Escrevendo à comunidade cristã de Corinto, na segunda metade do I século, o grande apóstolo dos gentios caracterizava assim a forma como a mensagem da cruz de Cristo era olhada tanto por judeus como por pagãos. De facto, eram esses dois grupos que estavam presentes na sociedade e eram esses dois tipos de pessoas que se juntavam à igreja nascente, quer os que vinham da religião judaica, quer os chamados gentios, oriundos dos cultos às divindades pagãs.
Alguns dos que tinham abraçado a mensagem do evangelho ainda permaneciam muito influenciados pelos ritos da cultura hebraica, sobretudo pelas determinações da lei de Moisés, embora segundo interpretações distintas das diversas escolas rabínicas, o que aumentava a confusão.
Ao ouvir o discurso de Paulo, que se caracterizava por uma pulsão libertadora do jugo do legalismo mosaico, os judeus convertidos à fé cristã deparavam-se com muitos dilemas relacionados com a obediência aos preceitos herdados das gerações anteriores, ou então à opção por uma nova praxis inspirada na simplicidade do movimento de Jesus. Enquanto a primeira privilegiava a acção – o que se fazia ou os interditos – a segunda apontava sobretudo para a essência do ser, na base duma espécie de reset de vida, o tal “nascer de novo” que o Mestre tinha proposto a Nicodemos.
Esta mudança de paradigma não foi fácil quando pensamos na tremenda carga de séculos de tradição religiosa. É que agora não se tratava de subir ou descer mais um degrau ou andar mais uma milha ou não no Shabat. Já não se tratava duma obediência estrita a um código escrito mas a uma questão do coração. A proposta do evangelho radicava numa maior liberdade, embora sempre associada a uma maior responsabilidade.
Aqueles cujos antepassados tinham recebido uma revelação do Deus de Israel eram agora chamados a viver de forma mais adulta a sua nova fé. Já não era uma questão de fazer por fazer (o que era obrigatório), ou de não fazer por não fazer (o que era proibido), mas de um fazer ou não fazer com significado.
Por exemplo, os hebreus não sabiam por que razão a lei de Moisés proibia a ingestão de determinados alimentos ou por que motivo tinham que ficar de quarentena quando tocavam num morto ou tinham uma ferida aberta, ou quando uma mulher estava menstruada ou tinha acabado de dar à luz. Graças à evolução científica, hoje conhecem-se os porquês. Na altura tratava-se de obedecer, embora sem compreender, para evitar problemas graves de saúde pública em tempos de incipiência sanitária. Mas o evangelho apresentava agora uma outra proposta, verdadeiramente revolucionária.
Para os judeus, era escandaloso que Cristo tivesse morrido crucificado como um criminoso, desnudado entre dois malfeitores. Daí a dificuldade em entenderem o “varão de dores” do qual Isaías falara profeticamente séculos antes.
Para os gregos, que buscavam o ideal do homem perfeito – mens sana in corpore sano – a pregação da cruz de Cristo era uma completa loucura, mesmo apesar de o panteão greco-romano estar repleto de deuses loucos que praticavam atos tresloucados, apresentavam sentimentos vis e eram movidos por motivações rasteiras e criminosas. Nada disso parecia incomodar os adeptos dos cultos pagãos, mas um Deus que assume a forma humana e aceita morrer pelos pecados dos homens já era loucura demais para eles.
Sim, a mensagem da cruz tem uma dimensão de escândalo e loucura que só pode ser realmente compreendida no âmbito da ressurreição. Ora, a Páscoa celebra justamente a morte de Cristo e a sua ressurreição, e é isso que faz compreender a quem tem fé o escândalo e a loucura de Deus.
“Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus. Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Pois, visto que na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação. Porque os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria. Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos” (1 Coríntios 1:18-23).
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