a dureza do quotidiano, ao sabor da cachupa, do grogue ou simplesmente numa partida de cartas ou dominó, contra “os mais velhos, autênticos profissionais”, recorda um antigo cliente, perdido a olhar as flores e velas que enfeitam a porta fechada do estabelecimento. “É uma pena, já não deve reabrir”, solta, num pensado falado, que revela lágrimas na voz.   

Quem era Odair? O homem cuja memória foi atirada para segundo plano pelo ruído provocado por declarações políticas, motins e comunicados da polícia, pintado “bandido” e “mártir”, quando ainda corre a primeira fase da investigação sobre o que aconteceu na madrugada de 21 de outubro.

Revolta O bairro do Zambujal saiu à rua para prestar homenagem a Odair, mas a noite trouxe violência Foto: João Relvas/LUSA

Odair Moniz nasceu na Praia, capital de Cabo Verde, em 1981. Era um jovem adulto, a sentir o sabor dos 18 anos, quando abandonou a terra natal, para tentar a sua sorte em Portugal. A primeira casa – se assim se pode chamar – foi no bairro 6 de Maio, na Damaia, “aldeia” de barracas compacta e labiríntica, com locais onde o Sol não entrava, ruelas que não permitiam sequer abrir um guarda-chuva. O bairro, plantado na terra batida, foi erguido, desde a década de 1970, por quem antes deixara o arquipélago crioulo. O 6 de Maio serviu de primeiro lar da família de Dah, alcunha pela qual Odair era conhecido; Mónica manteve-se ao seu lado, numa fase de pouco trabalho e dinheiro.

Os “fura-vidas” habitavam paredes-meias. O primeiro filho de Odair acabara de nascer, mas este já decidira arriscar pelos (maus) caminhos dos outros. Era, então, um jovem de apenas 23 anos, quando resolveu assaltar um taxista. Não compensou. No dia 16 de junho de 2004, deu entrada na cadeia, condenado a quatro anos e três meses de prisão. Enquanto esteve preso, foi ainda julgado pelo crime de recetação, no âmbito de um processo de 2003, sendo condenado a mais 40 dias de cela. Recuperou a liberdade apenas em outubro de 2007, prometendo a si mesmo não insistir nos mesmos erros.

À sua espera, tinha uma casa nova. O 6 de Maio era para “ir abaixo” (as últimas casas foram demolidas em 2021), e a família conseguira um apartamento no bairro do Zambujal, freguesia de Alfragide, a menos de cinco quilómetros da antiga morada. O bairro do Zambujal começou a ganhar forma nos finais da década de 1970, com apenas três blocos. Durante quatro décadas, o bairro não parou de crescer, recebendo a comunidade africana, portugueses de etnia cigana, mas também sul-americanos e asiáticos. Depois de instalada, a população é como se fosse esquecida, as paredes não voltam a ser pintadas, os vidros partidos não são repostos, os intercomunicadores não são substituídos quando deixam de funcionar, nada é trocado. “As pessoas lá fora não confiam em nós, não contam connosco. Aprendemos a depender apenas dos nossos”, afirma, à VISÃO, um morador. “Por isso, é que é excelente viver no bairro [do Zambujal], não trocava este lugar por nenhum outro no mundo”, sublinha.

António Brito Guterres, assistente social e investigador na área de Estudos Urbanos, tem sido uma das vozes destas comunidades, conhecedor como poucos da realidade nos bairros da Grande Lisboa. À VISÃO, desdramatiza “os caixotes do lixo e os autocarros queimados” – nas noites de maior tensão e violência, após a morte de Odair – e alerta que “as coisas [nos bairros] não vão acalmar, porque [nos bairros] a vida nunca é calma”. “Estas pessoas levam uma vida dura, saem de casa para trabalhar, ainda é madrugada, e só regressam quando a noite já caiu, não conseguem acompanhar os filhos, orientá-los, apoiá-los… E depois não têm o essencial, existe uma falta de recursos, como o reduzido acesso destas populações à educação, saúde, cultura, etc…”, lamenta. 

