O Prémio Nobel da Paz, criado em 1895 pelo testamento de Alfred Nobel, industrial sueco e inventor da dinamite, é, desde 1901, entregue pelo Comité Norueguês do Nobel. O objetivo deste prémio, como definido por Nobel no seu testamento, é atribuir à pessoa ou organização que “tenha realizado o maior ou melhor trabalho pela fraternidade entre nações, pela abolição ou redução de exércitos permanentes e pela promoção de congressos de paz.” Não só Nobel era a favor da paz e do fim da guerra, como a escolha do Parlamento Norueguês para decidir o Nobel da Paz demonstra o valor que Nobel dava a este prémio. A Noruega, na altura, fazia parte de uma união com a Suécia, pretendia afirmar a sua independência e também se comprometia com o pacifismo internacional. Um dos maiores autores noruegueses da época, Bjørnstjerne Bjørnson, foi também inspiração para Nobel, ao escrever sobre o caso Dreyfus, atacando a justiça francesa pelas suas ações antissemitas, e, também, sobre a destruição da língua eslovaca por forças austro-húngaras. É assim claro que o Nobel da Paz nasceu de um gesto de reparação moral e político, numa altura em que o mundo se preparava para a guerra.
“Paz”?
O que é a “paz”? É a ausência de guerra? É justiça? É dignidade? É o silêncio das armas? É a liberdade dos povos? O Nobel da Paz pretende celebrar ações definitivas a favor da paz, dos direitos humanos e da reconciliação. Embora o testamento de Nobel seja a referência, o critério de atribuição tem evoluído, refletindo os sentimentos do Comité Norueguês, que mais do que uma vez premiou a conveniência diplomática, acima do diálogo, da redução do sofrimento humano e dos princípios universais de liberdade e dignidade, tornando com o tempo, este prémio num instrumento da hipócrita nova ordem liberal. O Nobel da Paz – símbolo moral, é também um instrumento político, que oscila entre a utopia humanista e a diplomacia pragmática, pois, quando a paz é definida por comités políticos, existe sempre o risco de se transformar em diplomacia.
Vencedores que honraram o ideal
Ao longo dos largos anos que o prémio tem sido entregue, existiram muitos laureados que honraram o significado do prémio e cumpriram os objetivos com coragem e integridade moral.
– Desmond Tutu (1984) e Nelson Mandela (1993) simbolizaram a vitoria sobre o Apartheid, através da reconciliação e contra o ódio racial. Tutu, que nos anos 70 e 80 liderou o movimento anti-Apartheid pacifico na Africa do Sul, defendendo o boicote da Africa do Sul, foi um dos líderes que elevou a luta anti-Apartheid ao nível internacional; Mandela, que esteve preso mais de 27 anos e que após a sua libertação liderou o ANC, e organizou com o regime Apartheid, o fim do sistema, e as primeiras eleições verdadeiramente livres na Africa do Sul.
– Martin Luther King Jr. (1964), que liderou a luta não violenta contra a segregação racial nos Estados Unidos nos anos 60 e que defendeu ideia de que a paz é inseparável da justiça social.
– Lech Walesa (1983), operário e líder do movimento Solidariedade, que foi laureado pelo confronto contra o autoritarismo comunista através da mobilização operária e cívica não violenta, e pelo seu trabalho pelos direitos humanos na Polónia.
– Rigoberta Menchú Tum (1992), indígena K’iche’ guatemalteca, que deu voz às vítimas da opressão étnica durante e depois da Guerra Civil da Guatemala (1960 – 1996), e que se dedicou a promover internacionalmente os direitos das mulheres e das populações indígenas.
– Carlos Felipe Ximenes Belo e José Ramos-Horta (1996), que receberam o Nobel pela luta da independência de Timor-Leste. Ximenes Belo, que tinha, durante os anos 80, denunciado as ações do regime Indonésio, incluindo o massacre de Kraras, e que em 1991 acolheu e deu santuário a vários jovens que tinham fugido do massacre de Santa Cruz em sua casa; Ramos-Horta, que era o representante timorense na ONU e o ministro dos Negócios Estrangeiros em exilio, foi reconhecido como o porta-voz da causa timorense desde 1975.
