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Há imagens que não apenas comunicam — ferem. Os primeiros cartazes alusivos à candidatura de André Ventura para as próximas eleições introduziram na esfera pública uma mensagem que ultrapassa a disputa política e a retórica eleitoral.
Ao expor referências diretas à comunidade cigana e aos imigrantes do Bangladesh, estes materiais propagandísticos recorrem a uma construção simbólica que reduz grupos humanos complexos à condição de ameaça, reativando uma herança histórica de estigmatização que acompanha a formação do Estado moderno português. Não se trata de apresentar um programa: trata-se de fabricar um inimigo interno.
A escolha dos alvos é significativa. A comunidade cigana, presente no território português há mais de cinco séculos, foi sistematicamente sujeita a vigilância institucional, exclusão territorial e narrativas criminalizantes.
Ao longo do tempo, não recebeu garantias equivalentes de inclusão educativa, laboral ou habitacional. A desigualdade que hoje se observa não nasce de qualquer relutância “cultural” em integrar-se: resulta de políticas públicas que historicamente negaram acesso a mecanismos de mobilidade social.
Quando Ventura afirma que “os ciganos vivem do Estado”, ignora deliberadamente que o Estado, durante séculos, funcionou para impedir que muitos deles pudessem não precisar dele. O discurso político converte a ferida em culpa, a exclusão em falha moral, a desigualdade em escolha individual. Esta inversão é a essência do racismo institucional: transformar um problema histórico em pretexto para hostilidade contemporânea.
No caso dos imigrantes vindos do Bangladesh, o mecanismo repete-se, embora de forma mais recente. Nas cidades, trata-se de trabalhadores essenciais na restauração, limpeza urbana, construção civil, agricultura e serviços. Exercem funções que grande parte da população portuguesa recusa devido aos baixos salários impostos pelo próprio mercado nacional. São, de facto, parte invisível da sustentação económica quotidiana.
A narrativa venturista apresenta-os, porém, como intrusos que “vivem às custas dos portugueses”. As estatísticas oficiais da Segurança Social, do INE e do Banco de Portugal desmentem categoricamente essa tese: os imigrantes contribuem mais do que recebem e são hoje um dos pilares do sistema público de pensões num país envelhecido.
A ideia de que “os portugueses trabalham para sustentar imigrantes” não é apenas polémica — é falsa. Mantém-se porque produz efeito político num contexto marcado por salários estagnados, precariedade laboral e crise habitacional. O alvo é escolhido porque é vulnerável.
Ventura legitima esta estratégia sob o argumento de liberdade de expressão. Contudo, no quadro jurídico português e europeu, a liberdade de expressão não constitui licença para incitar ódio, discriminar ou humilhar comunidades inteiras. A Constituição, a legislação antidiscriminação e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos são inequívocas: o discurso hostil contra grupos protegidos não está coberto por esse direito. A retórica da liberdade, neste contexto, funciona como escudo para normalizar exclusão.
O que está em disputa nesta campanha não é apenas um pleito eleitoral; é o próprio conceito de cidadania. Ao sugerir portugueses “de primeira” e “de segunda”, ao transformar determinados corpos em peso para o coletivo, estabelece-se uma hierarquia da pertença nacional.
Onde há hierarquia da pertença, há relativização da dignidade. E quando a dignidade se relativiza, o racismo torna-se princípio organizador da política.
Este movimento não é exclusivo de Portugal. Espalha-se pela Europa, sobretudo onde há incerteza económica e crise de representação. A construção do estrangeiro como ameaça oferece uma explicação simples para problemas complexos. Mas a história europeia demonstra que tais soluções simbólicas não resolvem o real; apenas adiam o debate e aprofundam a exclusão, que acaba por regressar ao centro da sociedade que a produz.
Os cartazes de Ventura colocam ao País uma questão que é moral antes de ser eleitoral: o que significa ser comunidade? Quem define quem pertence? Quem decide quem merece dignidade?
Reduzir pessoas a slogan é conveniente. Difícil é reconhecer que nenhum país construiu justiça social sobre a humilhação da diferença. Nenhuma democracia se fortaleceu perseguindo os vulneráveis. Nenhum futuro coletivo prosperou quando fez do medo a sua identidade.
O discurso que hoje se dirige contra ciganos e imigrantes é um teste — à democracia portuguesa, à maturidade cultural do País e à coragem de recusar o racismo, sobretudo quando ele se apresenta com a tranquilidade de quem afirma estar apenas a dizer aquilo que “muitos pensam”.
Se a democracia vale algo, é agora que terá de o provar.
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