Isto poderia ser enunciado de uma maneira filosófica, mas vamos deixá-lo para os mais encartados. A ideia da prevalência do interesse individual sobre interesses coletivos e, nomeadamente, a conceção de que o “eu” se sobrepõe de forma implacável ao “nós” – e a uma certa noção de “bem comum”, que até agora constituiu um chão comum, pelo menos nas ditas sociedades ocidentais do pós-guerra. 

Dos sistemas de saúde e de educação ao crescimento económico e à utilização da tecnologia nos tempos livres, há já algum tempo que este sentimento perpassa vários aspetos da – nossa? – vida pública. Os mais críticos dirão que falamos dos valores e princípios da social-democracia, os mais pragmáticos dirão que falamos do “grande centrão”. A perceção que tenho é de que, enquanto trocamos entre argumentos, não chegamos a lado nenhum. A nova ordem mundial não vem aí, ela já aí está. Ouve-se que Donald Trump continua imprevisível, mas não há grandes surpresas nesta guerra comercial: as políticas de protecionismo económico não só estavam no programa do Partido Republicano como foram amplamente anunciadas durante a campanha eleitoral.  

Imprevisíveis serão os resultados desta guerra a que até o Wall Street Journal já chamou “a guerra comercial mais idiota da História”. O Prémio Nobel da Economia Paul Krugman comentou, no Substack, que as tarifas ameaçam a fé global na América. “Mesmo que algumas das tarifas sejam temporárias, o Rubicão foi ultrapassado”, defende Krugman. “Sabemos agora que, quando os EUA assinam um acordo, de comércio ou de outra coisa qualquer, o Presidente vai olhá-lo apenas como uma mera sugestão, a ser ignorada sempre que lhe apetecer. Essa revelação, por si só, causará enormes danos a longo prazo.” Para o antigo professor do MIT e da Universidade de Princeton, a queda dos mercados financeiros da última segunda-feira, 3, pode antecipar uma queda mais acentuada: “Esta complacência do mercado é uma profecia autodestrutiva: a reação silenciosa do mercado propicia que Trump continue e expanda a sua guerra comercial.”

Não é preciso ser Nobel (vénia, vénia, senhor Krugman) para saber como esta atitude pode atrapalhar o crescimento. Um documento realizado para a Reserva Federal, citado pela The Economist, concluía que a incerteza da política comercial durante o primeiro mandato de Trump, então concentrada sobretudo na China, reduziu em, pelo menos, 1% o investimento nos EUA, só no ano de 2018. Não sabemos quando, mas as novas tarifas chegarão à União Europeia, “definitivamente”, avisou o Presidente norte-americano. Acrescentou também: “Eles não compram os nossos carros, não compram os nossos produtos agrícolas, não levam quase nada e nós compramos-lhes tudo.”

Apesar de a frase de Trump ser apenas uma parte da história da relação comercial entre os EUA e a União Europeia, não deixa de ser um facto. O que não significa que daí dependa o renascimento da indústria transformadora americana… No princípio da semana, António Costa convidou os líderes europeus para um “retiro estratégico” em Bruxelas, com o objetivo de discutir matérias relacionadas com defesa e segurança, mas acabou subjugado à agenda de Donald Trump. Sobre o aumento de despesa militar, a presidente da Comissão Europeia admitiu ser possível ajustá-lo às regras orçamentais. “Em tempos extraordinários, é possível ter medidas extraordinárias”, afirmou Ursula von der Leyen.

Não é só no domínio dos valores e dos princípios que o jogo de Trump, o novo-velho engenheiro do caos, é perigoso: na política do triste e orgulhosamente sós, os mais frágeis e os mais pobres serão sempre os primeiros a sofrer. Cinicamente, num mundo onde prevalece o “eu”, até poderia ser admissível perguntar: problema deles? Ou “nosso” também?

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Viva, bom-dia  
Pode dizer-se que o primeiro comício fê-lo Luís Marques Mendes, no último domingo, ao pôr fim a 12 anos de comentário político na SIC. Teve direito a ramo de flores e tudo. Hoje, ao final da tarde, ainda a tempo da edição das peças dos telejornais das 20 horas, o advogado fará a apresentação formal da sua candidatura a Belém. As sondagens não são animadoras, mas tudo parece estar alinhado, pelo menos, seguindo a velha fórmula de Emídio Rangel, antigo diretor da estação de Francisco Pinto Balsemão, de que uma televisão tanto pode vender um sabonete como um Presidente da República. Veremos se ainda consegue…

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Nem sempre deputados eleitos abandonaram a bancada do seu partido por razões tão “comezinhas” como a atividade de roubar malas em aeroportos. A figura de “deputado não inscrito”, condição que o eleito nas listas do Chega pelos Açores, Miguel Arruda, agora invoca, já serviu de refúgio a parlamentares de praticamente todos os partidos políticos, embora as razões não fossem, até hoje, de índole criminal. Se a “deserção” de um deputado incomoda muita gente (do respetivo partido, pelo menos), imagine-se se estivéssemos perante a deserção de mais de metade dos deputados de uma única bancada… Pois foi isso mesmo que aconteceu ao PSD de Francisco Sá Carneiro, em 1978, quando os subscritores do documento interno Opções Inadiáveis bateram com a porta, todos ao mesmo tempo, depois de recusarem sujeitar-se à disciplina partidária durante a votação de um Orçamento do Estado. Esta fissura de proporções sísmicas foi tanto mais grave quanto era certo que, entre eles, estava um dos fundadores do antigo PPD, com o próprio Sá Carneiro: era ele o advogado lisboeta Magalhães Mota (visto, durante um largo período, como o nº 2 do partido) e mais duas personalidades de enorme peso, como Sérvulo Correia e Sousa Franco (que viria a ser ministro das Finanças – independente – de um governo de António Guterres e figura central no processo de adesão à moeda única europeia).

Em 1978 governava o País um executivo de iniciativa presidencial, chefiado por Carlos Mota Pinto, nomeado pelo Presidente Ramalho Eanes, depois da queda de dois governos de Mário Soares (e do malogro de uma primeira tentativa de um governo patrocinado por Eanes, chefiado por Nobre da Costa e cujo programa não passara no Parlamento). O próprio Mota Pinto, que estivera, ao lado de Sá Carneiro, no PPD, era já uma das figuras dissidentes, que se tinha desvinculado, depois de uma primeira cisão (voltaria depois e viria a liderar o PSD).

Grandes dissidentes Sousa Franco (foto em cima, de bigode) e Magalhães Mota – neste debate televisivo, com Pereira de Moura (MDP/CDE), Mário Soares (PS) e Álvaro Cunhal (PCP) –, grandes figuras do PSD, passaram a independentes,na bancada parlamentar do partido

No Congresso de 1976, o PPD (Partido Popular Democrático) havia alterado a sua designação para PSD (Partido Social-Democrata), tendo em vista uma eventual adesão à Internacional Socialista – organização que agrupava a família dos partidos europeus, e não só, do arco da social-democracia e do socialismo democrático –, adesão essa que nunca viria a concretizar-se, entre outras razões, pela oposição de Mário Soares, líder de um partido rival, em Portugal, e que já fazia parte do grupo. No final de 1978, votava-se o Orçamento do Estado para o ano seguinte e a indicação dada inicialmente por Sá Carneiro, aos seus deputados, era o voto contra (mas a abstenção, que acabou por ser a decisão final, também não chegaria para viabilizar o Orçamento). Naquele dia, mais de metade do grupo parlamentar do PSD faltou à votação, por discordar da indicação do líder. Entre os rebeldes, os já citados Magalhães Mota, Sérvulo Correia e Sousa Franco, e ainda Cunha Leal, outro barão prestigiado no partido. Apenas 32 dos 68 deputados do PSD estiveram na bancada, tendo-se ausentado 36, todos subscritores do documento Opções Inadiáveis, que alegaram o princípio da “objeção de consciência”, o mesmo que Sá Carneiro tinha invocado para se ausentar da votação da lei de bases da Reforma Agrária… Os “Inadiáveis”, como ficaram conhecidos, além de preconizarem uma parceria estratégica com os socialistas, reafirmavam a opção social-democrata, defendiam que o partido devia insistir na filiação na Internacional Socialista, criticavam a liderança de Sá Carneiro, rejeitavam a revisão da Constituição por referendo (como defendia o líder histórico) e advogavam o bom relacionamento com Eanes (numa altura em que Sá Carneiro já seguia em rota de colisão com o PR). Este grupo considerava que o governo de Mota Pinto deveria manter-se – na verdade, manteve-se, durante mais algum tempo, governando o País por duodécimos. Mesmo entre os 32 eleitores do PSD, cinco, também conotados com os “Inadiáveis”, votaram a favor do Orçamento, entrando em choque frontal com Sá Carneiro: foram eles Barbosa de Melo (que viria a ser reabilitado e presidente da AR, durante a última legislatura com o primeiro-ministro Cavaco Silva), Cacela Leitão, Ferreira Júnior, António Gonçalves e Coelho de Sousa. Outros seis ausentes, além dos 36, faltaram à votação por outros motivos.

