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Antes era a realidade que inspirava a ficção. Agora, parece ser a ficção a escrever o guião da realidade e nem sempre com final feliz. O assalto de domingo passado ao Museu do Louvre podia ser o início de um thriller elegante, de um golpe de génio orquestrado por um milionário entediado e uma amante fatal. Mas o que tivemos foi, afinal, um crime real sem charme, sem estilo e com a precisão gelada de quem já aprendeu com Hollywood como se entra e sai de cena sem aplausos.
Foi um domingo parisiense como outro qualquer, com turistas de telemóvel em riste e filas de selfie diante da Mona Lisa, até que — coupez! — o realismo bateu forte na sétima arte. Quatro encapuzados, às 9h30 da manhã, — o Museu abre às 9h — vestindo coletes amarelos (a ironia não escapa a ninguém) invadiram o museu pela zona em obras junto ao Sena, usando um elevador de carga para chegar diretamente à Galeria de Apolo, onde se encontra a coleção de joias de Napoleão e da imperatriz Eugénie. Em poucos minutos, levaram nove peças de valor incalculável, incluindo coroas, tiaras e pedras preciosas. Uma delas, a coroa da imperatriz, foi encontrada lá fora, partida, talvez o símbolo mais perfeito de um país que ainda tenta colar os cacos da sua própria glória imperial.
As imagens captadas pelas câmeras mostram uma figura encapuzada a serrar uma das vitrinas, com a frieza de um relojoeiro. Nada de Pierce Brosnan em fato italiano, nem Rene Russo em vestido de seda a decifrar enigmas eróticos. Apenas o som metálico de uma serra e o eco dos passos apressados no mármore. Os assaltantes fugiram, imagine-se em ‘troninetes’ de alta cilindrada, tudo muito cool, com a precisão de quem estudou bem a planta do Louvre ou, quem sabe, viu demasiados filmes de McTiernan e De Palma.
Cinema sem glamour, crime sem guião
A polícia francesa suspeita de duas hipóteses: ou foi um roubo encomendado por um colecionador privado, desses que tratam a arte como se fosse um segredo amoroso escondido na cave; ou foi um golpe pragmático, desmontar tudo, vender as pedras, apagar a história. É o crime globalizado: a cultura como mercadoria, a arte como bitcoin.
A diferença entre este assalto e O Caso Thomas Crown é a mesma que separa o caviar do atum em lata. No filme de 1999, John McTiernan reinventava o clássico de Norman Jewison como uma sinfonia visual de charme, ironia e desejo. Brosnan era o milionário aborrecido que roubava quadros apenas para sentir algo, para testar a inteligência de uma mulher que o podia igualar. A arte era o jogo e o amor era o prémio.
No Louvre, não houve jogo, para já só perda. A única coisa “roubada” com estilo foi o tempo de quem acreditou que o século XXI ainda guardava lugar para ladrões românticos. Thomas Crown roubava por tédio e devolvia por amor. Estes, se devolveram alguma coisa, será por distração ou desastrados, deixaram cair pelo caminho da fuga.
De McTiernan a Zambujal: o charme perdido da malandragem
É curioso pensar como o cinema ensinou o mundo a sonhar com ladrões encantadores. Do Steve McQueen (com Faye Dunaway) em 1968 ao Brosnan de 1999, o assalto foi sempre um ato estético, quase filosófico. Um roubo só era bonito se tivesse estilo, se deixasse o público dividido entre a moral e a admiração. McTiernan filmava o crime como uma dança entre iguais, homem e mulher, ladrão e polícia, sedução e verdade. Por contraste, o assalto ao Louvre não tem nada de Howard Hawks nem de Michel Legrand. Falta-lhe cinema, a música, o flirt, a ironia. É um crime burocrático, executado com a frieza de quem já nem distingue entre o valor simbólico e o preço de mercado. Um crime sem argumento e, pior, sem twist final.
