Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Faltam poucas semanas para o Natal. Num cenário normal, a minha avó estaria desde outubro a pensar nos lugares à mesa para a consoada. Por esta altura, já teria à mão a varinha com que marca o leite-creme, perfumando a casa com o mais doce aroma a queimado de sempre. Neste ano para esquecer, está desde março a pensar no hediondo vírus. Além das vidas que a doença leva, a somar ao assolo do desemprego, da crise global e da fome, o seu mais amplo embate é no nosso imaginário: ninguém, nos últimos oito meses, viveu um dia sem pensar no vírus. Aqui, se é cedo para sabermos como será o Natal em 2020, há algo que podemos fazer, já, para o tornar mais caloroso, mais feliz e mais justo: apoiar, com as nossas compras natalícias, quem tem tido um ano desastroso. Comprar presentes no comércio local, nos artistas do bairro e nos pequenos negócios.
Cedo se tornou claro que não “estamos todos no mesmo barco”. Se todas, ou praticamente todas, as vidas foram prejudicadas, limitadas e assombradas pela crise, há, pelo menos, dois grandes grupos de pessoas: aquelas para quem tudo isto é um transtorno e aquelas para quem isto é uma absoluta catástrofe. Se o clima de medo, peste e isolamento é omnipresente, o sofrimento de quem já não tem paciência para ouvir falar do vírus e o de quem viu a sua vida destruída não são comparáveis. Os dois sentimentos são legítimos, mas há que fazer esta distinção. Estamos todos exaustos, mas nem todos estão apenas exaustos: há quem tenha perdido os seus entes queridos sem se poder despedir deles, há quem tenha perdido a paz e a alegria, o emprego e o ganha-pão, a saúde e a esperança, e agora esteja à fome. Parte destas pessoas são os pequenos comerciantes, os artistas e criativos, os criadores independentes, os lojistas de esquina, os donos dos cafés de bairro, os feirantes, as associações culturais, as empresas familiares e tantos outros que dão vida e diversidade às nossas ruas, condenados à aflição.
É aí que nós todos entramos. Por mais que a crise nos achate a vida para além da curva, tiremos o momento para compreender o nosso papel enquanto consumidores. Se, nas sociedades contemporâneas, os indivíduos se definem muito pelo que consomem – quer queiramos, quer não -, é essencial interiorizarmos que, ao comprarmos numa loja, estamos a apoiar essa loja e não outras. Mais: ao comprarmos um guardanapo que seja, estamos a escolher apoiar uma determinada cultura empresarial, um ciclo de produção e uma filosofia de gestão. Se escolhermos um chocolate, estamos a incentivar o modo como aquela empresa plantou e colheu o cacau, transformou, produziu, pagou aos empregados, embalou, transportou, negociou e o fez chegar até nós. Estamos a ditar a sobrevivência daquele processo, e não de outro. Como consumidores, temos esse poder. Na faculdade, um dos meus professores preferidos disse-nos que o maior grupo de interesse do mundo são os consumidores: um grupo com 7 biliões de membros. Está na altura de tomarmos consciência do poder que temos em mãos.
Devíamos ter consciência de que comprar um sabonete artesanal, uma compota caseira, o álbum de uma banda local, a joia de uma artesã ou o produto de uma marca de amigos não tem o mesmo efeito do que ir para a fila do centro comercial, ou mandar vir uns ténis da China pela Amazon. Essa escolha define-nos como um voto democrático e livre, devendo espelhar aquilo que para nós é importante. No plano desta crise, a nossa escolha é um voto nas lojas, produtos e profissionais que elegemos para sobreviver. O Natal é, mesmo nos anos comuns, uma boia de salvação para o pequeno comércio e, em 2020, este fenómeno sente-se com muito mais força. Com as restrições sanitárias e a retração geral do consumo, as grandes superfícies conseguiram manter-se abertas, houve uns poucos negócios que se adaptaram às vendas online, mas a maioria dos comerciantes viu-se impedida de vender o que quer que fosse, ao longo de meses. O resultado é calamitoso. Parte das lojas, cafés e pequenos negócios que ainda não fecharam, estão a caminho disso – mesmo os que tinham, sabe-se lá como, aquilo a que tão ternamente se chama a “almofadinha financeira”. Esses pequenos e médios, mas riquíssimos ecossistemas estão a falir e nós temos o poder de os socorrer.
É tempo de assumirmos o poder que temos como consumidores, acedendo à ideia de que “com grande poder, vem uma grande responsabilidade”. Por muito que a compra de uma velinha para oferecer à tia possa não parecer salvar uma economia, pode. Se cada um de nós for mais consciente nas suas compras, estaremos a oferecer prendas mais únicas e originais, com mais significado, feitas por perto, enquanto estendemos a mão a quem nos conhece pelo nome.
Vamos ter um Natal atípico de qualquer modo. Podíamos tentar que fosse atípico também por aí e levar esta consciência para o futuro.