Dei comigo a pensar na expressão “Há governo? Sou contra!” atribuída a um anarquista mexicano, mas muito corrente durante a nossa I República, e que parece ter fartos seguidores entre nós, a propósito do que li nas redes sociais sobre uma cena da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Que necessidade é esta de uma pessoa ter que se afirmar sempre contra alguém ou alguma coisa?
De todos quantos criticaram a suposta paródia à Última Ceia, apenas a Conferência dos Bispos de França (católica) se lembrou de afirmar que, apesar de tudo, a cerimónia ofereceu “momentos maravilhosos de beleza e alegria”. Todos os outros críticos nem sequer tiveram uma palavra para as cerca de quatro horas de cerimónia, – incluindo a fantástica performance da reaparecida Celine Dion, na superação duma doença complicada – focando atenção (e indignação) apenas na dita cena.
Honestamente achei o quadro da polémica de muito mau gosto e compreendo o desagrado de sectores cristãos, mas achei ainda muito pior algumas reacções. De facto, o cerne da questão está aqui: aquilo era mesmo uma paródia à Última Ceia ou não? Parece que não. E no entanto ouviram-se as maiores vociferações como se tivesse sido.
Os criadores do espectáculo desmentiram que a intenção fosse replicar a obra de Da Vinci. Pelo contrário, pretendeu-se representar um festival pagão com os deuses do Olimpo na Grécia Antiga, onde os Jogos nasceram. Na realidade a cena parece mais inspirada na obra “O Festim dos Deuses”, do mestre holandês Jan Van Bijlert (1597-1671), que está exposto no Museu Magnin, em Dijon, França.
Mas admitamos que se tivesse tratado mesmo duma representação parodiada do quadro “A Última Ceia”, de Leonardo da Vinci (1452-1519). Nesse caso pergunta-se: a obra de Da Vinci é sagrada? Claro que não. E aquela última ceia de Cristo decorreu mesmo assim como o quadro retrata? Certamente que não. Desde logo não se sabe se estariam presentes apenas Jesus e aqueles doze discípulos. E muito provavelmente estariam sentados no chão, como habitualmente. E mesmo que estivessem sentados a uma mesa, decerto não estariam todos do mesmo lado como num palco de teatro em que os actores não devem ficar de costas para o público. Além do mais Da Vinci pintou as figuras como se fossem europeus e não indivíduos do Médio Oriente.
O mais curioso é que muitos dos líderes religiosos que vociferaram contra a pretensa blasfémia são os mesmos que exortam firmemente os seus fiéis a destruir reproduções do quadro de Da Vinci que tenham em casa, por considerar que se trata de “idolatria”. Mas afinal atribuem-lhe sacralidade.
Estamos perante a velha ideia religiosa de “defender a fé”, se necessário pela violência verbal, psicológica ou física. Segundo o Expresso “A DJ e ativista Barbara Butch revelou ter recebido ameaças de morte após ter participado na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, na passada sexta-feira.”
A questão é que um Deus que precisa de ser defendido pelos humanos não pode ser Deus, assim como o Deus verdadeiro não pode ser ofendido pessoalmente por eles: “Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta” (Epístola de Tiago 1:13). Está noutra dimensão. As ofensas feitas a Deus são outras e sucedem sempre que um ser humano diminui, prejudica ou destrói outro pela violência, a guerra, a fome e toda a sorte de abusos e exploração. Aí, sim.
Esse deus (sim, com inicial minúscula!) que se ofende pessoalmente por tudo e por nada não passa de um conceito do divino criado à imagem e semelhança do ser humano, à maneira da mitologia greco-romana. No fundo, o que se está a fazer é puxar essa projecção idealizada e frequentemente antropomórfica da divindade para baixo, para o lamaçal da pequenez e imoralidade em que nos movemos. A dimensão do sagrado não se defende, vive-se. A fé não se discute, pratica-se.
Como se não bastasse, ainda houve o bónus das interpretações alucinadas do corte de electricidade em parte de Paris (o tal deus pequenino zangou-se e vá de castigar uns milhões de cidadãos sem culpa nenhuma!), e a interpretação escatológica do homem da tocha a correr pelos telhados, feita a martelo como de costume.
Humberto Eco dizia que os povos precisam sempre de um inimigo – que é sempre feio, porco e mau – para, no confronto com ele, se considerarem superiores. Mas os cristãos devem saber quem são e não precisam de inventar inimigos, sempre os tiveram em abundância. E aos que vociferaram com a tal “blasfémia” que afinal de contas não o foi, deixo para reflexão o diálogo de Jesus com os seus discípulos quando os samaritanos lhes recusaram alimento: “E os seus discípulos, Tiago e João, vendo isto, disseram: Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez? Voltando-se, porém, repreendeu-os, e disse: Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las. E foram para outra aldeia” (Evangelho de Lucas 9:54-56).
Infelizmente, na religião há muitos que não sabem de que espírito são.
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