E se passarmos do Sena para o Tejo, a comparação é inevitável. Há mais de quarenta anos, Mário Zambujal inventou os nossos próprios “bons malandros”: um grupo de lisboetas trapalhões que decide assaltar o Museu da Fundação Gulbenkian com uma mistura de engenho, disparate e charme de esquina. Fernando Lopes adaptou a história ao cinema, sonhando na verdade com um musical à portuguesa, com humor, ritmo e ironia. Faltaram-lhe uns milhares de contos (na altura não havia euros), mas sobrou-lhe algo que os franceses agora perderam: alma.
O próprio realizador confessou, anos depois, que Crónica dos Bons Malandros foi uma comédia falhada, não porque fosse má, mas porque quis ser maior do que o país que a produziu. E, curiosamente, esse fracasso anunciado acabou por se transformar na sua força. O filme, com as suas trapalhadas e improvisos, tornou-se um retrato fiel do português ingénuo, sonhador e resiliente. Um cinema de falhanços gloriosos, muito distante da precisão cirúrgica dos criminosos do Louvre.
Os “bons malandros” de Zambujal roubavam com humor. Estes, franceses, parecem desesperados. Os primeiros deixavam um sorriso; os segundos, uma coroa partida pelo caminho.
Entre a arte e o crime: o Louvre como espelho da Europa
É tentador ver neste assalto um simples episódio policial. Mas há algo de mais profundo aqui. O roubo das jóias imperiais em pleno coração cultural da Europa é também um símbolo: o museu mais visitado do mundo, guardião da herança ocidental, vulnerável a quatro encapuzados e uma serra elétrica. O Louvre, que sobreviveu à Revolução Francesa, às guerras napoleónicas e à ocupação nazi, cai agora perante a banalidade do crime contemporâneo: rápido, anónimo, digitalizado. Se Thomas Crown representava a elegância da transgressão, estes novos ladrões são o reflexo do nosso tempo: sem rosto, sem ideologia, sem poesia e vão de escada-elevador e piram-se de trotinete.
A diferença entre o glamour e a ganância é a mesma que separa um heist movie de uma notícia no Le Monde. E talvez por isso, quando a ficção se cruza com a realidade, a primeira ganha sempre.
A realidade é uma má argumentista
Há uma frase que devia estar gravada na fachada do Louvre, ao lado da Vitória de Samotrácia: “A realidade é uma má argumentista.” Quando tenta imitar o cinema, falha sempre no detalhe. No caso do assalto parisiense, até parecia haver tudo para um bom filme: cenário imponente, roubo meticuloso, fuga de trotinete —, mas faltou o essencial: a emoção.
No cinema, a arte é o pretexto para a paixão; na vida real, é apenas mais uma vítima colateral. McTiernan filmava a inteligência como erotismo. Os ladrões do Louvre filmaram-se, provavelmente, com um telemóvel em modo selfie.
Ainda assim, há algo fascinante neste ciclo perverso: o mundo inspira o cinema, o cinema inspira o crime, e o crime volta a inspirar o noticiário, que amanhã servirá de argumento a outro remake. A vida imita a arte, mas em low budget.
Os novos bons malandros
Se Mário Zambujal voltasse a escrever e em francês, talvez lhe chamasse, claro, La Chronique des Bons Malins Jaunes. Seria uma comédia sobre ladrões que sonham ser Thomas Crown, mas acabam no TikTok. Seria sobre a Europa cansada, sobre o fetiche da notoriedade, sobre o roubo como performance.
O problema é que hoje já ninguém quer ser malandro, só milionário. E o crime deixou de ter romance. Onde antes havia planos meticulosos e motivações psicológicas, há agora vídeos amadores e motores de busca. O roubo do Louvre é um remake que perdeu o argumento pelo caminho. E, no entanto, não deixa de haver ironia: talvez o maior roubo seja o da própria imaginação.
Moral da história (ou falta dela)
No fundo, o assalto ao Louvre é mais um episódio da série infinita chamada “a realidade supera a ficção”. Mas esta temporada está mal escrita. Faltam-lhe personagens, ritmo e propósito. É o mundo em modo streaming: tudo acontece depressa, tudo é esquecido depressa. Os bons malandros de ontem sabiam rir-se de si próprios. Os maus malandros de hoje nem sabem o que roubaram. E entretanto, onde param as joias?
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.