Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Adeus, férias – diz quem as teve. Se o verão de ’69 trouxe os melhores dias de sempre ao Bryan Adams, à época vivendo em Portugal, o verão de 2020 marca os dias mais estranhos da nossa vida. Um dia, alguém terá de se erguer para cantar those were the worst days of my life. 2020 ficará para a História como o ano em que se desinfectou a areia da praia, grão a grão, a maré das filas com dois metros de distância, a geleira com cerveja à socapa, que a polícia vem e multa-te, pá. Numa imagem, 2020 é uma mulher em topless, porém de máscara, espalhando álcool-gel nas costas de um coabitante, ao invés do creme solar. Voltarei ao assunto num destes dias. Por agora, impõe-se um tema premente: o regresso às aulas.
Há dias, se digitássemos “R” no Google (Portugal), duas das primeiras sugestões eram “Regresso às aulas” e “Regresso às aulas 2020”. É a grande questão do momento. Além-fronteiras, o ano lectivo já arrancou em vários países. Depois de uma interrupção generalizada das aulas presenciais, a telescola veio afirmar a centralidade da escola a sério na aprendizagem, na saúde mental e na justiça social. A constatação é geral entre professores, psicólogos e sociólogos: é urgente que as crianças voltem às salas de aula. Na Alemanha, Bélgica, Espanha, França ou Noruega, por exemplo, as aulas já regressaram, com as respectivas nuances securitárias. Desta lista, Portugal destaca-se, não por ser o primeiro país com um nome masculino a reabrir os portões – e haverá, decerto, quem admire a curiosidade deste facto –, mas por algo bastante mais estranho: o consenso sobre o regresso às aulas ainda não existe.
Na sexta-feira, a Direção-Geral de Saúde publicou um manual com medidas sanitárias para espaços de ensino. Nesse documento de 43 páginas, apontam-se directrizes para as administrações escolares, no sentido de minimizar a propagação do vírus. Em linha com as indicações divulgadas pela Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGESTE) e Ministério da Educação, cabe a cada instituição preparar o seu espaço de acordo com essas normas – não distintas, grosso modo, daquilo que se aplica às empresas, aos restaurantes, ao espaço público, aos transportes, aos hotéis ou aos eventos: máscaras em certos casos, distâncias, álcool-gel, desinfecções e planos de acção para eventuais surtos. Voilà. Os alunos pertencentes ao grupo de risco podem participar nas aulas à distância e as autoridades locais de saúde estarão sincronizadas com as escolas para garantir eficácia. Contrapondo isto com o estado da pandemia – sob controlo há três meses –, e com a urgência de os meninos voltarem à sua vida, de onde vem, afinal, a polémica?
Dos encarregados de educação não é. Um estudo do Observador Cetelem deixou claro que a maioria dos pais está a favor do regresso presencial às aulas e também que a maior parte considera estarem reunidas as condições para tal. Há, evidentemente, pais a levantar problemas, todavia pertencentes a um grupo minoritário. O mesmo sucede nos corpos administrativos. Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, considerou “muito útil” o manual, acrescentando que, estando este “acessível a toda a comunidade, permite que todos saibam como atuar”. Pediu, isso sim, ao governo que preveja solução para os professores pertencentes ao grupo de risco – o que será, concordo, necessário. Ora, se a grande questão não vem dos pais, cuja maioria quer deixar as borboletas voar, nem dos diretores e corpos das escolas, que assumirão a gigante responsabilidade de preparar os espaços lectivos, restam-nos os professores.
Quem ouvir as sucessivas declarações de Mário Nogueira, líder da Federação Nacional dos Professores (FENPROF), fica com a impressão de que o país está em guerra aberta contra os docentes, ou vice-versa. Felizmente, não é assim. De um lado, o país pede à escola que reabra, como, aliás, tem pedido a todas as instituições nos últimos meses: dentro do equilíbrio, da atenção e da segurança possível. Do lado dos professores, a adaptação ao ensino à distância foi uma tarefa ciclópica e o regresso covidiano será outra. Sem dúvida. Uma tarefa para heróis, como os professores são. Na escola, o meu professor preferido dizia que “ser professor é dar” e não consigo, até hoje, arranjar melhor maneira de o resumir. É dar. Preto no branco. Enquanto escrevo, há professores cuja prioridade clara é abrir as escolas aos alunos, empenhados em encontrar soluções para as fracas condições infraestruturais. É um desafio tremendo. Há profissionais a trabalhar em sistemas de turmas “bolha”, a organizar espaços e horários, a aproveitar ginásios e bibliotecas para garantir distâncias e arejamento, movidos pela missão de receber discentes em segurança. É esse o nobre empenho das classes que existem para servir, neste caso os alunos. Este ponto é essencial. Os professores são isto. Já Mário Nogueira, na constante ebulição que lhe é típica, ameaça com greves, acusa a DGS de “incoerência”, rematando com a ideia de que o manual divulgado há dias não permite prevenir a possibilidade de “aparecer um caso de covid” nos estabelecimentos de ensino. Chega a ser insólito. Se o objectivo for, em qualquer lugar da sociedade, eliminar a eventualidade de “aparecer um caso de covid”, a solução é fecharmo-nos em cápsulas, morrendo à fome e à sede para não apanhar o bicho. Sair à rua é, neste momento, correr um risco moderado (como sempre foi) e nada legitima mais esse risco do que a educação.
O flagelo da pandemia na infância arrepia-me. O vírus não mata crianças, mas assombra os seus sonhos, cortando asas, e isso é crime. A Covid é uma questão séria e um perigo real para os mais frágeis, mas nada justifica o terror que vivemos actualmente. Nada. Se o público adora ir ao MOTELX, Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa – de 7 a 14 de setembro no Cinema São Jorge – ninguém gostaria de lá viver durante seis meses, sem a hipótese de descer à avenida para apanhar ar. Contudo, há quem viva exatamente assim e isso tem de acabar. Se as famílias estão mergulhadas no medo há meio ano, as crianças e os adolescentes já não se lembram de tempos melhores.
Ou lhes damos alguma normalidade, agora, ou o impacto fará com que nunca venham a ser normais.