– John Hume e David Trimble (1998) que foram laureados pelos seus papéis decisivos para os Acordos de Belfast, que puseram fim às décadas de violência na Irlanda do Norte, através da negociação e da reconciliação.
Estes são exemplos de que o Nobel cumpriu o seu propósito. Com estes nomes, a paz não era só uma palavra, era um objetivo, era o trabalho de uma vida.
Os ignóbeis da Paz
Contudo, nem todas as escolhas têm sido coerentes com o espírito inicial do prémio. Há momentos claros em que o prémio se tornou num mero jogo de realpolitik.
O caso talvez mais controverso é o de Henry Kissinger (1973), que foi distinguido em conjunto com o vietnamita Lê Đức Thọ (1993) tendo este último, ao contrário de Kissinger, recusado o prémio. A razão de ser desta atribuição foi o papel de negociação do cessar-fogo de 1973, que ficou conhecido como os Acordos de Paz de Paris, que acabaram com o envolvimento direto americano na Guerra do Vietname. Mas o certo é que os EUA continuaram a enviar dinheiro para o Vietname do Sul, ajudando a prolongar a guerra. Kissinger foi um dos responsáveis políticos pelo bombardeamento de Hanói, e pelos bombardeamentos secretos do Camboja e Laos, enquanto decorriam as negociações dos Acordos de Paris. Apoiou ainda o regime paquistanês, nos massacres cometidos no Bangladesh. Kissinger era tudo menos um agente da Paz – a sua escolha transformou o Nobel da Paz num símbolo de ironia. A sua escolha denegriu o Nobel.
Em 1993, com Mandela, também Frederik Willem de Klerk (1993) foi laureado. Embora tenha sido ele que pôs termo ao sistema de Apartheid, representava o regime que tinha defendido durante toda a sua vida. É difícil desassociar o mérito político do peso histórico e criminal da opressão que administrou e defendeu. Em 1993, o Comité confundiu reconciliação com absolvição, pois o homem que liderou o sistema recebeu o mesmo prémio que aquele que o deitou abaixo, um paradoxo que enfraquece o sentido do prémio.
Em 2009, a escolha de Barack Obama (2009), poucos meses depois de tomar posse, revelou a fragilidade política das escolhas do Comité. Obama, que tinha prometido uma nova era, a do diálogo, foi escolhido apenas pelas suas promessas e sem se esperar para ver quais as suas ações. Mas foi com Obama que a utilização dos drones aumentou exponencialmente – no seu primeiro ano, Obama autorizou 54 ataques com drone (mais que Bush em todos os seus mandatos). No total, Obama autorizou 563 ataques com drone que mataram cerca de 3.797 pessoas. No Iémen, Obama autorizou em 2011 vários ataques, o primeiro dos quais matou 21 crianças sendo que 10 delas teriam menos de 5 anos. Acresce que na campanha eleitoral que serviu de base para a sua escolha a Nobel da Paz, Obama prometeu fechar Guantanamo Bay, o que não fez, sendo que no pós 9/11 aquela serviu para deter e torturar vários suspeitos de terrorismo ilegalmente, tendo vários sido ilibados mais tarde. O Nobel da Paz de 2009 foi o Nobel da antecipação e da desilusão.
Em 2012, o prémio atribuído à União Europeia (2012) por seis décadas de contributo para a paz, reconciliação, democracia e direitos humanos na Europa foi outro erro do Comité. Na altura, vários estados-membros participavam e financiavam guerras, nomeadamente na Líbia e no Afeganistão, e produziam e vendiam armas a regimes autoritários pelo mundo fora, sendo que já existia uma crise migratória, que era mal gerida pela UE. Na altura, Desmond Tutu (1983), Mairead Corrigan Maguire (1976) e Adolfo Perez Esquivel (1980), entre outros, escreveram uma carta aberta contra a decisão afirmando que a União Europeia agia contra os princípios do prémio, e que não era um protagonista pacifico.
Estas escolhas do Comité expõem um problema estrutural – o Nobel da Paz é o prémio de intenções e gestos diplomáticos, não de coerência moral, nem de paz. O Comité ajuda a transformar a paz num conceito negociável, sem valor, que depende de uma narrativa dominante. A paz é geopolítica.
