Ainda na ressaca das eleições autárquicas, este espaço tem de voltar à análise das prioridades da governação. Claro que a visão estratégica prevalecente nestes dezoito meses de Montenegro, após oito anos de oposição, tem por objetivo essencial a consolidação e permanência no poder a que acedeu na sequência de uma operação policial e com precárias condições de governabilidade.
Daí a concentração da ação de Luís Montenegro em torno da busca das melhores condições para provocar as eleições antecipadas destinadas a expandir a maioria de apoio ao Governo, bem como, desde maio, a preocupação com a distribuição de rendimento disponível adicional nos meses que antecederam as eleições autárquicas .
Para o Governo Montenegro I, os objetivos para os primeiros meses de governação eram conseguir a paz social com os setores da função pública em ebulição e resolver a crise do SNS. Os resultados são conhecidos, foram os famosos 19 acordos concedendo valorizações salariais a diversos setores da função pública e o Plano de Emergência para a Saúde, com os resultados duvidosos que serão avaliados por Marcelo Rebelo de Sousa nos próximos dias.
Já no Governo Montenegro II, amainada a conflitualidade social com recurso ao saldo orçamental legado por Fernando Medina, foi apresentada como grande inovação a criação do Ministério da Reforma do Estado, conceito que tem tantos sentidos quanto os analistas, mas é fortemente mobilizador das correntes mais liberais da direita política e económica.
Dizendo sempre não seguir a cartilha mais radical dos despedimentos de funcionários públicos, defendida pela IL, Gonçalo Matias colocou a prioridade na simplificação da relação do Estado com os cidadãos e nas virtudes das alterações orgânicas dos ministérios.
Para tanta expectativa, o resultado tem sido modesto, aparecendo apenas no final de julho com uma agenda de reforma de todos os ministérios até junho de 2026, a começar pelo Ministério da Educação, e com a nomeação de uma nova figura de CTO do Estado para liderar a nova versão mais tecnológica da reformatada Agência para a Modernização Administrativa.
Infelizmente, o ímpeto reformador de Gonçalo Matias parece ainda não ter voltado de férias, exceto uma fugaz entrevista em que prometia sobretudo iniciativas legislativas, que ainda nem sequer foram enviadas à Assembleia da República, em matéria de contratação pública e de limitação do controlo prévio do Tribunal de Contas.
Entretanto, o mais controverso dos diplomas orgânicos da área da Educação, o que funde a científica FCT com a empresarial ANI numa nova empresa pública, ainda aguarda promulgação pelo Presidente da República. Também não foram evidenciadas as vantagens das alterações orgânicas efetuadas para a qualidade do serviço público de educação. Igualmente, não se sabe qual o Ministério que se seguirá na carpintaria da Reforma do Estado.
Mas, entretanto, acentuam-se sinais de ineficiência administrativa relativamente aos quais não se conhece qualquer intervenção agilizadora de Gonçalo Matias.
Milhares de filhos de emigrantes portugueses chegam a permanecer apátridas até já andarem, devido aos atrasos do IRN que chegam a demorar mais de um ano na atribuição do registo da nacionalidade portuguesa.
Igualmente, as crianças estrangeiras que aspiram ao reagrupamento familiar em Portugal chegam a esperar cerca de dois anos, com as consequências na integração familiar na sociedade portuguesa e no acesso à educação, devido aos cerca de 24 mil processos pendentes na AIMA.
E o que dizer dos atrasos de cerca de um ano na atribuição de apoios à renda destinados aos jovens, engarrafados na incapacidade de resposta do IHRU, o que justificou já a intervenção da Provedoria de Justiça sugerindo a imediata alteração de procedimentos.
Ou, que mais será preciso fazer para que os 20 mil candidatos a apoios ao financiamento de novas janelas , que já pagaram, tenham o resultado da apreciação das candidaturas feitas no início de 2024 ao programa de apoio à eficiência energética?
E, como último exemplo, estando já registados no BUPI-Balcão Único do Prédio desde 2018 cerca de 6,7 milhões de prédios rústicos nos municípios a norte do Tejo que não têm cadastro rústico, porque se acumulam nos serviços centrais do Ministério da Justiça os processos de conciliação entre proprietários ou de análise de denúncias sobre registos incorretos?
Já agora, continua sem se saber se o sistema de inibição de sinais de telemóvel anunciado para a prisão de Vale de Judeus, aquando da fuga de setembro de 2024, já está instalado ou se ainda está encalhado na burocracia.
Podíamos dar múltiplos exemplos de questões concretas que afetam a vida dos portugueses e que não se resolvem com declarações solenes sobre digitalização de procedimentos.
Pela inexistência pública e pela ausência de intervenção relativamente aos casos de constrangimentos conhecidos ao eficaz desempenho da administração pública, vai para Gonçalo Matias o prémio Laranja sem Sumo de hoje.
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