O bairro do Zambujal permitiu a Odair dedicar-se à paixão pela cozinha, passando a trabalhar em restaurantes de Lisboa, onde chegou a servir uma refeição a Marcelo Rebelo de Sousa, com quem tirou uma selfie, registo que não deixou de partilhar na sua página de Facebook, numa das suas últimas publicações naquela rede social. A vida corria-lhe melhor do que nunca.

Confronto A PSP não teve vida fácil no bairro do Zambujal (como em todos os territórios designados ZUS). “As pessoas não confiam na polícia”, alegam os moradores. À VISÃO, (quase) todos dizem ter já vivido uma experiência de “violência policial”. A tensão está sempre presente Foto: João Relvas/LUSA

Nos tempos livres, gostava de reunir com os amigos, não só os do Zambujal, mas muitos outros que viviam em bairros vizinhos. A natureza “amiga”, “sincera” e “generosa”, como é descrito, fazia de Odair “uma figura popular”, “querida na comunidade cabo-verdiana”. “Entrava em todos os bairros, todos o conheciam, recebiam-no de braços abertos, todos gostavam dele”, enumera um homem, que convivia com Dah.

Nesses serões, não faltava música, e também os comes e bebes. Por vezes, havia excessos “naturais”, contam. Foi o último problema de Odair com a justiça portuguesa, apanhado pelas autoridades a conduzir embriagado, o que lhe valeu o castigo de, durante 13 meses (entre abril de 2015 e maio de 2016), ir dormir à cadeia todos os fins de semana – num regime de prisão por dias livres, à data permitido por lei.

Há quatro anos, Odair voltou a ser pai. O segundo, que, na prática, é o terceiro, por tudo aquilo que uma sobrinha representava para a família. O filho mais velho estava agora criado. A Covid-19 trouxe complicações, com fechos forçados. Para mais, tinha ainda de lidar com uma lesão, na sequência de um acidente de trabalho, que lhe provocou queimaduras graves, e o obrigou a ficar de baixa por “um período prolongado”, conta um vizinho. Por esta altura, Odair desejava mais. Quando encontrou um espaço livre, na Rua das Galegas, uma zona central no bairro do Zambujal, deu o passo com que sonhava há anos, ter um negócio próprio. Quem pôde, ajudou nas obras. “Ficou tudo arranjadinho”, descreve um antigo cliente. O café de Dah e Mónica estava aberto ao público há poucos meses quando a morte bateu à porta.

Em guerra desde 2006

“Em 2005, tudo mudou.” A frase é de uma fonte da polícia, ouvida pela VISÃO. Naquele ano, a tragédia bateu à porta da PSP, em apenas dois meses: o agente Irineu Dinis foi morto a tiro em fevereiro, na Cova da Moura; os agentes Paulo Alves e António Abrantes perderam a vida em março, abatidos junto a um bar na Amadora – os assassinos foram apanhados, condenados e cumpriram pena, mas governo e PSP queriam mais para garantir a segurança das autoridades. No ano seguinte, seria introduzida a diretiva que criou as chamadas Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), locais associados à prática de crimes, de maior risco, onde a polícia deve ter cuidados redobrados. “A polícia entra no bairro [do Zambujal] de cara tapada, shotgun apontada, com uma postura agressiva, violenta mesmo. Não me dizem ‘boa noite’, não me perguntam pelos documentos. Dizem-me ‘encosta-te à parede’, ‘afasta as mãos e as pernas’, chamam-me nomes”, descreve um morador.

À VISÃO, um polícia da força de intervenção, que não quer dar o nome, confirma esta descrição, mas explica que isso só acontece porque “há riscos reais, armas naqueles locais”. “A polícia, ali, também está em perigo. Veja-se o que aconteceu em 2005, por exemplo”, defende.