Com o partido balcanizado, Sá Carneiro chegara a abandonar a liderança, em 1977, mas voltara no congresso de 1978, tendo procedido a uma limpeza geral, nos órgãos dirigentes. Mas o rude golpe desta cisão implicava uma rutura grave: ao todo, acabaram por se considerar “deputados independentes” – não havia, ainda, a figura do “não inscrito” – um total de 37 eleitos, mais de metade do grupo parlamentar do PSD. Pouco depois, esta fação formaria a ASDI (Ação Social Democrata Independente) que, supostamente, viria a evoluir para se tornar um partido alternativo ao PSD. Com as eleições intercalares de 1979, e com o golpe de teatro da imergência da vitoriosa AD (coligação PSD/CDS/PPM), liderada por Sá Carneiro, coadjuvado pelos líderes dos outros dois partidos, Freitas do Amaral e Gonçalo Ribeiro Teles, a ASDI perdeu a importância que se lhe augurava. Mas num exercício de História alternativa, poderemos imaginar que, caso o CDS tivesse recusado a parceria com Sá Carneiro, os centristas poderiam ser hoje a força hegemónica do centro-direita, remetendo um PSD esfrangalhado para os rodapés da História político-partidária…

O caso Joacine

Os casos mais recentes de Joacine Katar Moreira, eleita pelo Livre e, depois, desautorizada pelo partido, que deixou de se rever na sua atividade parlamentar – e também passou a deputada não inscrita – ou de Cristina Rodrigues, que, depois de deixar o PAN e passar pelo mesmo estatuto protagonizou a mais sensacional das transferências no “mercado partidário” recente, ao derivar de ativista antitouradas para deputada do Chega (ver caixa), bem poderiam figurar numa galeria de curiosidades anedóticas. Mas outros casos houve que simbolizaram momentos de grande dramatismo político (no caso “Limiano”) ou de ansiedade pessoal – processo da deputada do PCP Luísa Mesquita, como veremos mais abaixo.

Joacine Katar Moreira, cabeça de lista de Lisboa pelo Livre, nome escolhido em resultado de umas primárias promovidas pelo partido, era a primeira deputada do Livre a ser eleita, em 2019, depois de Rui Tavares ter falhado, por pouco, a eleição, em 2015. O impacto de uma candidata fora da caixa, negra, com uma gaguês desarmante que a terá favorecido – o eleitorado simpatizou com a coragem e com o “boneco” –, Joacine era a mulher certa, na hora certa, para introduzir uma “cunha” na difícil porta do Parlamento, quando se trata de eleger deputados de pequenas forças políticas imergentes. Mas o desempenho, o discurso muitas vezes delirante, o wokismo descontrolado e a bizarria pouco institucional da sua postura começaram a provocar embaraço. Após uma convenção muito dura, em que se defendeu de forma emocional de ataques dos seus pares, Joacine viu-lhe ser retirada, pelo Livre, a confiança política. E passava a “não inscrita”. Num partido com apenas um deputado, as consequências eram graves: o Livre, mal agarrara a oportunidade de ter representação parlamentar, voltava a perdê-la.

Não inscritos Joacine Katar Moreira (Livre), Luísa Mesquita (PCP), Daniel Campelo (CDS) e Paulo Trigo Pereira (PS): razões políticas, bem diferentes das razões criminaisde Miguel Arruda (Chega, ao centro)

“O meu apoio a este governo, com a crítica construtiva e a divergência, sempre que necessária, é inquestionável.” Com esta frase, despedia-se o deputado eleito pelo PS, em 2015, Paulo Trigo Pereira, cuja condição de vice-presidente na Comissão do Orçamento não fora suficiente para que a liderança da bancada o deixasse intervir, na discussão do Orçamento do Estado para 2019. Progressivamente afastado da linha da direção do grupo – e, já agora, das políticas de Mário Centeno, ministro das Finanças –, o economista sentiu esta afronta como a gota de água. Os caminhos separavam-se e passava a deputado não inscrito. Paulo Trigo Pereira, presença habitual nas televisões, comentando temas económicos, tinha sido, na qualidade de independente, uma boa aquisição para a bancada socialista, mas ele foi sempre um desalinhado. Em dezembro de 2018, bateu com a porta: “Os meus votos desalinhados, mas justificados em declarações, levaram a um afastamento mútuo entre mim e a direção do grupo parlamentar do PS [liderada por Carlos César]”, concluiu.

O “Orçamento Limiano”

Não foi a primeira vez, nem a segunda, que uma discussão de um Orçamento do Estado provocou estilhaços, fosse em partidos do governo ou da oposição. Já vimos como o Orçamento para 1979 tinha provocado a maior crise interna da história do PSD, com a saída de 37 deputados, mais de metade da bancada, que passaram a independentes. E em 2000, quando se discutia o Orçamento do Estado para o ano seguinte, um impasse parlamentar ameaçava o chumbo do documento. Nas eleições de 1999, o PS de António Guterres ficara a um deputado de distância da maioria absoluta. No Parlamento, registava-se um empate de 115 deputados socialistas contra 115 de toda a oposição. Tendo o Orçamento do Estado de ser aprovado por maioria simples, significava que o documento chumbaria: teria 115 votos a favor e 115 contra – e isso era metade, mas não era metade mais um, como é exigido. Na discussão parlamentar, encostado pelas oposições, Guterres ameaçou com a demissão: “Entre a espada e a parede, prefiro a espada!” Mas rapidamente se constatou que era tudo uma bravata. No fundo da bancada do CDS morava um deputado de Ponte de Lima, antigo (e posterior) presidente da câmara local, que Guterres foi desencantar para lhe garantir uma abstenção. Como não há almoços grátis, o preço foi o da concessão de facilidades do poder central à indústria local do queijo limiano. Daniel Campelo, assim se chamava o deputado centrista, levava à letra a condição de eleito por Viana do Castelo e estava ali, não para representar a Nação – como é do estatuto dos deputados –, ou para respeitar a disciplina partidária, mas para defender os interesses locais, e os das populações que o tinham elegido.

Mais Livre do que o Bloco

Em 2011, Rui Tavares, então eurodeputado do BE, passou a independente

Em 2011, o fundador do Livre ainda era deputado ao Parlamento Europeu, eleito nas listas do Bloco de Esquerda. Mas, nesse ano, em junho, um diferendo com o então coordenador do Bloco, Francisco Louçã, espoletou o seu rompimento com o partido. Rui Tavares, que terá sido acusado pelo líder de ter estado na origem de informações falsas sobre os fundadores do Bloco, negou tal insinuação e exigiu a Louçã desculpas públicas – que nunca vieram. Segundo o então eurodeputado, que passaria à condição de independente – a figura do “não inscrito” não existe no Parlamento Europeu –, Francisco Louçã, num texto publicado na sua página de Facebook, teria sugerido que ele, Rui Tavares, tinha estado na origem de informações falsas colocadas nos jornais i e Sol sobre os fundadores do Bloco, apagando da história Fernando Rosas, substituído pelo ex-dirigente Daniel Oliveira (uma das vozes críticas da direção de então do Bloco).

