O Sr. Moreno andava rápido mas com passos curtos pela redação. Parecia ter sempre alguma coisa para fazer. Ou então não e, tic, tic, tic…, cortava pacientemente as unhas ali, no meio de nós. Em momentos, como este, em que uma renovação profunda acontece na revista onde trabalho há 21 anos, dá-me para recuar e, mesmo sem querer, revisitar passados.
Quando cheguei à Visão, ainda na Avenida da Liberdade, 232, o Sr. Moreno lá estava, como um faz tudo, preocupado com os velhos carros ao serviço da revista ou com o misterioso transporte de pilhas de jornais e revistas de um lado para o outro. Fisicamente sempre o conheci da mesma maneira: óculos fora de moda, vindos de décadas passadas, e o cabelo muito preto, impecavelmente preto, atestando a eficácia dos produtos disponíveis para esse objetivo. Tinha uma idade indistinta que eu não saberia dizer, e uma simpatia discreta, com um sorriso reverente e delicado, quase sempre de poucas palavras. Fazia os seus trabalhos com aquela antiga submissão de quem sabe perfeitamente que está ali para obedecer, para cumprir meticulosamente pequenas missões diárias.
Até que um dia, o Sr. Moreno foi toda uma outra história. Estávamos já naquilo a que chamávamos «cogumelos», em Linda-a-Velha (a mim, aqueles estranhos edíficios hexagonais, todos ligados uns aos outros, sempre me fizeram pensar mais numa espécie de colmeia). O bar era relativamente deprimente, lá no meio da colmeia, dos cogumelos, sem luz exterior. Provavelmente pedi uma bica, talvez uma bica e um bolo, ao balcão. E o Sr. Moreno começou a falar comigo. Quando dei por mim, não estava ali.
O Sr. Moreno falou-me dos tempos que tinha passado em Macau como jovem soldado. E falou-me de uma jovem chinesa. «Muito boa rapariga». Percebi que o Sr. Moreno falava daquela pessoa e estava a vê-la, ali à sua frente. Não quis ficar-lhe atrás. Falou-me dessa chinesa e daquela noite em que ele tinha que regressar definitivamente à metrópole, do outro lado do mundo, numa longa viagem de barco. Combinaram uma despedida. «Gostava muito dela». De repente não havia bolo, nem café, nem balcão, nem cogumelos ou colmeias, nem Visão ou Linda-a-Velha.
Já no barco, o Sr. Moreno (a que, na altura, muitas décadas lá atrás, ninguém chamaria Sr. Moreno) foi surpreendido com uma ordem militar superior, incontornável: ninguém podia deixar a embarcação até à hora da partida. Mas havia um lugar e uma hora. Havia uma jovem chinesa à sua espera para uma despedida. «Era muito boa rapariga». Imaginei uma jovem de olhos em bico e sedas elegantes nas sombras do jardim de Lou Lim Ioc, como num filme de Wong Kar-Wai. À espera. Duvidando, talvez, da sinceridade dos sentimentos do seu soldado português. Olhos em bico baixos. Uma lágrima, talvez.
O Sr. Moreno lamentava-se de nunca mais ter sabido nada dela. Percebi (não era difícil) que não se perdoava, ainda, por não ter conseguido ter estado nessa despedida. Não era um assunto resolvido. Falava como se essa noite tivesse sido anteontem, como se pudesse ter feito algo de diferente, e como se ela fosse ainda uma jovem chinesa… Encolheu os ombros. Sorriu como o Sr. Moreno sorria.
«Gostava de ter sabido alguma coisa da vida dela…». Apeteceu-me esquecer o café, largar tudo, e ir a correr para Macau com o Sr. Moreno à procura dessa chinesa, à procura de um dia passado, de uma noite em Lou Lim Ioc. «Nunca tentou reencontrá-la?». «Não, como é que podia fazer? Ainda pensei, várias vezes, voltar lá…». Hoje, talvez bastasse uma pesquisa rápida, um ecrã e um clic.
Até que um outro dia… O Sr. Moreno desapareceu. Conseguiu desaparecer da redação, já em Paço de Arcos, de um dia para o outro, sem dizer adeus a ninguém. Mandou dizer que não queria despedidas. Ouvi dizer que foi para Fátima, acompanhar a sua mulher, doente, num lar. O Sr. Moreno tornou-se uma desaparição de Fátima. Para mim, aquela jovem chinesa sozinha e aquele soldado «Sr. Moreno» preso num barco, continuarão sempre a existir.