As eleições autárquicas foram mais uma vez a grande festa da participação democrática com múltiplos festejos locais, algumas surpresas e uma leitura nacional que não pode ser evitada.
Antes de tudo, saudar o significativo aumento da participação eleitoral quase ignorado nos comentários noturnos. As eleições locais são normalmente as que têm maior abstenção, sobretudo nas grandes áreas urbanas que só é superada pelas europeias, mas a existência de múltiplas autarquias muito disputadas e a tendência de aumento do número de votantes registado nas últimas eleições legislativas levou ao aumento da participação de 5 milhões para 5,5 milhões de eleitores. Uma participação superior a 59% em eleições locais só se tinha verificado em 2009 com mais 33 mil votantes do que ontem e isso é uma boa notícia para a saúde da democracia.
A estratégia de Luís Montenegro de mobilização dos recursos orçamentais para consolidação do poder revelou-se ainda mais bem-sucedido do que nas eleições de maio, com a mobilização de toda a artilharia de boas notícias para o período pré-eleitoral naquilo a que a frontalidade de Castro Almeida, que viu o PSD recuperar a sua São João da Madeira, chamou política dos “bolsos cheios”. O empenho foi tal que o Orçamento chegou ao Parlamento vazio de novidades, como a já chamada proposta mais “chata” de sempre, e com uma antecipação do regresso dos défices orçamentais no próximo ano, segundo o Conselho de Finanças Públicas.
Mas o que conta para um pragmático como Luís Montenegro são os resultados que não podem ser escamoteados. O PSD reconquistou a presidência da ANMP e da ANAFRE ao eleger mais presidentes de câmara e de junta de freguesia do que o PS, o que já não sucedia desde as eleições de 2009. Além disso reconquistou câmaras de grande dimensão como Sintra, Gaia ou Porto que já não geria há 12 anos, e teve algumas vitórias com grande relevância simbólica como Guimarães ou Beja.
O PS falhou o objetivo de manutenção do maior número de câmaras e da presidência da ANMP, mas teve uma noite agridoce ao desmentir todos os especialistas, como os do estudo que fez capa no Expresso, que apontavam para um cataclismo fruto da projeção local dos resultados das eleições de maio e da impossibilidade de recandidatura de quase 80 autarcas.
Com 127 câmaras e cerca de 29% dos votos, o PS tem o seu quinto maior número de vitórias em 14 eleições autárquicas, muito longe do anunciado descalabro e muito distante do pior resultado de sempre com as 79 câmaras conquistadas em 1985, na transição do bloco central para o cavaquismo. O PS não só se assumiu claramente como o partido liderante da oposição, como conseguiu revalidar a sua base territorial em todo o território nacional sendo o único partido a eleger autarcas em todos os distritos e nas regiões autónomas.
Numa noite em que perdeu algumas autarquias importantes teve saborosas novas vitórias desde Bragança a Faro sem deixar de realçar as muito simbólicas conquistas de Viseu, pela primeira vez ganho à esquerda, de Coimbra e de Évora para além do sinal político que representa o esmagamento do Chega no Algarve por uma goleada de 11 a 1. Mesmo a solitária vitória de Albufeira, na região em que o Chega cantara dupla vitória nas legislativas de 2024 e de 2025, foi retirada ao PSD por um deputado trânsfuga.
Mas o PS tem problemas sérios que não pode ignorar nas áreas metropolitanas e no eleitorado jovem que obrigam, passados os ciclos eleitorais partidários, a uma análise séria das causas da erosão do voto urbano e antecipam um caminho longo de retoma da capacidade de mobilização do descontentamento resultante do futuro desgaste do governo PSD.
A boa notícia da noite foi a clamorosa derrota do Chega que não conseguiu traduzir a sua arrogância e ausência de candidaturas credíveis em mais do que 3 vitórias municipais e 13 presidências de junta de entre mais de 3 mil. Mesmo assim, estas experiências de poder serão certamente escrutinadas para se aferir a diferença que faz um partido de um homem só, conhecido por ter quase tantas confusões judiciais quanto eleitos. É sobretudo bom para a democracia ter o Chega com menos câmaras que o PCP ou o CDS, partidos fundadores do regime democrático e que tiveram muitos autarcas prestigiados ao longo de 50 anos.
O PCP continua no seu caminho de declínio, perdendo as últimas duas capitais de distrito e três câmaras do Litoral Alentejano, ficando com ainda com o mérito duvidoso de ter sido levado ao colo pela direita da comunicação social em Lisboa e ter conseguido, apesar da perda de um vereador, os votos que garantiram a reeleição de Carlos Moedas.
O CDS fez prova de vida derrotando o PSD nas suas seis autarquias e a IL, o Livre e o BE demonstraram, mais uma vez, a sua irrelevância territorial.
As próximas semanas vão mostrar a irracionalidade de um sistema eleitoral que senta as oposições nos governos locais e tem um controlo fraquíssimo dos executivos pelas assembleias municipais.
Voltaremos rapidamente às desgraças do SNS e à iniquidade da política de habitação, mas hoje é dia de festejar a vitória da democracia local sobre o populismo que permite dar a Luís Montenegro um insólito prémio Laranja Doce.
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