De todos os livros de José Saramago, A Jangada de Pedra foi o único que não consegui passar da página cinquenta. O problema não estava, naturalmente, na escrita ou no ritmo da narrativa. A questão estava na sensação produzida, dum pedaço de terra à deriva que era (e perdoem-me os que passaram à página cinquenta e um e conseguiram chegar ao fim, se não for este o caso) ao mesmo tempo um caminho sem rumo dos que o habitavam.
É assim que sinto esta União Europeia (UE). Um conjunto de países com interesses tão díspares e em alguns casos tão antagónicos, que a deriva é mais do que a de uma jangada: é um ralo de água putrefacta em redemoinho para a sarjeta.
Estou em crer que os “pais” do sonho europeu andam aos tombos nas suas tumbas ao se aperceberem que criaram um pesadelo feito de números e nada mais.
Na semana passada surgiram duas notícias com vetores opostos, em relação à política de migração e asilo.
Por um lado, a Europa concluía, finalmente, que o problema da mobilidade humana de países com economias e políticas frágeis só se resolve com a cooperação. Uma cooperação estruturada e consequente e não aquela que se esgota no fim dos programas de apoio em projetos muitas vezes megalómanos, sem retorno claro para os que deles deviam beneficiar. Uma cooperação que devia servir para alavancar as economias menos desenvolvidas e não para preservar as organizações que vivem destas programas e incentivos, nos países de destino. Uma cooperação que passa também e essencialmente, por uma outra política de diplomacia com os países envolvidos, restringindo-a ao mínimo de contágio possível com a economia.
Esta posição europeia trouxe, àqueles que vimos falando no deserto sobre estas questões, uma certa esperança de oásis. Talvez que agora a UE finalmente assumisse o seu papel de guardiã dos valores humanistas e votasse o seu mercantilismo a um papel bem mais secundário. Porque, em boa verdade, foi nisto que a União se transformou: num imenso mercado sem alma, sem grandes pruridos ou escrúpulos, apenas focada nas oscilações dos mercados de valores. O grande governador europeu é o Banco com o mesmo nome. Parlamento e Comissão esvaziaram-se perante os números frios do capitalismo e desta forma afastaram-se do seu foco principal.
Foi nisto que a União se transformou: num imenso mercado sem alma, sem grandes pruridos ou escrúpulos, apenas focada nas oscilações dos mercados de valores. O grande governador europeu é o Banco com o mesmo nome
Mas de facto a notícia da perspetiva de cooperação para resolver o problema da mobilidade em massa deu-me alguma esperança.
Foi sol que durou pouco! O Novo Pacto Europeu para as Migrações e Asilo arrasou -a completamente!
Uma vez mais pretende-se resolver a questão, sobretudo no que aos refugiados diz respeito, com dinheiro a jorros, não para resolver os problemas das pessoas nos campos ou que se encontram dispersas em condições infra humanas, mas para acalmar os países que se opõem ao sistema de solidariedade e de partilha de responsabilidade.
Estes, entre os quais se incluem a Hungria, cujo sistema democrático e humanista é exemplar(!) , a Polónia que idem e a Áustria que também, podem optar por repatriar os refugiados em vez de proceder ao seu acolhimento e inserção. Ora se isto não é um atropelo ao principio do “non refoulement” que está presente no Pacto da ONU e que, ao que parece e contraditoriamente continua no Pacto Europeu, não sei que seja!
A contradição é perigosamente flagrante e demonstra uma completa ausência de foco, de claro objetivo por parte dos países que compõem a UE, deixando uma vez mais a “ criança” nos braços dos que têm fronteiras externas e, embora tal não venha expresso é inevitável, vem reforçar o outsourcing feito com a Turquia, dando a esta mais e melhores argumentos de pressão. A Turquia que fez da política do repatriamento dos seus refugiados (quase 3 milhões) uma das bandeiras da campanha das últimas eleições e pelo que foi bastante criticada.
Repatriar significa condenar. É uma realidade que não vale a pena tentar esconder.
Repatriar para onde? Para países completamente destruídos, em grande parte devido à intervenção externa, à qual não somos completamente alheios? Países sem infraestruturas sanitárias, sem sistema de saúde ou educação, onde a justiça é ainda mais farsante do que por cá, onde a vida humana vale menos que outros ativos?
Países onde não existe a liberdade que dizemos defender ou a igualdade pela qual pugnamos?
É esta a União Europeia que queremos? Uma união em que países como a Polónia empurram, literalmente, iraquianos, iranianos, sírios, yazidis de volta à Bielorrússia, onde as três hipóteses dadas pelo senhor Lukaschenko são integrarem o exército e combaterem a Ucrânia, retornarem aos seus países onde grassa a fome, a falta de cuidados e onde a grande maioria é perseguida pela sua pertença étnica, ou ficarem em plena floresta, sem água sem comida, na maior parte sem tendas ou com que se aquecer, à espera dum milagre ou de uma desatenção dos soldados polacos para passarem “para o outro lado” ?
Foi para isto que tantos deram o melhor de si?
Esta UE transformou-se numa jangada moral que faz enjoar os que ainda acreditam num continente unido coeso e sobretudo solidário.