Muito se tem escrito e debatido sobre políticas públicas na esfera local, municipalização da cultura, participação/acesso e democracia cultural em Portugal. A realidade do País é desigual e heterogénea, havendo, contudo, vários exemplos de boas práticas e de abordagens inovadoras por parte de algumas entidades públicas que, de facto, vão trilhando novos caminhos e que valorizam a escuta activa, o questionamento e reflexão (auto-)crítica, o debate alargado, a informalidade focada, a convocação da diferença e da diversidade, o empoderamento e capacitação do outro, a experimentação-risco-erro, a horizontalidade relacional, a co-criação, a governança partilhada.
E depois existe um universo ainda significativo de instituições e agentes locais estatais, de maior ou menor dimensão/escala/impacto, cujo posicionamento varia entre três cenários principais: a “confortável” manutenção de antigos modelos e lógicas de intervenção, dominada por uma mundividência autocentrada e concentracionista, sem espaço para a reflexão ou revisão de práticas nem para abordagens mais colectivas; uma ilusória abertura à mudança, sobretudo com iniciativas incipientes que visam transmitir publicamente ao seu entorno e a seus pares uma ideia “politicamente correcta” de (aparente) alinhamento com as grandes questões culturais da contemporaneidade; e a testagem, aqui e ali, de algumas novas soluções, mas não poucas vezes sem base participativa e/ou destituídas de pertinência ou de um cariz continuado, consistente e, sobretudo, consequente.
Entidades de abrangência nacional, como a Direcção-Geral das Artes, o Plano Nacional das Artes, o Observatório Português das Actividades Culturais, o TNDMII, as associações Acesso Cultura e Gerador, as fundações “la Caixa”, Calouste Gulbenkian, EDP e Francisco Manuel dos Santos, o Politécnico de Leiria/ESAD.CR ou as cidades que têm ostentado o título de “Capital Portuguesa da Cultura” – incluindo aqui também vários grupos ou redes (in)formais, de escopo temático ou territorial, ligados a movimentos cívicos e a contextos, equipamentos e organizações culturais públicos e independentes de maior ou menor escala –, entre outras, têm desempenhado, a este nível, um papel focado e relevante na apologia, valorização, promoção e implementação de um novo mindset e modus operandi, pois é sempre esse o desafio primeiro e maior. Esse trabalho tem vindo, progressivamente, a gerar frutos – é fundamental dar esta nota, sob pena de se instaurar como perceção dominante a ideia de que estamos sempre a começar do zero –, mesmo que nem sempre muito visíveis ou mediatizados, os quais se traduzem, desde logo, na urdidura de uma teia de relações humanas que enforma uma crescente comunidade alargada e diversa de cidadãos-agentes e entidades coletivas informados, empáticos e comprometidos com uma nova “didática da invenção”, como diria o poeta brasileiro Manoel de Barros: “desaprender […] ensina os princípios”. Para reaprender a falar de política, direitos culturais, democracia.
Sublinhe-se, nos últimos anos, algumas publicações essenciais que saíram a público e que permitem perceber mais aprofundada e actualizadamente este panorama/problemática: O Pequeno Livro Aberto sobre o Interior (2021, com edições posteriores), da Gerador; a Carta do Porto Santo (2021) e a respectiva Adenda dos Jovens (2025), do Plano Nacional das Artes; o Atlas Artístico e Cultural de Portugal (2024), da Direcção-Geral das Artes; O Associativismo Popular Português no século XXI (2024); o Caderno Criar Coragem (2025), do Plano Nacional das Artes; o relatório A Descentralização e a Desconcentração de Políticas Públicas (2025), do Instituto para as Políticas Públicas e Sociais do Iscte; e o Caderno de Políticas Culturais – Propostas e reivindicações do sector cultural e criativo (2025), da Cultural Trend Lisbon no âmbito da Convenção MIL e das eleições autárquicas deste ano, o qual preconiza inclusivamente a criação, junto da Associação Nacional de Municípios Portugueses, de uma “Coligação de Municípios pela Democracia Cultural”. A investigação, reflexão crítica e debate patentes e suscitados por estes trabalhos de referência têm permitido, gradualmente, uma maior consciencialização da tutela da cultura, do sector cultural e criativo e das entidades públicas que integram esse ecossistema para questões fulcrais como a cidadania e democracia culturais, o acesso e a participação. Mas ainda há muito caminho a percorrer a nível das mentalidades e dos diferentes territórios.
