Quando se quer controlar as consciências e manipular as massas uma das primeiras coisas a fazer é limitar o conhecimento. Isso pode ser feito de forma mais tosca, como proibir e queimar livros “inconvenientes” ou “malditos”, ou então de modo mais subtil, como diabolizar a instrução e evitar que as pessoas estudem.
Desta vez foi André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, a exortar os fiéis a não enviarem os filhos à faculdade, pois corriam o risco de “acabar com a vida” deles, rematando que, em vez disso, deviam dedicar-se a “vender picolé na garagem”. Segundo a sua opinião, os alunos do ensino superior regressariam a casa “renegando o evangelho e a caminho do inferno”.
Segundo a imprensa “Na sequência, o pastor insinua, então, que as instituições de ensino podem transformar a mulher em ‘vagabunda’, que tem um diploma, mas que é ‘rodada’ e ‘doida”.
Este discurso socialmente criminoso, que foi proferido durante um serviço religioso e replicado nas redes sociais, provocou natural revolta nas pessoas. Para lá da sobranceria com que alguns líderes tratam o povo das igrejas, diminuindo-lhes a capacidade de decidir sobre a sua vida e família, e manipulando-os abertamente, há aqui gato escondido com o rabo de fora, por várias razões.
Primeiro por que o encargo com as despesas de educação dos filhos pode condicionar as ofertas dos pais para a igreja, o que não interessa nada aos líderes religiosos mercenários. Depois por que a universidade abre os horizontes, confere bases e estimula o pensamento independente, normalmente dificultando o sectarismo, o que pode vir a colocar em causa as asserções dogmáticas que alguma religião lhes impõe.
Finalmente por que os populistas e extremistas de direita odeiam o conhecimento generalizado pois a ignorância das massas dá muito mais garantias de sucesso na veiculação das fake news e em fazer vingar toda a sorte de falsidades e manipulação. Não esqueçamos que André Valadão é um discípulo fanático de Bolsonaro. Já em tempos Edir Macedo, da IURD, tinha afinado pelo mesmo diapasão a referir que não tinha desejado que as suas filhas estudassem, com recurso a argumentação semelhante.
Quem viveu os tempos do salazarismo sabe que a política oficial era a mesma, ou seja, a exaltação da ignorância, sob a capa da modéstia, da humildade e dos bons costumes. Temos, portanto a ignorância elevada aos altares, por parte de populistas religiosos com estes. Como disse alguém “De uma só vez, André Valadão desdenha do conhecimento científico, joga a universidade no ‘inferno’ e ainda tripudia de quem vê na educação uma alternativa para melhorar de vida.”
Um dos erros grosseiros de neopentecostais como Valadão neste discurso lamentável é considerar todas as universidades pela mesma bitola. É verdade que muitas delas estão fortemente influenciadas pela extrema-esquerda, pelo secularismo e por uma certa postura anti-cristã, mas há inúmeras que não podem ser incluídas no mesmo saco, como algumas de elevada qualidade e de tradição protestante ou católica. Valadão poderia ter prestado um bom serviço se tivesse dito antes: “Aconselho a escolherem a faculdade dos vossos filhos com critério”.
Quando o profeta Oseias sublinha “Então conheçamos, e prossigamos em conhecer ao Senhor” (Oseias 6:3), está apenas a dizer que o conhecimento é essencial, mas que também se trata dum processo. Conhecer Deus passa também por conhecer as pessoas e toda a restante Criação. E conhecer as pessoas implica conhecer a alma humana através da literatura, das artes e da psicologia, por exemplo, mas também como elas se organizam em sociedade, o que remete para a antropologia, a sociologia, a ciência política ou a ciência das religiões entre muitos outros ramos científicos.
Porém, muitos ainda vivem numa espécie de idade das trevas, onde a Igreja dos tempos da cristandade controlava a difusão do conhecimento pela ameaça, pela força ou pela condenação à morte, condicionamentos com os quais Galileu e tantos outros tiveram de lidar.
Afinal, talvez tenhamos que dar razão ao internauta que resumiu assim a motivação dos líderes religiosos proibicionistas: “Quanto mais ignorantes as ovelhas, mas os lobos aproveitam.”
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