A Inteligência Artificial (IA) está a redefinir silenciosamente o consumo. Compramos o que nos é sugerido, confiamos no que nos é mostrado e vivemos cada vez mais dentro de um filtro invisível que decide por nós. A forma como consumimos deixou de fazer parte de uma relação inteiramente humana entre marca e consumidor. E é aí, nessa fronteira entre a conveniência e o controlo, que nasce um dos maiores desafios do nosso tempo: a confiança.
É inegável que a IA revolucionou o consumo de forma muito positiva. As marcas conhecem-nos melhor do que nunca, ao ponto de serem capazes de antecipar necessidades que nem o próprio cliente sabe que tem. Todos os processos tornaram-se muito mais eficientes, as respostas mais imediatas e as experiências mais personalizadas. Pode dizer-se que existe uma forte sensação de conforto em sermos compreendidos e em não precisarmos de procurar, já que tudo parece vir ter connosco de forma orgânica. Quantas vezes não dizemos que o nosso telemóvel parece que nos ouve? Mas há um preço escondido nessa eficiência. Cada pesquisa, cada clique, cada ação é um indicador valioso para sistemas que aprendem mais sobre nós do que nós próprios. E quando damos tanto de nós em troca de conveniência, a linha entre servir e manipular torna-se perigosamente fina.
O que começa como personalização, muitas vezes, acaba por resvalar para a manipulação. Hoje, a inteligência artificial é usada para criar falsas avaliações, perfis artificiais e testemunhos simulados que promovem produtos inexistentes ou de qualidade duvidosa, de forma cada vez mais convincente. Há vídeos gerados por IA que exploram deliberadamente momentos de vulnerabilidade emocional, o momento perfeito para marcas ou esquemas ilegítimos se aproveitarem de compras impulsivas. Ainda há dias, vi um vídeo de um senhor idoso a pedir ajuda para vender as suas pulseiras, supostamente feitas à mão, dizendo que precisava de dinheiro para pagar as contas de saúde. Era comovente, até perceber que nada daquilo era real. O mesmo aconteceu durante os incêndios, quando se multiplicaram vídeos falsos a apelar a doações para causas inexistentes. Estes são apenas dois exemplos entre milhares que todos os dias enganam consumidores bem-intencionados. E o mais preocupante é que esses conteúdos chegam até nós impulsionados por outros algoritmos de recomendação, também eles inteligência artificial, que, apesar de originalmente desenhados para servir o interesse do consumidor, são orientados por métricas puramente comerciais.
A lógica é simples. Quanto mais emoção, mais tempo de ecrã, o que leva a mais conversões. É um ciclo viciado que conduz a decisões impulsivas e, em muitos casos, a burlas. Este fenómeno é especialmente perigoso porque muitas vezes não é visível. A manipulação neste caso não se impõe, mas insinua-se. Em poucos segundos, um utilizador pode ser levado a depositar a sua confiança numa marca que não a merece, ou a duvidar de outra que atua com integridade. Num mundo onde “ver para crer” já não é garantia de nada, o consumidor enfrenta talvez o maior risco da era digital: perder a capacidade de discernir o que é real do que não é.
É importante sublinhar que o problema não é, de todo, a tecnologia, mas apenas o uso indevido que dela por vezes se faz. A inteligência artificial, por si só, não é boa nem má. O que muda é a intenção de quem a programa. E à medida que estes modelos se tornam mais sofisticados, a fronteira entre informação e manipulação torna-se cada vez mais ténue. É verdade que as marcas têm aqui um papel determinante. Aquelas que forem transparentes quanto à forma como utilizam IA, explicando de que modo os algoritmos influenciam o que o consumidor vê, recomendações que recebe ou decisões que toma, sairão naturalmente reforçadas. Marcas que assumem o compromisso da clareza não só ganham vantagem competitiva, como também contribuem para educar o mercado. Tornam-se, de certa forma, um exemplo ético num mercado saturado de desinformação e estímulos artificiais.
Contudo, cabe ao consumidor ser o principal guardião da sua própria decisão. Nenhuma tecnologia, por mais avançada que seja, pode substituir o pensamento crítico de quem compra. É sempre o consumidor que deve procurar, comparar e questionar. O poder de compra é também poder de escolha, e com ele vem responsabilidade. Entender o funcionamento dos algoritmos, perceber a origem das opiniões que lê e distinguir o que é genuíno do que é manipulado são agora competências essenciais. A literacia deixou de ser apenas tecnológica, sendo agora também emocional e cognitiva. É, em última instância, a melhor defesa contra o oportunismo que nasce da ignorância. Porque quem domina o conhecimento, domina também a sua liberdade de decisão.
E é precisamente aí que a relação ideal se estabelece, quando a tecnologia serve o consumidor, mas o consumidor não abdica do seu papel de pensar, decidir e exigir transparência. A inteligência artificial não deve ser vista apenas como uma ferramenta de automação, mas como um instrumento de equilíbrio social. Quando usada com ética e supervisão, pode corrigir assimetrias históricas entre marcas e consumidores, promovendo um mercado mais transparente, responsável e sustentável. A inteligência artificial aplicada ao consumo é, acima de tudo, um teste à maturidade das sociedades e das marcas no domínio digital. Usá-la apenas para vender é reduzi-la ao seu potencial mais raso, enquanto usá-la para construir confiança é elevá-la ao seu propósito mais nobre.
Pessoalmente, acredito que compensa, e muito, viver num mundo onde os algoritmos nos conhecem bem o suficiente para recomendar aquilo de que realmente gostamos. A conveniência que a IA nos oferece é inegável e tornou a experiência de consumo mais fluida, mais rápida e, em muitos casos, mais agradável. Esse conforto apenas exige vigilância. O consumidor moderno precisa de saber reconhecer quando está a ser servido e quando está a ser explorado. Ter algoritmos que nos compreendem é uma enorme vantagem, que supera a grande escala os problemas que possam surgir.
No futuro, o verdadeiro poder da inteligência artificial não estará em prever o que queremos comprar, mas em garantir que podemos confiar em quem nos vende.
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