O almoço vai longo. A conversa vai parar, não se sabe bem como, ao comportamento de algumas espécies de pássaros. “Os cucos não fazem ninhos. As mães procuram o ninho de outra espécie, para porem aí os ovos. Quando as crias nascem, começam a empurrar os ovos que ainda não eclodiram para fora do ninho. Têm mesmo uma protuberância dorsal para garantir que são eficazes. Sem perceberem, as mães dos ovos que foram mortos alimentam os cucos bebés como se fossem delas.” A descrição, feita por um amigo biólogo, deixa-nos incrédulos. Perante o ar de espanto de quem está à mesa, ele saca do telefone para mostrar um vídeo. Há uma pequena criatura depenada, obstinadamente a deitar ninho fora quatro ovos, um por um, com método e malvadez.
“Há muitos portugueses que são assim”, reage um dos presentes, provocando uma gargalhada geral. “Como é possível que a maldade esteja geneticamente programada?”, pergunto-me eu. Há um risco óbvio em olhar para a Natureza à procura de respostas para o que se passa na selva humana. O bem e o mal, o certo e o errado são conceitos alheios ao reino do instinto e da sobrevivência animal. É precisamente por sermos seres capazes de pensamento, de consciência e de autocrítica que nos distanciámos dos outros animais. A civilização, com todas as suas camadas e nas suas mais variadas expressões, é o momento em que um ato como o de aniquilar outros seres para melhorarmos a nossa hipótese de sobrevivência deixa de ser um reflexo inscrito nos genes e passa a ser uma escolha com implicações morais.
A ideia de que há comportamentos que são naturais e outros não é ela própria o reflexo das nossas visões morais e políticas sobre o mundo. As redes sociais estão cheias de vídeos de influencers de direita radical que tentam justificar a opressão sobre as mulheres com diferenças biológicas e exemplos do que se passa no mundo animal. Não lhes interessa muito se são as leoas a ir à caça ou se há pinguins machos que se juntam e agem como casal para chocar um ovo e tratar da cria. Na verdade, há sempre exemplos para tudo. E essa é uma das razões pelas quais esse discurso sobre o que é ou não contranatura é tão frágil.
A ideia de que há uma espécie de ordem natural é, porém, muito sedutora. E é por isso que ela ganha lastro. Num mundo precário, com relações sociais deslassadas, identidades fragmentadas e poucas perspetivas de segurança material para largas franjas da população, o discurso sobre o que é natural, tradicional e imutável é muito apelativo. Os engenheiros do caos social sabem disso. Eles são como as crias dos cucos, lançando borda fora as ideias que podem competir com as deles, desqualificando os adversários, tornando-os inimigos a abater, fazendo do debate um combate de emoções.
Enquanto os extremistas de direita faziam raides para caçar imigrantes em Torre Pacheco, Múrcia, um influencer espanhol fez um vídeo no qual descrevia o que se estava a passar de uma forma poderosa. Dizia ele que quando formigas de duas espécies diferentes coabitam no mesmo frasco, fazem-no de forma pacífica… até alguém agitar o frasco. A partir daí, elas começam numa luta desenfreada, matando-se umas às outras. Enquanto alguns pobres caçam imigrantes pobres, uma elite poderosa diverte-se com o frasco na mão, aumentando o seu poder e a sua influência.
Na mesa do almoço de sábado, estão várias pessoas entre os 40 e os 50 anos. A certa altura, começam a lembrar-se de como foram os seus primeiros empregos. “Nunca fui tão bem pago na vida”, é a frase que mais se repete, enquanto nos lembramos de um mundo que já estava nessa altura a ruir. “Os mais velhos ganhavam muito.” Nós, que viemos depois, éramos os mais mal pagos e, ainda assim, tínhamos condições que hoje nos parecem de luxo. À mesa, um rapaz de 18 anos olha-nos, espantado. E alguém se pergunta. “O que é que aconteceu? Porque é que agora não há dinheiro?” De uma forma ou de outra, a maior parte dos comensais sente algum aperto. O desafogo é coisa do passado. Os amanhãs são incertezas que desafinam.
Apesar disso, o número de milionários tem vindo a aumentar em Portugal. Em junho, eram 175 mil. A riqueza média no País é de 163 933 dólares, segundo um relatório do banco suíço UBS divulgado em junho, que conclui que há nestes números um sinal claro da concentração de riqueza nos escalões superiores no nosso país. Muito do património que conta para avaliar estas fortunas é imobiliário (cerca de 74,5% dos ativos), pelo que se percebe como o peso de uma herança faz desequilibrar a balança com tanta facilidade. Nascer no ninho certo muda tudo.
Como querem convencer-nos a ser cada vez mais como os cucos, concentrados num cada um por si selvagem e sem empatia, os que menos têm estão cada vez mais isolados. Atirados para uma economia de baixo valor, assente sobretudo nos serviços (mal pagos) do turismo e na transformação de casas em ativos financeiros, perderam a força da negociação coletiva e, se não forem herdeiros nem proprietários, terão de se sujeitar a aceitar trabalhar muito e por pouco.
Voltemos às formigas. Há uma espécie, a das formigas-tecelãs asiáticas, que se torna tanto mais eficiente quanto trabalha de forma coletiva. Cada uma, sozinha, é capaz de carregar o equivalente a 59 vezes o próprio peso. Mas, em grupos de 15 indivíduos, essa força aumenta para 103 vezes. Mais do que empurrar os outros do ninho, devíamos perceber a importância de construir o futuro coletivamente. Sim, a empatia também pode ser uma questão de sobrevivência.