O risco Trump
Com o cessar-fogo entre Israel e Hamas, surgiu a possibilidade de Donald Trump ser laureado. Não nego que seria de louvar Trump se o cessar-fogo se mantivesse e a solução dos dois estados fosse implementada, no entanto, múltiplas razões existem pelas quais Trump não deveria nunca ser laureado com o Nobel da Paz. Trump tem banalizado o ódio, tem elogiado ditadores homicidas, retirou os EUA de tratados internacionais, reconheceu, em clara contradição às leis internacionais, Jerusalém como capital de Israel, bombardeou barcos à costa de outro país sem justificação, deportou cidadãos do seu próprio país apenas por serem de outra etnia, defende a cessação do Habeas Corpus, propõe a deportação de milhões de pessoas, envia o exército para as suas cidades sob falsos pretextos, para poder controlar estados democratas, e talvez num gesto que clarifique por completo a sua visão, alterou o nome do Departamento da Defesa, para Departamento da Guerra. Se Trump for Nobel da Paz, o Nobel perderá por completo o algum capital moral que ainda detém. Seria a vitória da demagogia e uma paródia de mau gosto sobre a decência, sobre a paz.
O certo é que o Comité para o Nobel da Paz decidiu, e bem, não atribuir a Trump o prémio por si tão desejado.
O Nobel da Paz de 2025
O Comité decidiu premiar este ano Maria Corina Machado pelo seu trabalho corajoso contra o regime de Maduro e a favor da democracia e dos direitos democráticos. No entanto, não obstante a sua luta pela democracia Venezuelana, podem ser-lhe apontadas algumas falhas que foram ignoradas pelo Comité. Primeiro, Machado é alguém com ligações próximas a Jair Bolsonaro (responsável e condenado por liderar uma tentativa de golpe de estado no Brasil), Benjamin Netanyahu (tendo estabelecido um acordo com o partido deste – Likud), sendo ainda alguém que defendeu os ataques dos EUA contra barcos nas Caraíbas que mataram várias pessoas sem qualquer base legal, ataques estes que correspondem a assassinatos extrajudiciais, o mesmo tipo de ação pela qual Rodrigo Duterte se encontra atualmente a julgamento em Haia. Ainda uma nota final para referir que Machado dedicou o Nobel a Trump, o mesmo homem que quer acabar com o estatuto temporário de proteção de mais de 300.000 Venezuelanos nos EUA, que fugiram da Venezuela em busca da suposta liberdade dos Estados Unidos.
O Nobel da Paz e a nova ordem liberal
Embora tenha nascido e vivido num período anterior ao do estabelecimento da nova ordem liberal global, o Nobel da Paz tem se tornado num espelho desta. Recompensando aqueles que defendem a paz dentro dos limites do sistema internacional dominado pelos EUA e Europa. É um instrumento simbólico de legitimação das lutas dignas de reconhecimento e das que devem permanecer invisíveis. O Nobel da Paz é hoje o termómetro moral da nova ordem liberal global. O Nobel não é neutro, é sim um instrumento simbólico de poder. Aqueles que lutam pela paz e que fazem todos os possíveis e impossíveis para acabar com os conflitos no Saara Ocidental, no Sudão, e no Iémen entre tantos outros ficam de fora, porque a paz que defendem incomoda o poder ocidental.
O desafio
O Nobel da Paz é o mais prestigiado e contraditório dos prémios internacionais. Carrega a esperança sobre a sombra da hipocrisia. É um lembrete da consciência moral e ética, mas também da fragilidade da paz num mundo de interesses. O desafio do Comité é igual àquele que como comunidade internacional enfrentamos, o de restituir à paz o seu significado pleno, libertá-la da retórica e devolvê-la à ação coerente e concreta. O prémio não deveria ser o reflexo do poder, mas a recompensa de quem luta pela paz em nome da humanidade.
O verdadeiro prémio da paz está nas ruas e nas ruínas de Gaza, do Sudão, do Iémen, do Haiti, e de tantos outros locais destruídos pela guerra. A paz não é um diploma nem uma fotografia, é um ato de coragem. E enquanto o Comité premiar o conforto dos fortes e ignorar o sofrimento dos fracos, o Nobel da Paz continuará a ser o símbolo daquilo que deveria combater: a hipocrisia dos que falam na paz enquanto alimentam a guerra.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.