Os municípios com maior taxa de criminalidade geral no País são Albufeira, Mourão e Loulé, segundo números de 2022 da Direção-Geral da Política de Justiça, nenhum destes municípios tem ZUS, designação que fica reservada para os bairros da Grande Lisboa e Grande Porto. O “carimbo” tem sido muito contestado, por vezes apontado como “um problema e não uma solução”. Joana Cabral, dirigente da SOS Racismo, considera a designação “preconceituosa”, capaz de motivar ações policiais “marcadas pelo assédio, perseguição e, muitas vezes, pelo abuso e violência sem qualquer justificação”. “As pessoas são muitas vezes abordadas violentamente, sem terem qualquer comportamento suspeito, apenas porque andam nas ruas com a cor da sua pele. Há pessoas dos bairros que sabem que não podem olhar os polícias nos olhos, que não podem circular em determinados locais, a determinadas horas…. Isto, hoje, é conhecido, está documentado, não apenas através de quem tem a coragem de testemunhar, mas em relatórios internacionais, como os da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA) ou do Comité Contra a Tortura das Nações Unidas”, afirma a psicóloga e docente universitária.

O Zambujal não escapa ao “carimbo” ZUS. Ponto de partida de Ré, internacional português de futsal, que passou pelo Benfica, e atualmente representa o Leões de Porto Salvo, do modelo internacional Cláudio Gonçalves, de alcunha Tibunga, nome que veste marcas como Louis Vuitton, Prada ou Hermès ou ainda do cantor 2Much, com milhões de seguidores nas plataformas, o bairro, encostado ao IC19, tornou-se palco mediático por maus motivos. Dah tinha “carimbo” ZUS.

Comoção A comunidade cabo-verdiana chora a morte de “um dos seus”. “O Dah era muito popular”, repetem Foto: António Pedro Santos

A família “não fala”, está de luto, a sofrer, mas também “zangada” com “a polícia” e “os jornalistas que inventam coisas”. “O Odair era uma boa pessoa, superamiga e supertrabalhadora”, concluem dois amigos, à porta daquele que, agora, é o único café à vista.

António Brito Guterres acredita que “o contexto explica a morte de Odair”. Joana Cabral vai mais longe, dizendo que os contornos do caso “são demasiado semelhantes com situações passadas”. “Pelo que se sabe, a arma de fogo parece não ter sido usada com proporcionalidade pela polícia”, acusa. Já Catarina Morais, advogada da família de Odair, ligada à associação Vida Justa – que organizou a manifestação de sábado, 26 –, pede que seja “minuciosamente investigado” tudo o que se passou naquela noite. “E que, desta vez, a Justiça funcione”, apela.

A VISÃO sabe que o tiro que matou Odair foi disparado por um jovem polícia, de apenas 21 anos, que tinha concluído o penúltimo concurso para entrada na PSP, e se encontrava ao serviço há pouco mais de um ano. Paulo Santos, presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Policia (ASPP/PSP), “lamenta muito” este episódio, mas não deixa de apontar que o mesmo já estaria esclarecido “caso os polícias usassem bodycams e tasers [apenas usados por algumas equipas do corpo de intervenção]”, equipamentos que considera “determinantes”. “Agora, as pessoas percebem o impacto negativo da falta de investimento na polícia por parte do Estado português, nos recursos humanos, nos meios, na formação”, diz.

Uma semana de dor e revolta

Os momentos que antecederam a morte de Odair continuam envoltos em contradições e incongruências. A PJ investiga. O agente da PSP que disparou meteu férias. Os incidentes que se seguiram provocaram um ferido grave

Perseguição e morte
Na madrugada de 21 de outubro, Odair Moniz tornou-se “suspeito” depois de, alegadamente, ter pisado um traço contínuo, quando conduzia na Avenida da República, na Amadora. A primeira descrição dos acontecimentos surge, logo pela manhã desse dia, através do comunicado da PSP: Odair não respeitou a ordem para parar da polícia e “encetou fuga”. No interior do bairro da Cova da Moura, o “suspeito” perdeu o controlo e embateu em viaturas ali estacionadas. Pelas 05h43, os dois polícias procederam “à interceção” de Odair, mas este terá resistido à detenção e tentou agredi-los “com recurso a arma branca”. Depois de “esgotados outros meios e esforços”, um dos polícias recorreu “à arma de fogo e atingido o suspeito” (com dois tiros). Odair faleceu, pelas 06h20, no Hospital São Francisco Xavier.

