A grande vantagem das candidaturas independentes para os governos das autarquias é não terem que se preocupar com as sondagens partidárias, que medem a temperatura do sentimento do partido A ou B e transformam a escolha dos representantes autárquicos em extensões dos governos centrais. Ser livre das amarras do poder concede o privilégio e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de poder contactar com a verdadeira realidade das cidades e seus habitantes, sem excluir nenhum e sem preocupações de mais um voto.
Tive o enorme privilégio de integrar uma dessas candidaturas e, ao longo destas semanas poder conhecer uma outra cidade. A cidade dos esquecidos, dos que não contam para as estatísticas, dos que não respondem a sondagens, dos que raramente votam. Mas que são, também eles, cidadãos, também eles habitantes da cidade, à espera de respostas que tardam e que os vão colocando, a cada dia e a cada eleição que passa, mais longe de se fazer ouvir.
O título da crónica de hoje não é meu. É o nome da campanha duma associação de apoio a sem abrigo e excluídos da cidade do Porto: a “Saber Compreender”.
Uma associação, como tantas as que existem espalhadas pela cidade, liderada por quem já sentiu na pele o mesmo ostracismo, a mesma indiferença, o mesmo frio e a mesma chuva, dos abandonados pelas políticas. É a esta e a outras instituições semelhantes, a que agora recorrem os que ainda não lograram subir um degrau nessa escada da cidadania, reconhecendo nos outros, nos que lhes abrem as portas e estendem as mãos , irmãos dum infortúnio comum. Num pequeno rés do chão, apenas duas salas onde se juntam em convívio, para ouvir algumas palestras, pegar alguns alimentos, sentir-se gente novamente.
Estas organizações da chamada sociedade civil atuam onde o Estado central e o local se demitiram.
De facto os que tentam sobreviver não dão votos. Para quê a preocupação se o que conta é o poder pelo poder?
Projetos e mais projetos, teorias e mais teorias, subsídios e mais subsídios e tudo falha porque ninguém os ouve, ninguém está realmente interessado na sua sorte. Uma vez por outra lá se lembram de fazer a foto para o jornal, a notícia para os media, para logo os remeterem ao esquecimento e à sua sorte.
Nos últimos anos, cidades como o Porto e Lisboa viram aumentar não apenas os sem abrigo, mas os que recorrem às sopas do povo, à caridade alheia. Nem todos são desempregados, nem todos sofrem de dependências. Grande parte viu-se, de um momento para o outro, na miséria e na marginalização! Não, não e trata de marginalidade essa palavra que os coloca na classe de malfeitores. Estes marginalizados são pessoas que a vida fustigou.
A pedido de uma associação destas organizações, escutámos as suas necessidades, convencidos (os que pensam como a maior parte de nós, eu incluída, tudo saber são os que mais erram) de que a grande questão seria o acesso à habitação, a um teto.
Claro que sim, mas… não foi esse o pedido que fizeram e traziam-no perfeitamente enquadrado, com números e até avaliação, coisa que falta a maior parte das ações e programas: o que vieram pedir foi um passe social gratuito, não apenas para quem está na rua, mas para todos os que, tendo rendimentos mais baixos têm dificuldade em adquiri-lo.
Justificavam esta necessidade alertando para o facto de este ser necessário para o acesso à saúde. Grande parte destas pessoas têm patologias várias e estão muito mais vulneráveis à doença por força das (más ) condições em que vivem. Quantos deles faltam às consultas por não poderem deslocar-se pela cidade?
Necessitam desse passe para a procura de trabalho, de habitação. Para reencontrar familiares por vezes dispersos, de forma a quebrarem a solidão que mata quase tanto quanto o frio ou a fome.
O passe social por eles assim descrito passou a ser para nós, senhores doutores que se deslocam em automóvel, um fator de integração social, uma forma de ajudar a romper a marginalização. Um passe social!!!
Numa campanha que tanto palco e discurso tem dado à mobilidade e ao aceso ao transporte público, que uns querem gratuito para maiores de X anos e outros querem utopicamente doar a toda a gente, ninguém ainda referiu os outros, os nem sequer têm sequer um Cartão de Cidadão válido, os que à luz da lei não existem como homens, aquele grupo veio pedir a possibilidade de se deslocar par poder romper o ciclo de pobreza.
Não contentes em apresentar este seu pedido, vão mais longe e com uma consciência cívica e social que falta à maior parte dos nossos dirigentes e a muitos dos nossos partidos, propõem que essa atribuição seja revista de ano a ano de forma a verificar se se justifica ainda a atribuição do mesmo a este ou aquele que, entretanto, possa ter já conseguido levantar-se do chão.
Na rua eles ainda são pessoas. Não são dejetos, nem animais a quem se alimenta com carrinhas no final do dia. São pessoas e exigem, com o fio de voz que têm o que lhes temos vindo a negar: DIGNIDADE.
Esta foi a maior lição que recebi nesta campanha!
Mas também a maior bofetada cívica e social
Estão aí as autárquicas, os governos de proximidade são aqueles que deveriam conhecer pelo nome todos os seus munícipes e fregueses. Saber-lhes as necessidades, os anseios e os sonhos.
Ao invés continuamos a ter ao nível local a mesma lógica partidária de batalhas inúteis para grande parte dos nossos concidadãos.
Até quando?