Como Francisco Louçã não respondeu ao pedido de desculpas, Rui Tavares, em comunicado divulgado em Bruxelas, declarou ser-lhe “impossível manter confiança pessoal e política no coordenador nacional do Bloco de Esquerda” e batia com a porta. Sabemos as consequências desta decisão: pouco depois, Rui Tavares fundaria o Livre, um partido de esquerda ecologista e europeísta, relativamente limpo de velhos dogmas do socialismo do século XIX. Hoje, conta, na AR, com quatro deputados, apenas menos um do que o Bloco.

O “Orçamento Limiano”, como ficou conhecido, provocou estilhaços em todas as direções e ainda hoje é recordado. No cômputo geral, a impressão que ficou foi a de que Guterres não tinha hesitado em “comprar” o voto de um deputado do CDS e que este se “vendera” por um queijo limiano. Paulo Portas, presidente do CDS, ia tendo um ataque. E Campelo foi imediatamente expulso e isolado como “deputado não inscrito”, já que viria a garantir, no ano seguinte, com igual abstenção, a passagem do último Orçamento de Guterres. O caso “limiano” é um dos marcos – talvez não pelas melhores razões – da história democrática portuguesa.

O processo de “Moscovo”

Luísa Mesquita era uma histórica do PCP, com um passado à prova de bala. Mas, ao desrespeitar as decisões do comité central, passou por um processo estalinista interno que a trucidou – e expulsou. Corajosa, mostrou, agora em sentido contrário, a sua veia de resistente, e manteve-se no seu posto parlamentar, mesmo quando o partido lhe exigiu que cedesse o seu lugar. Mesquita garantia que tinha aceitado candidatar-se à AR no pressuposto, alegadamente assegurado pelo partido, de que ali permaneceria durante toda a legislatura (2005/2009). Mas acabaria por ser expulsa do PCP em 2007, depois de, em 2006, ter recusado renunciar ao mandato, como lhe exigiam. “A atitude partidária adoptada por Luísa Mesquita de ostensivo incumprimento de princípios estatutários, de compromissos políticos e éticos assumidos e de afrontamento ao partido, com recurso a calúnias e à mentira, é incompatível com a sua qualidade de membro do PCP”, proclamava um comunicado dos comunistas. Mais tarde, numa entrevista ao jornal ribatejano Mirante, Luís Mesquita denunciava: “A guerra, a pressão psicológica e as ameaças duraram desde o Verão de 2006 até Novembro de 2007.”

Por falar em ameaças, o líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, já insinuou que não garante a segurança do deputado açoriano – agora “não inscrito” – Miguel Arruda, quando ele, depois da baixa psicológica, se sentar na última fila da sua ex-bancada. O Chega queria distância, ignorando-se se quereria despachá-lo para a bancada do Bloco de Esquerda, por exemplo.

Há uma história, na carreira parlamentar de Winston Churchill, que bem poderá ter a sua versão lusitana. Na I Guerra Mundial, quando foi Primeiro Lorde do Almirantado (uma espécie de ministro da Marinha e da Guerra), Churchill enviou a Marinha britânica para a missão suicida de tentar apoderar-se do Bósforo, na Turquia. Mas, no estreito dos Dardanelos, a força de guerra britânica caiu numa emboscada que provocou a maior derrota da História da Royal Navy. Nos anos seguintes, sempre que Churchill intervinha no Parlamento, alguma voz de uma bancada rival atirava um aparte que tinha o especial condão de o pôr fora de si: “Então, e os Dardanelos?” Vamos ver se, em futuras intervenções de André Ventura, alguma voz de outra bancada não se porá a repetir: “Então, e as malas?…”

Sempre se “chega” aonde somos desejados

Cristina Rodrigues protagonizou a mais sensacional transferência do “mercado de inverno” entre eleições…

FOTO: Marcos Borga

Deputada eleita pelo círculo de Setúbal, em 2019, Cristina Rodrigues rompeu com o PAN, em junho de 2020, “de coração extremamente apertado”. Cristina acusava o PAN de se ter desvinculado de compromissos assumidos com os eleitores e de “condicionar” e “silenciar” o seu próprio trabalho, na bancada parlamentar, como deputada. “Infelizmente, não consigo adiar mais esta decisão e apenas a tomo por não ver outra saída e por acreditar que, ao adiá-la, poderia vincar ainda mais as divergências existentes e ser mais prejudicial para o partido, para mim e para as causas com que continuo a identificar-me”, assumia, numa nota enviada à Lusa. Ativista pelas causas ambientais e dos animais, nomeadamente, contra as touradas, Cristina Rodrigues viria a encaixar-se nas listas de candidatos a deputados pelo Chega, numa sensacional transferência, em 2022, e numa mudança ideológica de 180 graus. Mais do que os posteriores trânsfugas do PSD, esta foi uma das grandes aquisições do partido de André Ventura no “mercado de inverno” entre eleições e a deputada é vista frequentemente ao lado do líder em intervenções públicas.

Trump ameaça. Mas não morde. Está mais do que visto. Adora espalhar medo – agora quer aniquilar o Irão –, desconcertar aliados, provocar o mundo. Mas, no momento da verdade, recua. Vira o discurso. Desdramatiza. Está pior do que no primeiro mandato. Muito pior.

Até um trumpista ferrenho vê o absurdo: tropas americanas a ocupar Gaza, dois milhões de palestinianos arrancados do seu território? Impossível. Impensável. Ninguém aceitaria. Trump lança uma boca hoje, amanhã já mudou de assunto. É o seu padrão.

O problema é que os EUA não são um circo. São a maior potência mundial, pilar fundamental da NATO, e estão numa corrida desenfreada contra a China. E, de novo, Trump joga ao «Pedro e o Lobo». Agora ameaça o Irão. Alguém acredita?

Teerão não pode ter armas nucleares. Ponto final. Israel não hesitará em bloquear qualquer avanço decisivo. A Rússia já está a ajudar, com drones a troco de tecnologia. Os iranianos estão perto. Muito perto. Se chegarem lá, a teocracia será intocável. Pelos próximos séculos.

As tarifas foram um tiro falhado. Óbvio. Não foram os chineses, canadianos ou mexicanos a pagar. Seriam os americanos. Trump, espalhafatoso como sempre, terá milhões de ideias estrondosas nos quatro anos que aí vêm. Paciência e caldos de galinha!

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Bastaram dois telefonemas para o imprevisível Donald Trump adiar, durante um mês, os primeiros dois tiros da anunciada guerra comercial com que pretende impor a sua lei ao resto do mundo. Após conversas com a Presidente mexicana Claudia Sheinbaum e com o primeiro-ministro canadiano Justin Trudeau, Trump voltou atrás nas ameaças e congelou a entrada em vigor das tarifas aduaneiras de 25% sobre as importações dos dois países vizinhos.

Já em relação à China, como não houve diálogo com Xi Jinping, o Presidente dos EUA manteve o tiro e avançou com mais 10% de taxas aos produtos chineses, levando Pequim a retaliar, de imediato, com um arsenal de medidas, como que a demonstrar que está pronta para qualquer cenário de guerra: uma queixa na Organização Mundial de Comércio, uma taxa de 15% sobre o carvão e o gás natural liquefeito dos EUA, outra de 10% sobre o petróleo bruto, máquinas agrícolas e alguns modelos de veículos, além do anúncio de uma investigação à Google por violação das leis antimonopólio e ainda novas restrições sobre a saída de metais e produtos químicos raros essenciais para muitas indústrias norte-americanas. Perante o primeiro sinal do escalar do conflito, Trump mudou de postura e fez saber que deverá conversar “dentro de dias” com o Presidente chinês.

O primeiro dia da “guerra comercial mais idiota da História”, conforme foi qualificada pelo insuspeito e conservador The Wall Street Journal, ajudou a traçar o retrato que os líderes dos outros países vão encontrar quando forem desafiados pela Presidência de Trump – e todos têm a garantia de que, um dia, isso acontecerá.

Agora, já sabem o que os espera: uma catadupa permanente de ameaças, alicerçada numa postura ostensivamente beligerante, que contraria as regras estabelecidas. Tudo isto acrescido de uma atitude que revela um desprezo absoluto sobre as consequências dos ataques que desfere. Como se estivesse sempre a repetir: “Eu sei que até posso perder alguma coisa, mas garanto que vocês vão perder muito mais. E como eu sou o mais forte…”

Isolacionista por instinto político e protecionista por estratégia económica, Donald Trump está a demonstrar que este é o caminho que quer seguir para tentar resolver a difícil equação de liderar o país mais importador do mundo, mas que é, em simultâneo, o que possui o maior défice comercial do planeta. E se já interiorizou que não pode entrar, para já, num confronto direto com a China, resta perceber até onde irá a sua intenção de “pôr a Europa na ordem”, com quem os EUA têm a segunda menos favorável balança de transações comerciais.

