Soube-se, já depois de passada a Páscoa, que o papa Francisco esteve à beira de morrer quando deu entrada no hospital dias antes, com graves problemas respiratórios e cardíacos e em estado de inconsciência. Afinal o Vaticano resolveu faltar à verdade – talvez para não provocar comoção pública – dizendo à imprensa na altura que se tratava apenas de consultas médicas de rotina. Felizmente o papa reagiu bem aos tratamentos e conseguiu participar nas celebrações pascais do Vaticano. Mas o alerta ficou dado. Não sabemos por quanto tempo ainda o teremos como chefe da igreja católica romana.
Entretanto passaram dez anos sobre o início do seu pontificado. Sabemos que foi uma década rica em documentos doutrinários, entre exortações apostólicas, bulas e encíclicas entre outros, mas também de intervenções pela acção e pela palavra, além de gestos simbólicos e encontros significativos, numa conduta global que gerou polémicas e surpreendeu a IC e o mundo.
Francisco imprimiu uma maior abertura ao mundo religioso em geral. O sempre atento Frei Bento Domingues sublinhou a satisfação de “grandes líderes de outras confissões religiosas: o patriarca ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I e até o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Cirilo; o primaz da Igreja Anglicana, Justin Welby; o grande imã de Al-Azhar do Egipto, Ahmad al-Tayeb; o rabino chefe da comunidade judaica em Roma, Abraham Skorka; sem contar que o Papa Francisco se tornou a grande referência mundial para crentes e não crentes.”
É de destacar a sua aposta em colocar mulheres em altos cargos do governo do Vaticano e da própria IC, embora não tenha tido a coragem de contrariar João Paulo II quando este afirmou a impossibilidade “definitiva” de as mulheres poderem ascender ao sacerdócio. Qualquer bom estratega militar sabe que é avisado escolher as batalhas que travamos e não ir a todas. E Francisco prefere ir por partes, e por agora limitar-se a abrir a porta do fim do celibato obrigatório dos padres.
Mas a grande reforma da IC por agora é a discussão do caminho sinodal que vem sendo desenvolvida em todo o mundo, em alternativa à velha doença do clericalismo, contribuindo assim para fazer da IC um espaço participativo de todos, de responsabilidade comum dos fiéis e não apenas dos clérigos. Depois das conclusões do Concílio Vaticano II dos anos sessenta (mas cujo espírito e letra nem sempre foi observado à posteriori) a sinodalidade pode constituir a maior reforma da IC desde sempre. Uma coisa é certa, não será levada adiante sem forte resistência dos conservadores.
Mas uma grande referência dum pontificado são sobretudo os documentos papais, normalmente muito citados pelos teólogos católicos por expressarem o pensamento do chefe da igreja. Nesse sentido, a exortação apostólica Evangelii gaudium (2013) surge como uma espécie de pontapé de saída que abordou diversas temáticas, mas sempre na lógica de promover uma perspectiva de uma IC “não-autorreferencial” mas inclusiva e virada para as periferias.
Mais tarde, na Encíclica Laudato Sì (2015) Francisco desenvolve o conceito de “ecologia integral”, não apenas ambiental mas humana, opondo-se à “economia que mata”. Registe-se ainda a exortação apostólica Amoris Laetitia (2016), que valoriza a misericórdia, o Documento de Abu Dhabi sobre a fraternidade humana (2019), onde estimula o diálogo inter-religioso enquanto caminho de conhecimento mútuo e cooperação com vista à paz no mundo. Nesse seguimento o papa publicou a Encíclica Fratelli Tutti (2020), tendo como ponto de partida a parábola do “bom samaritano” como exemplo de convivência social e política.
De caminho o papa lançou o documento jurídico Motu proprio Vos estis lux mundi (2019), em que defendeu a “tolerância zero” para com os abusos sexuais de menores na Igreja e promoveu uma cultura de cuidado e de responsabilidade focando sobretudo o sofrimento das vítimas.
Finalmente, há um ano Francisco promulgou a Constituição apostólica Praedicate evangelium (2022), como diz o P. António Ary, a “forma mais solene de documento normativo que concretiza a reforma da Cúria romana. No coração das estruturas que auxiliam diretamente o Papa no governo da Igreja figuram duas linhas de fundo essenciais: a autoridade como serviço, contra todas as formas de clericalismo, e a centralidade da evangelização, marca de uma Igreja em saída.”
A inquietação dos fiéis foi notória nesta Páscoa, confrontados com o internamento súbito do papa mesmo sem saber ainda da gravidade da sua situação clínica. Conseguirá Francisco concluir o caminho sinodal e publicar um documento sobre esta grande reforma (quase diria, revolução) de Roma?
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ Nunca confies num homem que não sabe sorrir
+ Sou alérgico a messias em política, especialmente militares
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.