“Há muitas maneiras de matar uma pessoa. Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença, condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra, etc. Só a primeira é proibida pelo nosso Estado.”
Bertolt Brecht
A tese de Brecht é que se pode matar alguém mesmo sem atentar diretamente contra a sua vida física. Por exemplo roubando o pão, isto é, a possibilidade de angariar o seu sustento. O papa já afirmou que “esta economia mata”, referindo-se ao capitalismo selvagem que campeia no mundo, que visa o lucro a qualquer custo, mesmo por vezes contra a dignidade da pessoa humana. Falamos de uma economia sem rosto, baseada em fundos anónimos, contas em paraísos fiscais, corrupção desenfreada, especulação.
Um neoliberalismo sem limites que pretende reduzir os estados a meros reguladores e sem veleidades de qualquer função social, de modo que cada um fica entregue a si próprio e onde nem sequer pode recorrer a um elevador social através da educação ou de qualquer outro recurso. É a velha ilusão de que todos os cidadãos partem em pé de igualdade para a sua afirmação educativa e profissional, quando bem sabemos que o ponto de partida é profundamente desigual. É como fazer uma corrida entre um macaco e um peixe a ver quem sobe mais depressa a uma árvore.
Não se pode comparar o aproveitamento escolar duma criança cujos pais são licenciados, com a casa cheia de livros e consumidores de cultura, que anda numa escola onde os alunos são escolhidos a dedo, com o filho dum operário não especializado que mal sabe ler e escrever e frequenta a escola pública num bairro de população carenciada. É por isso que os rankings das escolas são uma falácia, por que não levam em linha de conta pelo menos o rendimento dos agregados familiares, como se todos os alunos partissem da mesma base e ambiente sócio-cultural.
Também se pode matar alguém que está doente ao impedir que seja tratado convenientemente. A ideia de um sistema de saúde privatizado, como privilégio para quem tem posses e seguro de saúde, deixando a população mais pobre entregues a hospitais sem condições e subfinanciados só pode assomar a cabecinhas da extrema-direita e neoliberais. Quem tem dinheiro ou seguro (e mesmo assim…) safa-se mas quem não tem uma coisa nem outra morre.
Vimos como há uns meses um hospital americano recusou prestar socorro a uma mulher em situação de emergência, tendo mandado a segurança expulsá-la para a rua por não ter seguro de saúde, onde veio a morrer logo depois.
A miséria não é dignificante do ser humano.
Trabalhar até rebentar é o que parte da população portuguesa faz hoje, por necessidade de sobrevivência, a troco dum ordenado de miséria. São pessoas que têm um posto de trabalho mas não conseguem sair duma situação de pobreza tendo em conta os custos da habitação, e o custo geral de vida.
E quanto ao enviar alguém para a guerra, temos o caso paradigmático de Urias e Bate-Seba na história do rei David. Num momento de ócio (cuidado com eles!) o monarca de Israel passeava no seu palácio em Jerusalém quando viu uma bela mulher a banhar-se descuidadamente. Depois de mandar saber que era casada com um dos seus soldados, enrolou-se com ela e gizou uma trama maléfica. Mandou que o comandante o colocasse na frente de batalha para ver se morria em combate. Assim sucedeu.
Pode-se dizer, portanto, que David matou Urias. Mas a Bíblia relata que se veio a arrepender amargamente daquele momento de loucura. Tal como o rei David fez com Urias sabemos que também hoje há quem envie mancebos mal preparados para a frente de combate, como carne para canhão.
A dignidade humana passa por uma organização social que priorize a coesão, que preserve intactas as possibilidades de ascensão social, e sobretudo uma economia que tenha no centro a pessoa humana. Dum modo geral todos os partidos e ideologias políticas falam nisso, embora proponham caminhos diferentes.
Mas quando os sistemas políticos não conseguem resolver estas questões fulcrais correm o risco de os populismos e extremismos, pregadores de soluções mágicas, virem a tomar o poder, para desgraça geral.
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