Na esfera autárquica assiste-se a um claro contexto de atomização das políticas públicas para a cultura, resultante quer das especificidades e desafios ligados aos enquadramentos geográfico, demográfico e socioeconómico de cada concelho, quer do seu histórico político-partidário, quer do perfil, grau de preparação/conhecimento/experiência e estratégia de intervenção territorial dos executivos municipais, quer ainda das características e evolução do próprio terceiro setor local. A criação, pela tutela da cultura, em modo top-down, de várias redes culturais descentralizadas pelo território a partir dos anos 80 do século passado (com as bibliotecas públicas na dianteira desse processo em 1987) veio também contribuir para uma enriquecimento e diversificação da oferta cultural ao nível local, de que a Rede Portuguesa de Teatros e Cineteatros Portugueses e a Rede Portuguesa de Arte Contemporânea são os exemplos mais recentes.
Neste âmbito, as visões e práticas culturais ao nível camarário podem oscilar, no limite, entre dois “extremos”: uma tendência híper-programadora, verificável tanto em realidades urbanas de maior dimensão como noutros concelhos de menor escala, a qual tende a “secar à volta”, relega as estruturas e dinâmicas independentes para um plano subalterno/secundário e, por vezes, até as encara com alguma desconfiança e numa (não assumida e silenciosa) perspetiva politicamente “competitiva”; e, do outro lado, uma reduzida aposta no campo da cultura, em que esta funciona como uma espécie de “elo mais fraco” da cadeia e em que impera uma intervenção monocromática, pouco diversa e plural, e uma oferta cultural predominantemente orientada para o mainstream e para as massas/entretenimento, sem preocupação de maior com as minorias, os segmentos e os grupos sub-representados. Não obstante, é possível constatar, entre esses antípodas, o surgimento e consolidação de um crescente conjunto de ecossistemas culturais locais, englobando autarquias, terceiro setor e cidadãos, que se vai posicionando e evoluindo de um modo mais democrático, equilibrado, sensato e inovador.
São múltiplas e variadas as reivindicações e propostas, dirigidas às autarquias, patentes nas diversas publicações já aludidas para que o setor cultural e criativo possa ganhar novos rumos e horizontes no plano local. Toda essa plêiade de orientações e recomendações pode, contudo, ser resumida a duas ideias nucleares quando se pensa em estruturas municipais. Por um lado, no plano interno, é premente que os dirigentes autárquicos revejam criticamente a sua mentalidade institucional, os seus princípios de atuação e prioridades estratégicas, as próprias lógicas, níveis de subordinação, denominações e encaixe/distribuição de competências a nível orgânico – aspeto pouco abordado quando se fala da vertente cultural nas autarquias, mas com implicações relevantes nas dimensões simbólica, conceptual e pragmática, pois o desenho do organograma traduz e transmite uma mensagem/pensamento estrutural para dentro e para fora da organização, e pode tornar-se até um factor de facilitação ou entropia na tramitação administrativa e resolução dos processos –, os instrumentos de gestão, os circuitos, os procedimentos, os programas, os regulamentos, a composição das equipas. Veja-se, por exemplo, as áreas da comunicação e mediação culturais, as quais carecem de uma maior priorização municipal que passa pela preparação e capacitação técnicas dos recursos humanos a elas alocados, por uma melhor adequação de metodologias e práticas ao que está a ser divulgado/mediado, mas também por uma aposta na partilha de boas práticas culturais quer entre municípios quer destes junto do público em geral.
Urge, assim, um olhar holístico e transversal para dentro, necessariamente corajoso, exigente e pouco confortável para as autarquias locais, o qual implica também sair da ilha para ver a ilha (Saramago). Sabemos bem que para não poucas instituições (municipais e outras) é mais fácil esperar que os seus destinatários, públicos e parceiros se adaptem/mudem do que elas próprias estarem realmente disponíveis para alterar algo internamente, tenha isso um escopo mais circunscrito ou estrutural.
