O velho filme A Ponte do Rio Kwai, de 1957, retrata o terrível ambiente dum campo japonês de prisioneiros durante a II Guerra Mundial. Entretanto, um filme mais recente, To End All Wars, revisita a temática, ao reproduzir a experiência de um capitão do exército britânico, então capturado e enviado para trabalhar como mão-de-obra escrava numa ferrovia que os japoneses estavam construir através da selva tailandesa ao longo de mais de 400 quilómetros.
Apesar de tal atividade ser contra o direito internacional, os japoneses obrigavam milhares de prisioneiros, incluindo oficiais, a trabalhar nessas condições miseráveis. Os homens trabalhavam de tanga, debaixo de um sol escaldante, sob 49°C e picadas de insetos, com os pés descalços e feridos, e, por isso, 80 mil caíram mortos por exaustão, desnutrição e doenças. O escritor Philip Yancey descreve o drama: “Se um prisioneiro parecesse estar atrasado, um guarda japonês espancava-o até a morte, golpeava-o com baionetas ou decapitava-o à vista dos prisioneiros.”
O capitão Ernest Gordon, de 24 anos, ficou paralisado depois de definhar por desinteria e malária a ponto de não conseguir comer. Pediu para ser colocado na Casa da Morte, um lugar fétido onde os prisioneiros eram abandonados no chão até dar o último suspiro. Ainda tentou escrever uma carta aos pais antes de desistir da vida. Mas os camaradas de armas retiraram-no daquela antecâmara da morte numa maca improvisada e colocaram-no num local limpo. Dois compatriotas escoceses ofereceram-se para tratar as pernas ulceradas e massajar os músculos atrofiados, alimentá-lo, limpar-lhe a latrina e medicá-lo contra a infeção e a febre, até que Gordon melhorou e conseguiu recuperar alguma mobilidade nas pernas.
Mas tudo isto terá sido resultado dum acontecimento marcante no campo dos prisioneiros. Os guardas contavam sempre as ferramentas ao final do dia de trabalho. Uma vez, um dos guardas descobriu que faltava uma pá. Como nenhum dos presos confessou o roubo, o comandante decidiu começar a matar os prisioneiros até alguém se acusar. Subitamente um deles deu um passo em frente e assumiu o furto, pelo que foi imediatamente assassinado com requintes de selvajaria. Só que, perante uma nova contagem, percebeu-se que afinal não faltava qualquer peça de ferramenta. Tinha sido um erro de contagem.
Os campos de prisioneiros eram verdadeiros laboratórios de sobrevivência dos mais aptos. Eles lutavam por pedaços da mísera ração, roubavam o que podiam e tinham feito do ódio a sua principal motivação para conseguir sobreviver. Depois do episódio do sacrifício altruísta do companheiro, alguém recordou a expressão bíblica de Jesus: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos”.
Foi então que o ambiente começou a mudar. Os prisioneiros começaram a tratar os moribundos com respeito, a organizar funerais dignos e assinalando sempre com uma cruz o túmulo de cada homem caído. Em vez da recorrente atitude egoísta, começaram a cuidar uns dos outros e os roubos rareavam. Havia um novo espírito no acampamento, algo que Gordon apelidou como “O milagre no Rio Kwai”.
Como tinha formação em filosofia, Gordon coordenou um grupo onde se discutia ética, acabando por se tornar uma espécie de capelão do campo e todas as noites os prisioneiros reuniam-se como uma igreja local para orar uns pelos outros. Mais tarde, formou-se uma espécie de academia em áreas como história, filosofia, economia, matemática, ciências naturais e várias línguas, incluindo latim, grego, russo e sânscrito, tirando partido das competências dos prisioneiros, que atuavam como professores, criando o próprio material didático embora muito rudimentar. Quem tinha talento artístico encontrou também forma de o desenvolver na pintura ou na música.
O ambiente mudou tão radicalmente desde o episódio da morte sacrificial do companheiro que, quando chegou a libertação, os prisioneiros passaram a tratar os seus antigos carrascos japoneses, alguns deles verdadeiros sádicos, com humanidade e sem vingança. Os prisioneiros conseguiram criar uma comunidade solidária, de raízes cristãs, de fé, beleza e compaixão, de forma a alimentar espiritualmente as almas, mesmo num meio de destruição física, mental, emocional e moral, e que funcionava como alternativa ao ódio e desespero anteriores.
Gordon sofreu uma reviravolta inesperada na sua vida, que depois veio a testemunhar na sua obra “Milagre no Rio Kwai”. De volta a casa, matriculou-se no seminário e tornou-se pastor presbiteriano, tendo falecido em 2002 como Reitor da Capela da Universidade de Princeton, pouco antes da conclusão do filme sobre a sua vida.
A história de Ernest Gordon mostra que, mesmo no meio da maior adversidade e sofrimento é possível dar lugar à fé e mover montanhas.
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