Excetuando Natal e de certa forma a Páscoa, não gosto de comemorar efemérides.
Tenho sempre a sensação da hipocrisia, da tranquilidade de consciência que dura os restantes 364 dias do ano.
Comemora-se o dia da Língua e durante todo o tempo cometem-se os maiores atropelos não apenas à forma de escrever e de falar, mas à sua promoção e divulgação.
Comemora-se o Dia da Liberdade e nunca como hoje, cinquenta anos passados do 25 de Abril, se vive um clima de terror e de auto censura.
Comemora-se o dia do refugiado do Migrante, e é vê-los morrer como peixes fora de água nas margens do Mediterrâneo.
Dizem-me que se comemora para não esquecer, para glorificar os e as que deram a vida por uma causa. Parece-me justo, belo e meritório. Mas devia ser acompanhado de ações consequentes com o que foram as lutas daqueles que homenageamos.
Limpamos a consciência com a recordação de mulheres como Adelaide Cabete, Maria Lamas, Beatriz Ângelo, as nossas três Marias, Natália Correia, Maria de Lurdes Pintassilgo e tantas tantas anónimas cuja história esqueceu mas que aqueles que por elas foram tocados não olvidarão jamais. Isto para falamos apenas da nossa – brilhante – prata da casa.
Lembramo-las hoje neste dia 8 de março, convencionado como Dia Internacional da Mulher.
Limpamos a consciência com a recordação de mulheres como Adelaide Cabete, Maria Lamas, Beatriz Ângelo, as nossas três Marias, Natália Correia, Maria de Lurdes Pintassilgo e tantas tantas anónimas cuja história esqueceu mas que aqueles que por elas foram tocados não olvidarão jamais
Hoje quero lembrar outras.
Marion (nome completamente fictício, uma vez que Marias na terra sejam elas de que quadrante forem há-as um pouco por todo o lado) foi vendida no Afeganistão quando tinha apenas treze anos. Ao que conta às ONGs ligadas sobretudo à Igreja, era magrita, subnutrida e, como tal, ainda não passara a mulher. O pai vendeu-a a um homem viúvo com filhos mais velhos do que ela.
Durante um ano, o tempo que levou a ser menstruada, esta rapariga foi escrava daquela casa que, embora por lei fosse a sua, nada mais era que uma prisão. Os sonhos, se os tinha, eram duma normalidade que nunca mais sentiria e os brinquedos eram os mais enteados pequenitos que tinha que criar.
Uma criança feita mulher à força. A violência, mais que doméstica, era quotidiana, uma forma de estar e de ser “educada” pelo marido.
Foi mantida prisioneira num quarto por ter comido um pedaço de borrego destinado ao senhor da casa. Esteve uma semana sem contacto com o exterior, a pão e água. Uma criança de 14 para 15 anos!!!
Aos 17, conseguiu fugir. Sim, lançou mão de contrabandistas; sim, foi violada várias vezes até finalmente chegar à Turquia, quase um ano depois.
Ali, sem conhecer ninguém, bateu à porta duma igreja e teve santuário. Tenta agora a todo o custo conseguir o tal estatuto que a Agência Europeia divulgou com grande aplauso, de refugiada. Aguarda há quatro meses.
Alexandra nasceu Alexandre na Venezuela. Uma mulher num corpo que não era o seu. Um calvário de incerteza de amargura, de incompreensão, de medo. Alexandra prostituiu-se o tempo suficiente para conseguir, com a ajuda de algumas entidades, entrar num programa de alteração hormonal (creio que é este o nome…) para poder ser um dia mais tarde o que de facto era: uma mulher.
Mas os tempos políticos não se compadecem com o tempos humanos e individuais. Alexandra teve que fugir para o Brasil. Foi vítima de todas as violências que não cabem numa página escrita. Nem sequer num livro porque são densas, fundas, mortais.
Sem medicação, sem esperança, sem amigos, com a indignidade que os outros, os ditos normais, lhe colavam às costas, Alexandra não pôde mais e pôs fim à sua vida com um pedaço de vidro rasgando as veias. Morreu Alexandre com alma feminina.
No Irão as mulheres saem à rua pedindo a intervenção do Ocidente para pôr cobro ao verdadeiro genocídio de que estão a ser alvo.
Mas os seus gritos já não encontram eco na espuma dos faits divers das notícias.
Estas são algumas das mulheres de hoje, deste dia 8 de Março de 2023.
Homenagear as que lutaram é lutar por estas que não têm voz, que não têm quem as proteja e que servem apenas para nos deixar uma lágrima muito pequena no canto do olho.
Tal como o crocodilo antes de abocanhar a vítima.
O slogan de hoje não deveria ser “Mulheres de todo o mundo uni-vos e levantai-vos“ mas sim “Humanidade ergue-te por aquilo que te identifica. A Liberdade sempre, a igualdade total e a fraternidade que nos une.”
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.