O aparentemente inevitável braço de ferro entre Bruxelas e Washington será decisivo para o futuro da União Europeia. E se ainda podemos ter algumas fundadas dúvidas sobre a capacidade de união entre os 27 Estados-membros, ninguém duvida que Trump irá tentar dividir o bloco europeu ao máximo, aproveitando as suas fragilidades e contradições.

“Para quem é que eu ligo quando quero falar com a Europa?”, queixava-se Henry Kissinger, quando manobrava a política internacional dos EUA. Meio século depois, esse dilema ainda não foi desfeito e será, muito provavelmente, aproveitado pelo homem que, na Casa Branca, procura destruir a ordem interna e mundial, através de decretos presidenciais, como se fosse dono e senhor absoluto de todos os poderes.

As interrogações são muitas e, quase todas, de resposta difícil. Com quem falará Trump na Europa quando elevar a pressão, com o anúncio de novas tarifas? Com a dupla institucional Ursula von der Leyen e António Costa ou com os politicamente enfraquecidos Emmanuel Macron e Olaf Scholz? Ou será que prefere cavar divisões e privilegiar a conversa com os amigos Viktor Orbán e Giorgia Meloni? Será que vai decretar tarifas iguais para todo o bloco ou irá penalizar alguns produtos em detrimento de outros, de forma a prejudicar mais uns países e deixar outros com menos razões de queixa?

Apesar das dúvidas, há uma certeza: a forma como a União Europeia conseguir responder ao desafio que se aproxima será determinante para a sua existência.

Nestes tempos confusos e desafiantes, tem sido recordada a velha piada de Bernard Lewis, em que o historiador especializado em estudos orientais dizia que “se é arriscado ser-se inimigo da América, pode ser fatal ser seu amigo”. É bom que a Europa não se esqueça disso.

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A Swappie estima que os europeus têm guardados na gaveta mais de 700 milhões de telemóveis, com o desperdício a poder chegar aos 140 mil milhões de euros. A empresa, especializada na compra e venda de iPhone recondicionados, alerta que há aqui um potencial enorme para a economia circular.

A empresa revela que estes volumes aumentam tipicamente depois da época natalícia, na qual são comprados e oferecidos milhões de telefones em todo o mundo. O comportamento de comprar novo e depois substituir e guardar o velho agrava o problema de excesso de tecnologia e conduz à constituição de uma reserva adormecida de milhares de milhões de euros.

Emma Lehikoinen, diretora operacional da Swappie, afirma em comunicado que “promover a reabilitação dos telefones inativos é de extrema importância (…) Ao reintegrá-los no mercado, desbloqueamos um potencial económico significativo e contribuímos para a promoção dos recursos, reduzindo de forma substancial o volume de lixo eletrónico”.

Em Portugal, o estudo revela que mais de metade dos consumidores (77%) guardam os seus telemóveis antigos, mantendo materiais valiosos como ouro, cobalto, cobre e estanho, que são 80% recicláveis, fora do circuito. Dados da Comissão Europeia indiciam que a recolha de telemóveis no ‘velho continente’ tem taxas inferiores a 5%.

A reintegração destes aparelhos, principalmente depois do pico da época festiva, permite a oportunidade de reduzir o desperdício eletrónico, recuperar materiais valiosos e diminuir a necessidade de novos recursos. A empresa salienta que o processo está mais acessível, com sistemas de venda simplificados, avaliações rápidas e pagamentos mais ágeis.

Thea Kaplan-Lee e Teresa Lee aterraram em Lisboa ao cair da noite da última sexta-feira de janeiro. Chegaram cansadas, mas aliviadas porque tinham à sua espera um apartamento mobilado, um sábado luminoso de sol e, sobretudo, um País em democracia plena. Para trás, as duas americanas deixavam os seus amigos de sempre e um belo condomínio fechado em San Diego, onde a Califórnia cola com o México. Para a frente, a grande expetativa de ambas é a de ficarem longe da influência do novo inquilino da Casa Branca.

“Quando Trump ganhou, em novembro, pensámos: ‘Graças a Deus que já iniciámos o processo de nos mudarmos para Portugal’”, recordara Thea, ainda a fazer as malas, ao telefone. “É tanto o ódio que não nos sentimos seguras nos Estados Unidos”, explicara a antiga funcionária pública, que nas últimas duas décadas trabalhou num hospital de veteranos. “Eu consigo esconder que sou judia, mas como a Teresa é de origem mexicana e o seu pai era cantonês, pertence visivelmente a uma minoria. E nós estamos juntas há 30 anos e somos casadas, mas parámos de nos apresentar como casal a estranhos.”

Janet e Bill Morris
“Tínhamos orgulho de ser americanos, agora não”

Agora, Janet, de 66 anos, e Bill, de 67, confessam sentir-se embaraçados quando dizem de onde vêm. Planeavam vir por dois anos, mas a eleição de Trump já lhes trocou as voltas e compraram uma casa em Tondelinha, perto de Viseu, para onde se mudarão ainda este mês

Há um ano e meio, pela mesma altura em que Donald Trump era confirmado como candidato a Presidente pelo partido Republicano, Thea e Teresa estavam, antes de mais nada, interessadas em saber qual era o país mais seguro do mundo para os expatriados americanos. Quando Portugal lhes apareceu em sexta posição, decidiram vir verificar in loco e ficaram de tal maneira rendidas com a qualidade de vida, a tranquilidade e a simpatia das pessoas que começaram a tratar da mudança.

Hoje, garantem que a política seria a primeira razão para saírem dos Estados Unidos e acreditam que não são as únicas a pensar assim. “Não é apenas a comunidade gay ou os judeus que estão com medo”, sublinha Teresa. “Há muita gente aterrorizada com o que sai da boca de Trump. Rezo para que ele não tenha influência no resto do mundo, porque é mesmo muito perigoso. E é assustador pensar que teve mais de 77 milhões de pessoas a votar nele.”

Falar em êxodo será exagero ou prematuro, mas a verdade é que, mal se conheceram os primeiros resultados que apontavam para a vitória de Donald Trump sobre Kamala Harris, os americanos começaram a pesquisar no Google “Mudar-me para Portugal”. E o pico aconteceu escassos minutos após o discurso do vencedor, com as procuras a serem registadas sobretudo em Oregon, Colorado e Washington, estados onde o mapa se preencheu a azul, a cor do Partido Democrata.

Após a noite eleitoral, a HousingAnywhere, uma plataforma de arrendamento de médio prazo da Europa, registou um aumento de quase 400% nos utilizadores americanos, sendo que 66% focaram-se em Portugal, Espanha e Itália. E, até ao final dessa semana, a procura não iria abrandar, contabilizou a consultora imobiliária Athena Advisers: entre 6 e 9 de novembro, os termos “Portugal Property” e “Portugal Golden Visa” registaram o maior número de pesquisas nos Estados Unidos dos últimos cinco anos.

Um país liberal

Por esses dias, Allison Baxley, que fundou o blogue Renovating Life pouco depois de se mudar para Cascais com o marido e os dois filhos, em 2021, enviou um email geral e recebeu várias respostas de seguidores seus que disseram-lhe estar “a acelerar os prazos antes da tempestade”.

“As pessoas lembram-se da tensão mental que as afetou diariamente durante o primeiro mandato de Trump”, conta esta americana que fez uma tatuagem com um galo de Barcelos num tornozelo. “E agora sentem que precisam de sair rapidamente, antes de ele tomar todas as medidas anunciadas.”

Uma delas é Stacey Gunderson, de 52 anos, que vive na região de Kansas City, num estado onde não se vota num democrata para Presidente desde Lyndon B. Johnson, em 1964. Dir-se-ia que já podia estar habituada a viver num mundo vermelho, mas a eleição de Trump foi “a palha que quebrou as costas do camelo”, escreveu ela, sem perder o sentido de humor.

