O filme estava quase, quase a começar. Lembro-me de faltarem poucos minutos para o início da sessão, no Estúdio Foco, perto da Avenida da Boavista, no Porto, e de eu estar no banco de trás do carro do meu pai, estacionado, a tentar desesperadamente chegar ao fim do livro que me acompanhava há várias semanas: O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Parecia-me intolerável descobrir rapidamente, numa sala de cinema, o desenlace daquela aventura que eu andava deliciado a acompanhar ao longo de tantos dias. Tinha 14 anos e Umberto Eco passava a ser um dos meus escritores favoritos. Se bem me lembro, consegui mesmo chegar ao fim do livro, e saí do cinema com a sensação clássica “é bom, mas o livro é muito melhor…”. Aprender a (gostar de) ler é, também, aprender a construir filmes só nossos, com imagens só nossas – e não era a cara de Sean Connery que habitava a minha mente. Quando, em 1988, saiu O Pêndulo de Foucault não quis perder tempo e gostei da leitura ávida, tanto ou mais do que em O Nome da Rosa (mas sem a necessidade de nenhum sprint final…).
Na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em Lisboa, durante o curso de Comunicação Social, Umberto Eco transformou-se aos meus olhos em semiólogo, teórico, pensador. Um nome que era fácil de encaixar em muitas disciplinas, em quase todos os trabalhos. Um autor, sobretudo, que abria portas para outros autores, escritores, livros… Mundos. Ecos. Já não era tanto o escritor d’O Nome da Rosa, que tinha ficado lá atrás, era agora um bom exemplo de intelectual contemporâneo, um curioso pela “espantosa realidade das coisas”, um erudito que não via fronteiras entre saberes e disciplinas.
Depois, chegou ainda outro Eco aos meus dias. O das crónicas, o dos pequenos e divertidos textos do seu Segundo Diário Mínimo (o primeiro tinha sido editado em 1963 a partir da rúbrica Diário Mínimo na revista Il Verri), subtitulado na edição portuguesa com a frase didática Como Viajar com um Salmão. O seu humor, sinal de inteligência e gosto pela vida, só se revelou verdadeiramente nesta minha descoberta mais tardia. Folheio esse Segundo Diário Mínimo e reencontro um texto que faz eco (trocadilho fácil, eu sei) na minha infância mais longínqua, como que fechando um qualquer ciclo agora que Umberto Eco morreu. Esse texto chama-se Da Impossibilidade de Construir o Mapa do Império 1 Por 1 e eu vejo-me na escola primária Adães Bermudes, na Guarda, a argumentar que não há grande utilidade no uso das escalas para mapas, que um mapa do exato tamanho do território que representa, desde que bem dobradinho, poderia ser muito útil e prático. O meu objectivo era muito simples: irritar e contrariar até ao limite a professora estagiária que dava ares de ser ainda verde e insegura (consegui e na sequência dessa eficácia fui mandado para a rua pela legítima e poderosa professora primária). Encontrar agora toda uma sustentação teórica – com linguagem e pensamento erudito e o humor absurdo de uma espécie de Woody Allen académico – para essa (im)possibilidade cheia de “dificuldades práticas e paradoxos teóricos insuperáveis” deu-me um grande prazer, tão infantil como adulto.
Penso em Eco, agora na hora da sua morte, e penso na ironia de, no momento em que é tão fácil o acesso imediato à informação das mais variadas origens e relevâncias, serem tão raros os pensadores e intelectuais reconhecidos que parecem querer saber tudo, sobre tudo, ler tudo. Nem que seja só para brincarem melhor.