No dia 31 de outubro, Dia da Reforma, e na sequência da “Década de Almeida” – João Ferreira de Almeida foi o primeiro tradutor da Bíblia para a nossa língua – a Sociedade Bíblica de Portugal realizou, na Casa da Baía, a VII Jornada “A Bíblia de Almeida: Da unidade à diversidade”. Este ano, o evento decorreu em Setúbal, onde tive a grata oportunidade de ser orador convidado e na qual falei sobre o tema “Bocage, Deus e a Bíblia”, numa ligação cultural à cidade do Sado.
Bocage não era ateu. Antes de mais, o poeta era crente em Deus. É o que se pode apreender do seu soneto “As Contradições do Ateísmo” (1791), no qual verbera um “novo Orestes”, que apelida de “infeliz” e até “blasfemo”, por não crer no “Omnipotente”. Mas o vate não acreditava num deus qualquer. Ele cria mesmo no Deus-Criador. Discorrendo sobre a Natureza no soneto “A Existência de Deus, Provada pelas Obras da Criação” (1791), o poeta atribui a tudo, desde o “vil mosquito” e a “próvida formiga” até aos oceanos, o céu e os astros, a obrigação de confessar Deus: “Tudo que há Deus a confessar me obriga.”
Veja-se aqui, aliás, uma réplica da cultura popular do Antigo Israel, plasmada no Livro dos Salmos, o cancioneiro nacional hebreu, onde o salmista convoca as obras da Criação a louvarem Deus (Salmo 148), ou “os rios batam as palmas; regozijem-se também as montanhas” (Salmo 98:8).
Manuel Maria Barbosa du Bocage não foi boémio toda a vida. Como se vê, era um crente no Deus da religião. Um Deus cujos caminhos nem sempre compreendia, mas que aceitava com resignação cristã talvez por conhecer o que escrevera o profeta Isaías: “Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos” (Livro do Profeta Isaías 55:9). A cultura religiosa do poeta passa também pelos textos bíblicos, tanto do Antigo como do Novo Testamentos, o que nos leva a crer que estaria familiarizado com a teologia de S. Paulo, com a qual encontramos tantos pontos de contacto, em grande parte da sua obra.
Segundo Esther de Lemos, a raiz lírica bocagiana é profundamente cristã. Afirma que é “cristão o sentimento de culpa, os soluços de remorso, os gritos de ideal”, que é “cristã a sua adesão ao mistério, a sua consciência de uma realidade que o transcende; cristãs as verdades que proclama a força da Providência, a responsabilidade do arbítrio humano, (…) a vida extra-terrena entendida como prémio ou castigo, (…) o apelo para uma moral que é raio da graça divina”.
Ainda que a certa altura a dúvida pareça ter-lhe batido à porta, na forma de uma crise de fé, o facto é que, à data da sua morte, Manuel Maria estava convicto da sua crença religiosa, sem qualquer margem de hesitação.
Apesar de tudo o poeta assume, para o comum das pessoas “o anti-herói de um sempre renovado anedotário”, no dizer de Parreira, pré-romântico, ou “com vontade de Romantismo”, segundo Nemésio, Bocage acaba por ser fortemente influenciado pelo Iluminismo e os ecos políticos da Revolução Francesa, mas também pelos enciclopedistas, não deixando de colocar em causa, ainda segundo Parreira: “a contra-reforma do catolicismo português, a castidade da nossa unidade de fé, e o escolasticismo da nossa filosofia que nos autorizava uma cultura censória.”
Porém, se há quem tenha dúvidas sobre a efetiva relação que Bocage de facto terá estabelecido com a Eternidade, pelo menos não parece haver incertezas quanto a um efetivo arrependimento que terá experimentado. Trate-se realmente de arrependimento ou de remorso – conceitos bem diferentes – por ter evaporado o seu ser “na lida insana”, a verdade é que o vate pretende recuperar uma certa dignidade. E mesmo neste caso, se o tal arrependimento (ou remorso) não é uma atitude redentora, espelha pelo menos o desejo de reaver o que foi perdendo em vida e de certa forma um “achamento” de si mesmo, como diz Parreira, isto é, da boa consciência que lhe permitirá morrer em paz.
Nos últimos tempos da sua existência, Bocage consagra assim uma mudança ética ou de estado de espírito, operada em alguém que terá sido um desadaptado toda a vida, que não soube viver, que tinha uma verdadeira arte em criar inimigos e, sobretudo, que sofria uma tendência compulsiva para o desatino. Assim, é face à iminência da morte que Bocage repensa toda a sua vida. Uma vida que sentiu ter desperdiçado durante demasiados anos, mas que ainda foi a tempo de o reconhecer.
Bocage terá sido, afinal, o símbolo do que há de mais humano em cada um de nós. Tanto para o mal como para o bem. Talvez por isso nos fascine ainda hoje e desafie a tentar compreender as suas aparentes incongruências e ziguezagues da vida, mas sempre sob o encantamento que constitui a sua obra literária. Apesar de – como nos elucida Pires – na sua época, as malhas da censura serem “demasiado estreitas para os largos voos do estro bocageano”. Censura essa que Flaubert, citado por Pires (2004), caracteriza como “monstruosidade, uma coisa pior do que o homicídio”.
Apesar disso. não deixa de ser inovador. Segundo Lopes e Martins (1970): “sem sair dos moldes exteriores do arcadismo, dá a mais vívida impressão de uma nova sensibilidade forcejando por exprimir-se”. A “nova sensibilidade” que decorre de uma alma inquieta e inconformada que sempre foi. A mesma alma que a certo momento da sua vida exclamou: “Acode-me, Senhor!”
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