Foto: Lucília Monteiro

Ray e Gislaine McCall
“Já nos sentíamos inseguros”

Os casos de violência estavam a acontecer cada vez mais perto de casa, em Orlando. A hostilidade aumentou com a ascensão de Trump. E Ray e Gislaine, ambos de 62 anos, começaram a ouvir dizer em voz alta que os direitos civis eram desnecessários

“Estou tão desiludida com o povo americano. Pensava que éramos melhores do que isto. Se pudesse, metia-me num avião amanhã… Mal posso esperar para sair daqui. O meu contrato de arrendamento termina em julho, por isso estou a tentar organizar-me para essa altura. Sou solteira e não tenho filhos (livre como um pássaro!), os meus pais já morreram há muitos anos, por isso não há nada que me prenda aqui. Atualmente, trabalho no processamento de pedidos de imigração, a nível federal. Tenho de arranjar uma maneira de ganhar dinheiro, não sei bem como o fazer. Mas estou muito determinada a sair daqui! Quem sabe, talvez encontre o meu marido europeu, ah, ah!”, brinca.

Como Stacey, muitos democratas acreditaram até ao fim, mas o medo de uma presidência Trump e a opção Portugal já eram palpáveis há algum tempo. Em março, a revista Fortune entrevistara várias pessoas que tencionavam abandonar o país caso Kamala perdesse – e nem a crescente toxicidade política na Europa, à imagem do que se passa há uma década nos Estados Unidos, as assustava.

“São todos uma espécie de Trumps bebés, por isso não me vou preocupar com isso”, dizia, então, David, um advogado de 65 anos, de Chicago, em vésperas de fazer uma viagem de reconhecimento a Lisboa e ao Porto. “Portugal foi sempre um sítio bastante liberal [de esquerda, no sentido americano do termo]. Não estou muito preocupado.”

Vistos fáceis

Portugal aparecia na revista como um dos “países mais fáceis para onde emigrar”, destacando-se o visto D7 ou visto de rendimentos passivos, destinado a pessoas que têm rendimentos regulares e estáveis, como reformados, investidores ou aqueles que têm outras fontes de renda passiva, e o visto gold ou visto de empreendedor, que deixou de poder ser obtido através da compra de imobiliário, mas permite o investimento noutros setores de atividade, incluindo aplicações em fundos de private equity (comprando participações em empresas para financiar a sua expansão).

A Tejo Ventures é um exemplo de fundo de qualificação para o visto gold, cujo criador, Julian Johnson, gosta de comparar com um cavalo de Troia para investir no clima. Na noite das eleições, Julian começou a receber mensagens de americanos e agora já tem mais 34 interessados em investir no próximo fundo.

Entre eles estão Sarah, de 42 anos, e James, de 45, dois profissionais de tecnologia na zona de São Francisco. As suas filhas Emma, de 8, e Olivia, 6, andam numa escola privada progressista em Mountain View. “E eles, como pais de meninas, têm observado com crescente preocupação as recentes mudanças nos direitos reprodutivos em vários estados”, conta Julian.

Michael e Kelly Barrett
“As coisas têm estado loucas”

Com tudo o que anda a acontecer nas últimas semanas, nos Estados Unidos, Michael, de 68 anos, e Kelly, de 64, garantem que não se arrependem da decisão de em breve virem a trocar a sua casa em Mendocino, na Califórnia, por um apartamento arrendado no Porto

Embora a Califórnia mantenha uma forte proteção, Sarah e James preocupam-se com as tendências nacionais e com a futura liberdade de escolha das suas filhas, sobretudo desde que surgiram restrições a nível estatal no acesso aos cuidados de saúde das mulheres.

A nova administração Trump é mais uma incerteza no caminho. Por isso, veem o visto gold português como um plano B apelativo, explicaram. “Ao mesmo tempo que mantêm as suas carreiras, estão a preparar-se gradualmente para uma possível transição que garantiria as opções futuras das suas filhas.”

O D7 é de longe o mais pretendido hoje, sabe-se de cor nos escritórios da consultora Ei! Assessoria Migratória, onde o aumento da procura pelos seus serviços (que vão dos vistos ao arrendamento ou à compra de casa) materializou-se logo após a noite de 5 de novembro.

“Só nesse mês, fizemos 98 consultas migratórias com americanos – quase quatro vezes mais do que a média”, conta a CEO, Gilda Pereira. “A maioria destas consultas (71) foi para possíveis vistos D7, doze para vistos do tipo D8 [criados para atrair profissionais que podem trabalhar remotamente de forma independente ou para empresas sediadas fora do país] e duas para vistos de empreendedor” (ver entrevista).

Atualmente, nem o fim do regime fiscal dos residentes não habituais (RNH) parece afastar os potenciais interessados. Recorde-se que esse estatuto, que fixava a tributação em sede de IRS das pensões em 10% e a do trabalho em 20%, durante dez anos, era interessante para os americanos porque os Estados Unidos continuam a cobrar impostos federais mesmo quando os seus cidadãos vivem no estrangeiro.

“O interesse era maior antes de Portugal mexer no visto gold e no RNH”, sabe Jen Wittman, fundadora do site Everyday Portugal, nascido das publicações e histórias reais dos membros do grupo no Facebook Californians Moving To/Living In Portugal, “mas acredito que a vitória de Trump acelerou o processo de mudança para Portugal por parte de quem já estava a planear mudar-se para cá.”

Apoiadas pela Ei! Assessoria Migratória, Thea e Teresa tinham há muito a viagem marcada para 31 de janeiro. Amanda e Glen Sharp, também clientes de Gilda Pereira, estão mais atrasados no processo, mas há uns dias conseguiram acelerá-lo e escolheram voar rumo ao Porto a 1 de maio (uma data simbólica porque Glen foi sindicalista até se reformar recentemente).

O medo da catástrofe

Os dois só entregaram os papéis para os vistos a 21 de janeiro, em Washington DC, e temem que a quantidade de funcionários públicos dispensados por ordem de Trump possa tornar tudo mais lento. Mas estão a fazer figas porque sentem “uma urgência em sair”, dirá Amanda no dia seguinte, durante a viagem de carro de regresso a Hickory, a simpática cidadezinha da Carolina do Norte para onde se mudaram há dois anos com o objetivo de ficarem a morar perto dos dois filhos e dos dois netos.

“Ficámos surpreendidos e deprimidos com as eleições e decidimos que não podíamos ficar mais tempo nos Estados Unidos”, conta. “Não estamos a ver que as coisas melhorem nos próximos quatro anos, pelo contrário. O que vemos é as boas coisas da América a degradarem-se.”

Foto: José Carlos Carvalho

Natasha Donets e Dean Stepánek
“Viemos à procura de paz”

Sobre a vizinhança na Lagoa de Óbidos, Natasha, de 65 anos, e Dean, de 84, só têm boas coisas a dizer. E acreditam que o ritmo mais lento da sociedade traduz-se numa maior amabilidade para com os outros

São 11 da manhã na Costa Leste americana, 4 da tarde em Lisboa e o sol brilha bastante mais lá do que cá, dará para ver durante a videochamada com que galgamos os 3 mil e muitos quilómetros a separar-nos – e sem falhas na rede, obrigada ó deuses da tecnologia. Glen vai participando na conversa sem tirar os olhos da estrada.

Num instante ficamos a saber que os dois viveram 18 anos na Califórnia e algum tempo em Oregon. Nascido na Alemanha, Glen era presidente de um sindicato. Amanda foi diretora dos serviços sociais de um grande condado californiano e mantém-se como consultora na área da pobreza extrema e apoio aos sem-abrigo.

“Quisemos sempre ajudar o maior número de pessoas nas nossas causas”, frisa ela. “E por isso não podemos ficar sentados a ver o que está a acontecer, é realmente doloroso assistir ao desmantelamento de tudo o que andámos a fazer.”

A urgência de sair é de agora, mas o plano de passarem a reforma algures na Europa começou a ser pensado durante a pandemia, por causa do stresse diário e da vontade de continuar “a fazer o bem” fora dos Estados Unidos. No verão passado, estiveram três semanas em Portugal e exploraram o País, escolhendo sobretudo terras pequenas e pouco turísticas. Aprenderam sobre a cultura, tentaram falar a língua e apaixonaram-se pelo Alentejo.