Comunicado polémico
A primeira notícia sobre o caso descrevia Odair como “suspeito de furto de viatura”, mas a informação seria desmentida, horas depois, pela VISÃO, que confirmou que o homem seguia ao volante “do próprio carro”. Nos dias seguintes, contradições e incongruências colocaram em causa a versão da PSP: os dois polícias, ouvidos pela Polícia Judiciária (PJ), confirmaram que Odair resistiu à prisão, mas negaram que este tivesse na posse de uma arma branca (a faca que o “suspeito” transportava estaria no interior de uma bolsa). A VISÃO publicou ainda um vídeo, filmado por testemunhas, nos momentos que se seguiram aos disparos, que mostra não ter sido prestada “pronta assistência médica” a Odair, como garantira a polícia; nenhum dos polícias se aproximou da vítima ou efetuou manobras de salvamento.

PJ lidera investigação
A investigação do caso passou para as mãos da PJ. Depois de prestar declarações, o agente da PSP que matou Odair foi constituído arguido. O jovem polícia, de apenas 21 anos – e com apenas um ano de serviço – entregou a arma aos investigadores, e foi posto em liberdade. Está a receber acompanhamento psicológico e meteu um período de férias, alegadamente por ordem superior. O Ministério da Administração Interna determinou à Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) a abertura de um inquérito “com caráter de urgente” para apurar o que aconteceu naquela noite. A PSP também anunciou uma investigação interna para apurar as circunstâncias do caso.

A voz dos bairros
Logo na noite seguinte à morte de Odair, a revolta saiu à rua no bairro do Zambujal. Os motins viriam a alastrar-se a outros bairros da Área Metropolitana de Lisboa. No meio do caos, com dezenas de caixotes do lixo e viaturas a arder, surgiu nova polémica, com a família de Odair a acusar elementos da PSP de terem arrombado a porta da casa da família, situação que a polícia negou. Uma carrinha da PSP chegou a ser baleada, mas a situação mais dramática aconteceu em Santo António dos Cavaleiros, Loures, depois de um autocarro da Carris Metropolitana ter sido atingido por cocktails molotov, que provocaram queimaduras graves a um motorista de 41 anos. O homem mantém-se internado no Hospital de Santa Maria, em situação estável, não correndo perigo de vida.

Uma história de violência

O nome de Odair Moniz entra para uma (longa e infame) lista de mortes em Portugal às mãos da polícia. Em casos semelhantes, os tribunais têm optado por penas leves para quem dispara, a maioria dos réus foi mesmo absolvida

Foto: António Pedro Santos/LUSA

O caso de Romão Monteiro tem duas décadas. O homem, de etnia cigana, com 33 anos em junho de 1994, tinha sido detido e levado para a esquadra de Matosinhos. Dentro daquelas instalações, foi atingido fatalmente por uma bala disparada pela arma do agente Domingos Antunes. Logo no dia seguinte, a PSP explicou, em comunicado, que a vítima se tinha apropriado da arma do polícia, e cometido suicídio. O relato seria, no entanto, contrariado pela autópsia, e também por testemunhas que confirmaram que a vítima estaria algemada, com as mãos atrás das costas. A PSP alterou a versão para tiro “acidental”, mas não se livrou das críticas. O episódio provocou ondas de choque, destapando uma aparente cultura de corporativismo policial e encobrimento nas forças de segurança.

Numa decisão inédita, o tribunal condenou Domingos Antunes, por homicídio por negligência, a uma pena de três anos de prisão, suspensos por quatro anos. O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça permitiu-lhe, porém, manter o emprego.

Um (raro) estudo sobre o tema, da antropóloga Ana Rita Alves, indica que, em Portugal, uma pessoa cigana tem 43 vezes mais probabilidades de ser morta pela polícia do que uma pessoa não cigana; uma pessoa negra, 21 vezes mais probabilidades de ser morta do que uma branca.

Já no século XXI, vários episódios suportaram estas estatísticas. Em 2001, Ângelo Semedo, 17 anos, foi abordado por dois polícias, suspeito de ter roubado um carro. Angoi, como era conhecido, pôs-se em fuga, mas seria atingido fatalmente nas costas por um tiro de caçadeira disparado por um agente da PSP.

