No livro A Natureza das Teorias da Conspiração, Michael Butter, que dirige, atualmente e até 2025, um projeto sobre populismo e teorias da conspiração ao abrigo do Conselho Europeu de Investigação, explica porque proliferam estas correntes de desinformação que acabam por se tornar em grandes conspirações. Uma leitura essencial sobre o que são estas teorias e porque há quem acredite nelas.
Mafalda Anjos, diretora da VISÃO, assina o prefácio da edição portuguesa. Aqui fica o texto.
Berlim, 22 de setembro de 2017
Vésperas da eleição federal na Alemanha. Eu estou em reportagem na capital política alemã, no encalce da AfD, o partido de extrema-direita que já se adivinhava que conseguiria um resultado histórico naquele sufrágio. Por sorte, encontro uma pequena ação relâmpago com um balcão desmontável e algumas bandeiras numa artéria da cidade. Um dirigente local, alto, forte e careca, pequenos olhos azuis, capta a minha atenção. Expansivo, vai desfiando os seus argumentos anti-refugados e anti-imigração – “a Alemanha aos alemães”, era a sua primeira abordagem a quem parava para ouvir. Mas, ao fim de 5 minutos de conversa comigo, rapidamente enceta territórios mais pantanosos: uma peroração sobre as “forças escondidas para lá da superfície das coisas”.
Wolfgang Blum, assim se chamava o assessor da candidata local da AfD, fala lentamente e pronuncia sílaba a sílaba das palavras que quer enfatizar, sublinhando o fim de certas frases com um tom agudo de entusiasmo nervoso. Apresenta-se como professor de História e Geografia e não dispensa uma oportunidade para falar e, sobretudo, para se ouvir. Afaga a barba, enquanto me explica tudo o que ia mal no mundo em geral e na Alemanha em particular. “É preciso acabar com esta ideologia globalista e com o imperialismo 3.0 que nos está a esmagar”, enquadra. “Esse senhor Obama, as Nações Unidas e o auto-designado Banco Mundial é que são os grandes culpados disto tudo. Angela Merkel é só uma marioneta nas mãos deles. Ela é uma escrava de um nível supremo”, resume.
Dei-lhe corda durante duas horas, interessa-me conhecer as ramificações de pensamento e os argumentos utilizados por muitos militantes da extrema-direita. Nem de encomenda, desfia-me toda a cartilha, e eu assombrada a ouvi-lo. A “grande farsa”, as “forças malévolas organizadas para dominar o mundo”, o risco de “muçulmanização da Europa”, “o Senhor ‘Gutierrez’ [leia-se António Guterres], o imperialista mor”, a União Europeia como uma “EUCreatur’”, uma junção das palavras democracia, ditadura e criatura artificial.” Está habituado a que duvidem dele e o olhem de lado. Sente que é visto como “um pária da sociedade”, mas nada o demove: “eles não conseguem ver tudo que está em causa.”
Voltei a estar com ele e com os seus companheiros de partido na note eleitoral, um trabalho que deu uma grande reportagem na VISÃO.
Fast forward a novembro de 2022.
Quatro anos depois, vou espreitar Wolfgang Blum ao Facebook. Bingo! Como imaginava, Wolfgang continua alinhado com a AfD, mas tem novo enfoque no seu discurso conspiracionista. Os “maus” são os mesmos, as elites, mas agora também apontou armas às farmacêuticas, aos cientistas e aos médicos que apoiam as vacinas. Partilha vídeos de youtube e fake news onde elabora sobre a forma como, com a desculpa da pandemia da Covid-19, os senhores do mundo e os estados “neo-absolutistas” manipulam os destinos dos povos a seu bel-prazer. Anti-vacinas, negacionista, crítico dos média, vê nas medidas de contenção planos malévolos para manter as populações mansas e controladas.
