O povo é mesmo sábio!
Não deve acontecer a todos mas a mim, pobre escrevilheira, assola-me sempre a sensação de estar a escrever em vão.
De quando em vez tenho uma surpresa boa e ontem foi uma dessas vezes.
Como tenho dito muitas vezes, o Pacto da INU para as Migrações é muito claro na necessidade do envolvimento de todas as áreas sociais, económicas e políticas na questão da mobilidade humana que tem adquirido dimensões nunca vistas.
Pois bem, foi com enorme satisfação que assisti a um jantar debate, no âmbito das candidaturas à Ordem dos Médicos, sobre os desafios que estas novas populações representam para a classe médica e a responsabilidade de cada profissional de saúde em denunciar situações de abuso, seja eles cometido entre locais ou estrangeiros.
A análise feita sobre a questão da mutilação feminina QUE EXISTE EM PORTUGAL, digamo-lo em maiúsculas para que não possamos enterrar as palavras na areia, foi do ponto de vista técnico, médico mas sobretudo humano, uma lição do que é a vocação médica.
A forma como esta mutilação “cultural” era praticada, assumia um caráter inocente: a menina entre os cinco e os oito anos ia passar férias à Guiné ou ao Senegal, países onde essa prática é já proibida mas que, não obstante, continua, e ali eram sexualmente mutiladas.
Ontem fiquei a acreditar um pouco mais no nosso SNS. Sobretudo com a apresentação de boas práticas simples e tão “nossas” (somos de facto o país mais desenrascado do mundo!) através de pequenos livros com imagens para efetuar perguntas a quem não domina o português
Como tudo se resume, ao fim e ao cabo, a uma questão de mercado, tornou-se evidente que era mais económico mandar vir uma fanateca (mulher mais velha que pratica o ato) e que durante a estada aplica esta hedionda prática em várias meninas.
A médica que ontem alertou para esta situação contou o caso duma bebé de três anos (não passa duma bebé) a quem esta mutilação foi aplicada para “aproveitar o facto da estada da fanateca.
Nem os pais nem a dita mulher sofreram qualquer penalização tanto quanto é do seu conhecimento, embora tenha de imediato denunciado o crime.
Referiu ainda a quase impotência dos médicos perante mulheres que, acompanhadas dos companheiros, que não as deixam por um segundo durante o exame, que muitas vezes serve de intérprete, que é no fundo o seu dono.
Como se consulta uma pessoa com esta vulnerabilidade quando ainda por cima se têm tempos a cumprir para o tempo que se passa com o/a paciente?
Como fazer-lhe as perguntas certas, as que podem fazer soar campainhas para a violência, para os abusos, para o crime?
Fiquei profundamente tocada pelo facto de haver médicos preocupados com estas situações. Médicos que querem ser médicos para todos, para todas.
Ontem fiquei a acreditar um pouco mais no nosso SNS. Sobretudo com a apresentação de boas práticas simples e tão “nossas” (somos de facto o país mais desenrascado do mundo!) através de pequenos livros com imagens para efetuar perguntas a quem não domina o português.
E se de facto sei que não é uma prioridade face ao estado da arte nesta área, a constituição dum grupo que trabalhe com esta população que não domina a nossa língua, que se sente perdida, que não vai ao médico por vergonha ou porque está impedida pela família ou pela comunidade, sei também que há vontade de que tal venha a ser feito.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.