São frases que se dizem. Se forem puxadas para a capa de um jornal ou para título de uma entrevista ganham um peso que nunca teriam no fluxo mais ou menos caótico e leve de uma conversa. A cantora Mariza disse ao Diário de Notícias que «em Portugal andamos todos a ver quem é que arranca os olhos a quem». Uma imagem violenta que vai para além do cliché, já por si agressivo, «vale tudo menos tirar olhos». Será mesmo assim? Claro que uma frase começada por «em Portugal andamos todos…» tem tudo para ser uma generalização muito discutível, sem grande fiabilidade, difícil de provar. Na sua página do Facebook, o músico António Pinho Vargas (talvez a pessoa que conheço que melhor usa essa rede social como espaço de reflexão) comentaria essa entrevista. Citava, a propósito da frase de Mariza, Samora Machel («o problema dos portugueses é que vocês não gostam uns dos outros») e Eduardo Lourenço («um português citar um outro português é uma excentricidade tão rara como usar capote alentejano»): «Sendo esta uma ‘questão identitária’ muito difícil de demonstrar pela sociologia – implicaria um vasto estudo de campo – fica no ar apenas um perfume [que] deixa o seu aroma no ar, deixa os vestígios de uma ‘impressão’ recorrente, uma e outra vez, de ano para ano, de década para década.» Terminava dizendo que talvez valesse a pena estudar esse tal «perfume» («Mais valia analisá-lo, recolher estas frases, estas declarações, estas impressões, e pensar sobre elas»).
Mariza dizia isso a propósito da vida de artista, da efemeridade do sucesso e do preço a pagar por erros («um disco mau», «uma atitude menos boa»). Antes da tal frase, o cliché maior: «Lá fora as coisas são diferentes». Serão? Custa-me a aceitar isso facilmente. Parece-me uma frase que diz mais sobre o universo e preocupações de quem a diz do que sobre um país inteiro. É verdade que, mesmo politicamente, o ambiente está especialmente crispado em Portugal e há muito tempo que não havia tantas trocas de acusações envolvendo o conceito de «patriotismo». Mas andaremos todos a ver «quem é que arranca os olhos a quem?». Não me parece nada. Bem a propósito, leia-se este excerto de uma outra entrevista recente, esta da brasileira Roberta Medina, vice-presidente executiva do festival Rock in Rio, ao Expresso: «Uma das coisas que mais me encantam em Portugal é que as pessoas são do Bem. Não quer dizer que não haja pessoas ruins, mas não se trabalha para atrapalhar o outro. No mercado brasileiro […] a sensação é de que estamos sempre defender-nos de alguém. Às vezes é muito desgastante. Aqui você faz, trabalha, mas não está com uma maré contra.»
Num dia deste Carnaval lembro-me de acender a televisão e ver uma longa ligação em direto de… uma operação stop da GNR algures numa rotunda chuvosa deste país. Era só isso, polícias a mandar carros encostar à berma, e fez-me pensar «que belo e pacífico país este onde uma operação stop merece diretos televisivos…». Pela mesma altura, numa sexta-feira à noite, fui a um excelente concerto. Cada vez mais gosto de concertos em salas pequenas, muito pequenas, quase sem distância entre artistas e espectadores. No caso do concerto dos The Parkinsons no clube Sabotage, essa distância tornou-se inexistente aos primeiros minutos, com o vocalista a correr e a saltar bem no meio de nós, público. Houve uma boa energia a percorrer a sala, aquele sentimento de urgência e hedonismo, de valorização total do momento presente (no future!) de um bom concerto de punk rock. E lembrei-me, como muitas vezes antes, noutros concertos, que aquela dança aparentemente selvagem, agressiva, caótica e bruta à frente do palco é exactamente o contrário do que parece. À distância, visto por quem está de fora, o mosh parece perigoso, infernal. Lá dentro, é praticamente o oposto: um momento de comunhão entre pessoas que podem não se conhecer mas partilham um mesmo momento e entusiasmo, um mesmo interesse musical, uma excitante troca de energias à flor da pele. Parece uma luta com regras da ordem do «salve-se quem puder» ou do «vale tudo menos tirar olhos», mas é o seu oposto: uma festa. E uma das suas regras, não dita nem óbvia, é (quase sempre) ajudar alguém que precise de ser ajudado. O mosh é exactamente o que não parece ser. E não é, certamente, o país que anda a querer arrancar os olhos ao próximo noutros palcos… Haverá sempre aparências que enganam.
O nosso olhar, distinto, único e as nossas experiências dizem mais do que todas as frases feitas. A nossa atitude pode fazer toda a diferença num país «onde andamos todos a…» – ou, quanto mais não seja, no nosso tão grande e tão pequeno mundo.
«Só neste país é que se diz ‘só neste país…’» canta Sérgio Godinho, mas lembro-me de o ouvir dizer que quando escrevia essa canção descobriu que em muitos países (todos?) há uma expressão equivalente dessa certeza de que «só neste país é que…».