Perto de Évora, no meio do Cromeleque dos Almendres, guiados por uma arqueóloga, sentiram-se em casa. “O terreno, a temperatura… tudo nos fazia lembrar o sítio onde morámos, na Califórnia”, recorda Amanda. “Conversámos muito os três sobre as eleições e, mal soubemos da vitória de Trump, ligámos-lhe e ela pôs-nos imediatamente em contacto com a Ei!”

Além de Évora, Óbidos e Nazaré eram duas boas hipóteses, mas calhou o genro português de uma amiga ter um apartamento vago no Porto. Na pressa de apresentar uma morada, com um ano inteiro de renda, para poderem candidatar-se aos vistos de residência, Amanda e Glen vão então começar a aventura pelo Norte, esperando já festejar o próximo 1.º de Maio nas ruas da Invicta. “E temos a esperança de que os nossos filhos nos sigam, porque também estão fartos disto tudo”, adiantam.

Em Portugal, os dois aperceberam-se de que os portugueses “não adoram” ver tantos americanos a mudar-se, mas dizem querer investir no País, tentando replicar o que fazem em Hickory. E não se riem quando lhes perguntamos se se reveem na ideia de “refugiados de Trump”.

“O conceito de refugiado é muito restritivo”, lembra Glen, “e nós neste momento estamos seguros, somos americanos e temos propriedade. Mas existe o elemento do medo. Nos primeiros dois dias, Trump retirou os Estados Unidos da Organização Mundial de Saúde e do acordo climático de Paris – e isso foi só o início. Visitámos ontem o Museu do Holocausto, em Washington, e encontrámos muitos paralelismos com a linha do tempo nazi. Temos a noção de que realmente pode vir aí uma catástrofe.”

A atração do Porto

Uns dias mais tarde, vencida a distância entre Lisboa e Mendocino, na Califórnia, graças a mais uma videochamada, Kelly e Michael Barrett riem-se quando atiramos para a mesa a ideia de refugiados. “Já falámos sobre isso, a brincar”, conta Kelly, “mas se calhar devíamos mesmo esperar para poder ser refugiados políticos. Só que não dá para esperar, queremos viver em democracia. É bastante chocante o que se passou em novembro. Eu tinha confiança de que Kamala ia ganhar e que o país ia recuperar o juízo.”

Depois de duas temporadas de férias em Lisboa e no Porto, os dois já decidiram que vão trocar a casa onde moram, construída por um açoriano, por um apartamento arrendado na cidade nortenha. Michael nasceu na Irlanda e sempre gostou do tempo cinzento. Kelly está cansada do sol e do calor californianos.

Os dois ainda estão à espera da marcação do consulado em São Francisco, que segundo a Ei! deverá ser em meados de abril. Até lá, irão começar a receber aulas de Português para poderem chegar a Portugal e conversar à vontade, até sobre política. “Antes, o debate era possível aqui, as pessoas podiam não concordar umas com as outras, mas ouviam”, recorda Michael. “Agora, sentimos que não podemos falar uns com os outros. É como se as pessoas já não se vissem como pessoas.”

Glen e Amanda Sharp
“Existe o elemento do medo”

O conceito de refugiado é restritivo, lembram Glen, de 65 anos, e Amanda, de 57. Mas os dois encontram muitos paralelismos entre a administração Trump e a linha do tempo nazi e têm a noção de que pode vir aí uma catástrofe

No Porto, ambos esperam também continuar a trabalhar nas suas coisas, embora já estejam semirreformados. Kelly é uma artista visual e escreve sobre temas feministas (vale a pena espreitar os seus sites, Madzoga e 100 Eyes). Michael ainda dá aulas de cibersegurança e faz boa música eletrónica, que partilha no seu site Auld Mister Be.

Na última segunda-feira, entre trocas de mensagens e de fotografias, Michael desabafou: “Dado o quão loucas as coisas têm estado nas últimas duas semanas, não nos arrependemos da nossa decisão!” Só vai custar-lhes deixar para trás a mãe de Kelly, uma senhora progressista de 90 anos que foi logo avisando que não quer ir para longe dos seus amigos.

O Porto parece ter um íman especial para os americanos que não veem a hora de sair dos Estados Unidos. Serão muitas as razões, mas Gislaine e Ray McCall destacam, à cabeça, o facto de a cidade ter um ritmo mais lento do que o de Lisboa. Haviam ficado com essa sensação numa primeira visita a Portugal, onde também repararam nas muitas colinas e escadarias da capital, e já a confirmaram.

Nos Estados Unidos, Gislaine era enfermeira pediátrica gestora de casos e Ray administrava um lar de idosos. No dia 12 de dezembro, os dois chegaram de Orlando, na Flórida, com algumas malas e muita vontade de conhecer a cidade a pé, agora que estão reformados e têm tempo de sobra.

A partir dos Aliados, onde arrendaram um apartamento mesmo defronte da Câmara, também com o apoio da equipa de Gilda Pereira, têm estado a explorar vários bairros. Em menos de dois meses, já encontraram a sua família religiosa (são adventistas do Sétimo Dia), jogaram bowling com outros expats e visitaram museus e igrejas, “todas lindíssimas”.

Em abril, Ray tem a sua reunião na AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) de Braga; Gislaine ainda está à espera de marcação. Querem muito receber os vistos D7 rapidamente e avançar com a compra de uma casa, mas com os cuidados naturais de quem não tem grande margem financeira para investir, explica ela. “Sabemos que não queremos andar de carro, por isso precisamos de bons acessos e de transportes. A vida no Porto é 40% mais barata do que em Orlando, mas a habitação não.”

Racismo e violência

Numa bela manhã de sol, fazemos-lhes companhia num passeio pela Baixa que tem início à portuguesa, com uma paragem no clássico café Ateneia, na Praça da Liberdade, onde os dois já são clientes. Damos-lhes a provar casquinhas de laranja cobertas de chocolate (“Vamos ficar viciados!”, brincam) e depois subimos a Sá da Bandeira, seguimos por Santa Catarina e acabamos no Mercado do Bolhão.

A conversa é menos doce, por culpa de Trump, claro. Se é verdade que Gislaine e Ray já planeavam viver os anos da reforma na Europa, tudo o que tem acontecido nos últimos meses deixa-os preocupados com as duas filhas e a neta que ficaram nos Estados Unidos. “Cada coisa contada separadamente não parece muito, mas tudo junto é no mínimo desconfortável”, dirá ele, a certa altura, depois de um longo desabafo que começa no facto de ser afro-americano.

As medidas de Donald Trump

Tomou posse a 20 de janeiro e já deixou um rasto de decisões e anúncios polémicos

Imigrantes
Detenção de imigrantes ilegais na prisão de Guantánamo; deportações em massa de pessoas sem papéis usando aviões militares; fim do direito à cidadania por nascimento em solo norte-americano (decreto já bloqueado por um juiz federal); declaração de emergência nacional na fronteira com o México, com implicações no uso da militarização; suspensão do programa de refugiados

Diversidade
Fim da assistência médica para transição de género antes dos 19 anos; proibição da presença de mulheres trans nas prisões femininas; exclusão de soldados transgénero do exército; encerramento de programas governamentais de diversidade; determinação da existência de apenas dois géneros, feminino e masculino

Ambiente e Saúde
Os EUA saíram do Acordo de Paris e da Organização Mundial da Saúde; fim do objetivo de atingir 50% de carros elétricos até 2030; fim da regulação sobre poluição emitida pelos tubos de escape; facilitação do uso de fontes de energia como carvão ou petróleo

Pobreza
Suspensão de programas federais de apoio aos mais carenciados; suspensão de quase toda a ajuda humanitária internacional, à exceção de Israel e Egito

“Para mim, foi sempre complicado, mas a hostilidade aumentou com a ascensão de Trump. Ao nível do Estado, começámos a ouvir dizer em voz alta que os direitos civis eram desnecessários. Parecia que estávamos a andar para trás. E eu, como pessoa de cor, ouvi coisas que nunca tinha ouvido antes e comecei a sentir-me inseguro”, confessa.