Wolfgang preenche na perfeição a checklist do que se imagina como protótipo do adepto das teorias da conspiração. Para ele, tal como tão bem Michael Butter explica neste livro, “nada é o que parece”. Tem uma certa maneira de olhar o mundo e de procurar realidades e explicações “alternativas”, fora do “mainstream”, para tudo o que acontece.
Para quem, como eu, quer perceber melhor os complexos meandros, os interesses em jogo e as cabeças dos teóricos da conspiração, este é um livro muito útil. Foi escrito antes da pandemia da Covid 19, já que a primeira edição foi publicada em 2018, mas tudo o que aqui está, desde as características, pressupostos e mecanismos das teorias da conspiração, aos argumentos em que assentam, passando pela sua instrumentalização, permite fazer a leitura do que aconteceu depois de março de 2020.
Poucos fenómenos, naturais ou criados pelo homem, têm tanto impacto global como uma pandemia perigosa. Um vírus, por definição invisível e microscópico, consegue virar o mundo do avesso.

A pandemia alterou radicalmente o quotidiano das pessoas. Obrigou a declarações de estados de emergência, a restrições de direitos, liberdades e garantias, a medidas de contenção extrema, à criação em tempo record de novos medicamentos e a operações à escala global de inoculação das populações. Fechou empresas, fez evaporar trabalhos, empurrou as pessoas para dentro das quatro paredes de suas casas.
É, sem qualquer dúvida, o cenário distópico perfeito para alimentar os teóricos da conspiração, mesmo depois do processo de descredibilização que as teorias alternativas sofreram depois da Segunda Guerra Mundial.
É bom de ver que acontecimentos imprevisíveis, transtornantes e difíceis de explicar e entender são terreno fértil para explicações alternativas que imaginam uma super-conspiração. Para algumas pessoas, por razões várias que Butter bem explica, é mais fácil de acreditar na existência de um complô global para dominar o mundo, do que em vírus que se transformam numa perigosa pandemia. E é mais fácil de acreditar que poderosos malévolos estão todos em conluio nos quatro cantos do globo do que, por exemplo, na segurança de medicamentos testados e fiscalizados pelos milhares de especialistas e médicos que compõem a comunidade científica.
LEIA TAMBÉM A ENTREVISTA COM MICHAEL BUTTER:
“Só na segunda metade do século XX é que as teorias da conspiração se transferiram do centro da sociedade para as margens. Paradoxalmente, isto teve o efeito de falarmos cada vez mais nelas”
As bolhas das redes sociais, alimentadas pelos algoritmos poderosos que fazem escalar os conteúdos que geram sentimentos negativos, fazem o resto. Ajudam, com as suas poderosas câmaras de eco, a que coisas impronunciáveis em público, porque geralmente malvistas, se tornem não só pronunciáveis, como partilháveis. Junta estas pessoas em núcleos que se autoalimentam. Faz com que estes teóricos da conspiração se sintam legitimados, fortalecidos, poderosos.E amplifica estas ideias a escalas onde, de outra forma, nunca chegariam.
Aqui estamos, pois. Num mundo onde os médicos, os cientistas e os jornalistas viraram os alvos da raiva dos teóricos da conspiração (eu, que escrevo profusamente sobre o tema, que o diga), porque personificamos não só o sistema que muitos odeiam como os factos que contestam.
Estamos perante um imenso fenómeno que junta desierarquização do conhecimento, conspirações “de baixo” e “de cima”, a ideia de uma carneirização e instrumentalização das populações, estratégias de reverse labelling, um papel especial dos ditos desertores, uma diabolização dos média de referência, um aproveitamento político pelos movimentos e partidos antissistema, mas também uma monetização destes fenómenos por quem neles viu lucrativas oportunidades de negócio e fama. Nesta obra, Michael Butter ajuda, com bases teóricas, estudos científicos e contexto histórico, a enquadrar e compreender tudo isto.
Não conte, no final do livro, sentir-se menos assombrado com as teses e com o facto de haver tanta gente, até à sua volta, que acredita realmente nelas. Mas vai sentir-se, pelo menos, mais acompanhado neste assombro.