A morte nunca deixou de rondar os bairros da Grande Lisboa, situados nas denominadas Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS). A memória recorda Manuel Pereira, o Tony, 24 anos, morto a tiro de espingarda, em Setúbal, Carlos Reis, PTB, 20 anos, baleado na cabeça no bairro do Zambujal, José Vicente, Teti, 16 anos, espancado até à morte no (agora extinto) bairro 6 de Maio, ou ainda o rapper Mc Snake (Nuno Rodrigues), 30 anos, morto com um tiro nas costas no centro da capital.

A lista não caberia toda aqui.A morte de Edson Chaves, Kuku, denuncia a neblina que envolve muitos destes casos: em janeiro de 2009, Kuku, 14 anos, foi cercado pela polícia. A PSP alegou que o adolescente, suspeito de furtos, apontou um arma de fogo aos agentes da PSP, acabando por ser “neutralizado” com um tiro na cabeça. Quando os investigadores chegaram ao local, a pistola estava caída ao lado do cadáver. As conclusões, chocaram: Kuku nunca terá tocado na pistola (que não tinha impressões digitais, apesar da vítima não usar luvas), o tiro que matou Kuku foi disparado a menos de 20 centímetros da sua cabeça. O caso seguiu para os tribunais, que aplicaram a regra: o polícia que disparou acabou absolvido.

Edgar Cabral, Dirigente da Associação de Moradores A Partilha

“As pessoas não confiam na polícia”

Nascido e criado no bairro do Zambujal,Edgar Cabral garante, por outro lado, que a população “acredita na PJ” para apurar “a verdade” sobre a morte de Odair. “Só queremos viver em paz”, diz

Foto: João Relvas/LUSA

Como está, neste momento, o ambiente no bairro do Zambujal?
Continuamos a sentir-nos muito tristes pelo desaparecimento do Odair. Antes desta morte, o bairro estava pacificado. Agora, as pessoas estão muito revoltadas… Querem justiça!

E existe confiança na investigação?
Confiamos muito na PJ. Mas, temos de admitir, tudo isto representa um retrocesso. Ao longo dos anos, a associação [A Partilha] tinha estabelecido várias “pontes”, com diversas entidades, até mesmo com a PSP, mas o que aconteceu volta a deitar “por terra” todo o trabalho feito. As tensões voltaram a crescer.

A PSP não é bem-vinda ao bairro do Zambujal?
Não temos nada contra a PSP, mas queremos que a polícia faça um bom trabalho. As pessoas [do bairro] do Zambujal, neste momento, não confiam na polícia, não acreditam que possa garantir a sua segurança, que seja justa com elas. E acho isso perfeitamente compreensível…

Como explica os incidentes que se seguiram à morte de Odair?
Existe revolta nos bairros. As pessoas identificam-se com o Odair, sentem que podiam estar no lugar dele. Sentem que há racismo na sociedade portuguesa, que ninguém conta com elas, que não as respeitam…
Os incidentes são os sinais dessa revolta.

Agora que as coisas estão mais calmas, o que se segue?
Infelizmente, o Odair já não vai voltar, mas queremos que a verdade seja conhecida, que se faça justiça, com provas verdadeiras. Quem errou tem de ser responsabilizado. Depois, só queremos viver em paz. 

André Ventura chamou “bandido” a Odair, e a outras pessoas que vivem nos bairros. Com discursos destes, ainda tem confiança no futuro?
O Chega não representa os portugueses, nem a História de Portugal. Apenas espalha ódio, teorias sem sentido. Acho que as palavras de André Ventura deviam envergonhar todos os portugueses, mas não o confundo com a maioria das pessoas.

Acredita que a morte de Odair pode ser um ponto de viragem?
Já tivemos demasiados casos destes. Se não houvesse vídeos e testemunhas, o Odair seria acusado de atacar a polícia com uma faca, e pronto. Não pode ser! Espero que a PJ descubra a verdade e que seja feita justiça. Tenho esperança que vai ser desta, que estas situações não se voltem a repetir.

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