Os dois interrompem-se à vez para falar da erosão dos serviços, da influência negativa de Elon Musk, da incerteza face ao futuro. Dizem não saber do que Trump é capaz e lembram que as mentiras são amplificadas porque as pessoas sentem-se validadas pelo Presidente. Sentiam-se a viver num país cada vez mais polarizado e violento politicamente e socialmente.

“Os casos de violência costumavam ser muito longe, mas passaram a acontecer cada vez mais perto, mesmo ao nosso lado, na Disneylândia”, lembra Gislaine. “E, agora, já na administração de Trump, é impensável o que estão a fazer com os imigrantes, aquelas deportações todas.”

Filha e neta de brasileiros, nascida em S. Paulo e desde os 8 meses a viver em Newark, junto com a comunidade portuguesa, Gislaine falou Português antes de falar Inglês. Agora, sente-se insegura na língua e quer reaprendê-la e também saber ler “como deve ser”. O Porto tem um certo sabor a voltar a casa, porque um dos seus avôs era português, dirá.

A graça de terem sido desafiados pela Lucília Monteiro, repórter fotográfica da VISÃO, a irem com ela ao concerto que Kiko Pereira vai dar na próxima sexta-feira, 7, no Hot Five, ainda é melhor quando ficarem a saber que o cantor e compositor nasceu em Nova Iorque e vai atuar com a sua banda, os The Blue Refugees.

Uma lagoa e mais sabor

As histórias boas sucedem-se, sorte a nossa. Em mais um dia de sol, viajamos até à Lagoa de Óbidos para conhecer Natasha Donets e Dean Stepánek que ali arrendaram uma casa “para encontrar paz”, e somos recebidos com sorrisos, chá, aquecimento no máximo e tigres-siberianos.

Casados há trinta anos, Natasha e Dean conheceram-se em Moscovo, quando ele foi lá divulgar um projeto. Americano, filho de um checo e de uma inglesa, Dean era diretor de uma agência federal e pioneiro nas políticas contra o aquecimento global. Russa, agora com dupla nacionalidade, Natasha era investigadora da área do ambiente e fazia parte da corrida para salvar o tigre-siberiano de extinção.

A ideia vaga de se mudarem para Portugal surgiu após uma viagem ao Algarve, onde se apaixonaram por Salema. De regresso aos Estados Unidos, aperceberam-se de que estavam com saudades de Portugal, mas foi só quando viram numa revista internacional um artigo sobre o advogado João Pinto Gonçalves que começaram a fazer planos. Uma primeira conversa com o especialista em imigração da SBPS legal, habituado a tratar de tudo, dos vistos às casas, levou-os a avançar.

“As coisas nunca estiveram tão divididas nos Estados Unidos como agora”, voltamos a ouvir. “E temos a certeza de que os primeiros quatro anos de Trump na Casa Branca não foram nada comparando com os quatro que aí vêm”, antecipa Dean. Vai ser mais eficaz, no pior dos sentidos.

Teresa Lee e Thea Kaplan-Lee
“É tanto o ódio nos Estados Unidos”

Inicialmente, Teresa, de 64 anos, e Thea, de 68, escolheram Portugal pela segurança, a qualidade de vida, a tranquilidade e a simpatia das pessoas. Acabadas de chegar a Lisboa, dão graças por ter “escapado” a Trump

O casal Donets-Stepánek chegou a Lisboa com seis malas no dia 4 de julho, por acaso, porque Natasha esteve a trabalhar até ao último momento. Entretanto, viram na internet que em Óbidos havia uma das maiores lagoas da Europa, única no seu género, e mudaram-se em outubro.

“Como somos ambos birdwatchers, ficámos encantados”, conta Natasha. “E enquanto Seattle é escuro, nublado, e está sempre a chuviscar, aqui os dias são luminosos. Nadei na piscina até meados de novembro! Damos passeios a pé e quando queremos dar umas voltas mais longe usamos um carro alugado.”

Sobre a vizinhança só têm boas coisas a dizer. “As pessoas são muito tolerantes e prestáveis. Penso que o ritmo mais lento da sociedade traduz-se numa maior amabilidade para com os outros”, analisa Dean. Quanto a Natasha, como adora cozinhar, anda feliz. “Aqui tudo tem mais sabor, até as coisas mais simples como o leite e o iogurte. Já para não falar de como são mais baratas.”

No futuro próximo, provavelmente no final do verão, planeiam ir para sul, à procura de um tempo mais seco. Em princípio, mudam-se para o Algarve e talvez escolham Salema, que acham linda. Why not? “A vida é curta”, remata Dean, com um sorriso trocista.

Escolher o interior

A meia hora de carro dali, Janet e Bill Morris já estão quase de malas aviadas e prontos a trocar o apartamento que arrendaram em S. Martinho do Porto por uma casa em Tondelinha, perto de Viseu. A mudança está semimarcada, algures entre os dias 10 e 20 deste mês. Um ano em Portugal é suficiente para os dois americanos saberem que as obras demoram sempre mais um pouco do que aquilo que estava previsto; além disso, não estão cheios de pressa para abandonarem uma das melhores vistas para o “Bidé das Marquesas”.

Bill gosta de História e de histórias, embora a sua vida profissional o tenha levado por outros caminhos – fundou uma empresa de reciclagem de material informático que emprega pessoas com o espetro do autismo e outros transtornos mentais (e hoje está nas mãos do seu filho). Antes de descermos ao areal, a pretexto de passear Murphy, o labrador que também veio do Colorado, rimo-nos com a ideia de a baía ter ganho esse cognome.

O namoro dos Morris com Portugal começou há vários anos e foi sendo alimentado ao longo do tempo. Visitaram-nos em 2017, repetiram em 2019, interromperam com a pandemia e regressaram em 2023, passando, então, um mês em Coimbra, mas visitando dezenas de cidades ali à volta.

AMERICANOS EM PORTUGAL

Quantos são e quanto gastam

14 126
Residentes, em 2023 Ainda não há dados de 2024

44,2%
Aumento relativamente a 2022Nesse ano, residiam 9 794

567
Vistos gold concedidos, em 2023 Ainda era possível investir em imobiliário

779,7
Milhares de turistas americanos Apenas de janeiro a maio de 2024

692,2
Milhões gastos por turistas americanos Durante esse mesmo período

Fontes: Relatório de Migrações e Asilo de 2023; INE

“Gostámos da atitude dos portugueses que conhecemos, achámos que eram muito descontraídos, abertos e simpáticos”, recorda Janet, “mas não sabíamos onde queríamos aterrar. E nessa altura havia um grande problema com a habitação no País e nós não queríamos fazer parte do problema.”

Uma noite, em Alcobaça, a dona do restaurante Pratus fez-lhes uma pep talk, incentivando-os a não desistirem. Nessa noite, no hotel, os dois tomaram a decisão de se mudarem para Portugal. O apartamento onde agora conversamos e que está prestes a perder estes inquilinos foi encontrado por Janet num site, e arrendado à distância depois de uma pessoa da empresa Portugal the Place ter ido confirmar se estava tudo conforme o anúncio.

Inicialmente, tinham pensado vir por dois anos. A eleição de Trump convenceu-os a ficarem por um tempo indeterminado, por isso compraram a casa em Tondelinha, que já vinha com árvores de fruto e até uma piscina. A vila tem ainda a vantagem de estar mais próxima de um grande hospital (Bill ficou com um problema cardíaco após a Covid).

“Detesto dizê-lo, mas é embaraçoso sermos americanos”, confessa Janet, às despedidas. “Costumávamos ter orgulho, agora temos vergonha”, concorda o marido. “As boas maneiras desapareceram com o atual Presidente. Como é que ele consegue dizer todas aquelas coisas e safar-se?!”

A estupefação reina entre os Morris, ouvimos, tanto que existe a esperança de os dois filhos do casal se mudarem com as respetivas famílias num futuro não muito longínquo. Bill e Janet recomendam-no vivamente. “Nós tínhamos o sonho de viver noutro país, para termos uma perspetiva diferente do mundo, mas entretanto casámos e aconteceram os empregos e as crianças – ou seja, a vida”, resume ele. “E agora este ano estivemos a conhecermo-nos outra vez.”

O calor da solidariedade

Apostamos que aconteceu algo de semelhante com Mary Beth e Christopher Zimmerman, mas a conversa não há de ir por esse caminho e ficamos sem saber se ganhamos a aposta. No Parque do Bonfim, junto ao estádio do Vitória de Setúbal, começamos por falar de caminhadas, a maneira que os dois americanos encontraram para ficar a conhecer bem a cidade e arredores, ao mesmo tempo que fazem amizades e aumentam a média de passos dados por dia, e acabamos a falar da cidade.

Três vezes por semana, lá vão eles em grupo sempre animado e sempre maior. Parece que os estrangeiros descobriram os encantos da Margem Sul e de Setúbal em particular? Christopher ri-se, sai-se com um “Claro!” quase sem sotaque e comenta, novamente em Inglês: “Este é o melhor sítio para viver se gostamos de peixe.”

Originalmente de Nova Iorque, ele, e do Ohio, ela, os dois moraram juntos em Arlington, com o rio Potomac a separá-los de Washington DC. Enquanto Mary Beth foi trabalhando em vários departamentos governamentais (Energia, NASA, Transportes), mas sempre em cargos não políticos, Christopher pertenceu ao poder local durante 18 anos, até se dedicar a uma organização nacional sem fins lucrativos.

Christopher Zimmerman
“Quis estar cá no 25 de abril de 2024”

Christopher, de 65 anos, que há quase dez meses se mudou com a mulher para Setúbal, diz-se “um político em recuperação”. Nos Estados Unidos, era democrata. Em Portugal, agradece ainda existir solidariedade

Após a reforma de Mary Beth, em 2021, Christopher trabalhou mais um ano e começou a dar aulas (que ainda mantém, online). Quando o mundo reabriu no pós-pandemia, os dois escolheram passar em Lisboa parte dos verões de 2022 e 2023, e gostaram tanto dessas experiências que em abril seguinte mudaram-se para Setúbal, com a ajuda da Ei! Assessoria Migratória.

“Viemos no dia 23, porque eu queria cá estar no dia 25 de abril de 2024, não ia perder a festa dos 50 anos”, conta o nosso entrevistado que já passa por português, muito graças ao boné de fazenda. “É o País mais acolhedor que conhecemos e há boa comida, história, futebol… Temos tudo isto a um minuto de casa, um sonho. Além disso, eu nos Estados Unidos era democrata; a minha família política é mais parecida com a daqui. Portugal ainda não perdeu a solidariedade.”

Aquilo que Christopher cala grita mais alto do que as suas palavras. “Uma vez político, para sempre político”, dizemos-lhe, e ele ri-se. “Sou um político em recuperação. Agora, ouço rádio e vejo televisão em Português e assino o Público, que ainda leio com dificuldade. Interesso-me mais pelas notícias de cá do que pelas notícias dos Estados Unidos. Já fui visitar as minhas filhas e tive saudades de Setúbal.”

Tão cedo Thea e Teresa não se imaginam a regressar aos Estados Unidos. Ainda se lembram bem da sensação de insegurança. “Nunca tínhamos sentido isso na nossa vida”, diz Thea. “E, em Lisboa, acredito que não vou sentir-me desconfortável em dizer: ‘A minha mulher, Teresa’.”

O imobiliário nas alturas

Depois das eleições de novembro, as consultoras imobiliárias registaram um aumento da procura de casas por americanos

“A política é uma das razões mais frequentemente citadas para a recente onda de migração americana para Portugal a que temos assistido na Athena Advisers. E, ainda que Portugal e a Europa não estejam isentos das suas próprias questões políticas e sociais, com o acesso à habitação na ordem do dia, a moderação da retórica divisiva faz com os americanos sintam o nosso país como um refúgio, onde contam com um ambiente estável, um sistema de saúde público bem classificado a nível mundial e custos de saúde privados muito inferiores aos equivalentes americanos, além de escolas internacionais de excelência”, refere, num comunicado, David Moura-George, diretor da consultora imobiliária em Portugal, acrescentando que “apesar da subida global e generalizada dos preços, o custo de vida em Portugal continua a ser um atrativo, especialmente se o compararmos com as grandes cidades dos Estados Unidos que muitos americanos estão a deixar para trás”.

Entre 2019 e 2024, foram emitidos 15 218 vistos de residência a cidadãos americanos, segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Naturalmente, não serão apenas os americanos a inflacionar o nosso mercado imobiliário, mas o conjunto de compradores estrangeiros – que representaram cerca de 12% do volume de vendas em 2024 – tem um peso significativo.

No arrendamento, os preços voltaram a subir em janeiro (4,1%, segundo o portal Idealista), tendo agora o metro quadrado um custo mediano de 16,4 euros (21,9 euros/m2 em Lisboa e 17,8 euros/m2 no Porto).

Já nas vendas, e segundo os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística, o valor mediano do preço aumentou 10,8% no terceiro trimestre de 2024 face a igual período do ano anterior. Paga-se 1 819 euros por metro quadrado no País, sendo que o valor em Lisboa ascende aos €4 252 e no Porto aos €2 940.

Apesar do aumento dos preços, de acordo com a Athena Advisers os imóveis no segmento médio-alto “continuam competitivos quando comparados com outras capitais europeias”, exemplificando ao Jornal de Negócios: o preço dos imóveis no segmento residencial “prime” numa boa localização em Lisboa ronda, em média, os nove mil euros por metro quadrado, “ao passo que a média de outras capitais na Europa atinge os 16 mil euros por metro quadrado”.

São valores estratosféricos, ainda assim, para as famílias portuguesas, tanto no mercado do arrendamento como no da compra, que têm afastado a classe média e os mais pobres dos centros das cidades.

“A História repete-se”

Os americanos já representam cerca de 40% nos serviços da consultora

Não é a primeira vez que Portugal assiste a uma grande procura por parte de americanos, pois não?
A 5 de novembro de 2016, na primeira vitória de Donald Trump, o nosso servidor não aguentou e a caixa de email entupiu. Logo no ano seguinte, começaram então a vir os primeiros “refugiados”. A história repete-se.

Durante a pandemia também chegariam muitos.
Em 2021, começaram a procurar países apetecíveis para trabalhar remotamente ou para se reformarem, e foi a loucura. Aumentei a equipa e abri um outro setor de negócio, a Casa Portuguesa, porque eles queriam comprar casas à distância.

Diria que estamos na terceira leva?
Sem dúvida. Só em novembro do ano passado, fizemos 98 consultas migratórias com americanos – quase quatro vezes mais do que a média. A maioria (71) foi para possíveis vistos D7 [ou visto de rendimentos passivos, destinado a pessoas que têm rendimentos regulares e estáveis, como os reformados], doze para vistos do tipo D8 [criados para atrair profissionais que podem trabalhar remotamente de forma independente ou para empresas sediadas fora do país] e duas para vistos de empreendedor [vistos gold], entre outras.

Gilda Pereira, CEO e fundadora da Ei! Assessoria Migratória

Luís Montenegro considerou esta quarta-feira, durante o debate quinzenal, na Assembleia da República, que a criação de duas empresas imobiliárias de Hernâni Dias quando já era governante foi “uma imprudência” e que este “fez bem” em demitir-se do cargo de secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território. “A participação em duas empresas que foram criadas foi uma imprudência do senhor secretário de Estado, claro que foi, e foi por isso que ele assumiu a dimensão política”, disse o primeiro-ministro.

O agora ex-secretário de Estado demitiu-se a 28 de janeiro depois de ter sido noticiado que criou duas empresas imobiliárias enquanto exercia funções governativas. Hernâni Dias era responsável por um decreto, recém-publicado, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, a lei dos solos. O primeiro-ministro considerou não ser correto falar em “incompatibilidades ou negócios” uma vez que “a atividade dessas empresas foi zero”.

As declarações de Montenegro surgiram na sequência de uma questão de André Ventura sobre o caso da demissão de Hernâni Dias. O líder do Chega questionou Montenegro do porquê de terem passado vários dias até ao afastamento de Dias do cargo e alegou que “ser sério é dizer a quem comete crimes a porta da rua é a serventia da casa”. Ventura criticou ainda a estratégia do Governo de “ficar em silêncio”, dizendo que “isso é tudo menos ser sério”.