No plano externo, as autarquias devem refletir sobre o caminho já percorrido no plano cultural e avaliar e tirar ilações desse trabalho (algo ainda pouco usual na esfera política): como se têm posicionado estrategicamente; como contribuem para o crescimento, apoio, qualificação, empoderamento e autonomização do terceiro setor; como têm valorizado e “protegido” os espaços culturais independentes da crescente especulação imobiliária em contextos mais urbanizados; que tipo de relações têm mantido com o mesmo e de que forma têm criado condições que facilitem a sua maior circulação e afirmação a nível regional e nacional (de modo a ganharem escala); como interpretam o desaparecimento ou estagnação das entidades culturais, profissionalizadas ou não, e, por outro lado, como alavancam projetos (mais) emergentes; que visões e práticas inovadoras têm implementado (desafios criativos, encomendas, fóruns, parcerias, redes); como têm envolvido os cidadãos na governança; mas também que mecanismos criaram para atrair criativos e estruturas artísticas externos que aportem valor acrescentado ao território.
Neste âmbito, a promoção ou apoio à dinamização, por parte das autarquias locais, de laboratórios de inovação cívica nas áreas da cultura e das artes reveste-se de manifesta importância para uma maior porosidade das práticas e relações municipais, conquanto existam condições adequadas de escuta (os cidadãos sentirem que estão a ser desafiados não apenas para uma contribuição meramente utilitarista mas para exercícios de verdadeira co-criação), quando os envolvidos percebem que o seu contributo é reconhecido e valorizado, e quando sentem que o seu esforço é consequente e gera resultados. Estas aproximações carecem ainda, da parte dos municípios, de tempo, de um conhecimento prévio de processos similares já testados, de uma agilidade e flexibilidade comunicacionais, de investimento financeiro (não se faz participação a custo zero) e, sobretudo, da desconstrução – como relembra José Carlos Mota, reconhecido professor e investigador da Universidade de Aveiro –, em especial, de alguns mitos muito enraizados e institucionalizados associados a estas abordagens, mormente as ideias de que a participação cívica é uma espécie de substituto do processo técnico ou decisório, e de que a mesma constitui um entrave/entropia na decisão, gerando custos significativos. A este nível, as autarquias devem ainda encarar uma recorrente dificuldade estrutural: envolver as pessoas numa fase mais preliminar dos processos de decisão, para que os cidadãos não se sintam afastados da compreensão do impacto das políticas públicas.
A fechar, 11 (+1) propostas concretas de iniciativas simples (mas que devem ser geridas com cuidado e tato) e disruptivas de incentivo à participação coletiva no plano cultural que as autarquias locais (mas também os cidadãos, o terceiro setor, o meio empresarial) podem fomentar nos seus territórios:
- Ateliers de imaginação radical: criar laboratórios do risco, descontraídos e itinerantes, onde se fabricam “ideias perigosas” que traduzam formas menos lógicas, expectáveis ou habituais de percecionar o mundo e de desenhar horizontes criativos para os desafios da contemporaneidade. O fito maior é a construção de ligações improváveis, “saltos para o abismo” e cruzamentos inusitados para promover uma cultura de experimentação orientada para soluções. Imaginar muito é um antídoto contra o inevitável presentismo e desgaste dos dias, uma forma de lutar contra a desestruturação dos sonhos, uma carta para o futuro e um poderoso veículo para “queimar os lugares reticentes do mundo” (Herberto Hélder) e atingir respostas plausíveis para problemas complexos.
- Mapas de coisas invisíveis: registar aquilo que passa despercebido no dia-a-dia, mas que grita baixinho, as nuances, subtilezas, epifanias, as “pequenas coisas”, o transitório, o “inútil”, o não-verbal, o não-espetacular(izado), o que está cultural e criativamente escondido ou foi esquecido, excluído, invisibilizado, o “espaço magnífico, patético e sublime, entre as árvores” (de que metaforicamente falava Rilke), os não-lugares e os terceiros lugares que podem servir de gatilho para a inovação cultural e a arquitetura de novos futuros.
- Listas de erros/falhas/“fracassos”: o conhecimento sobre boas práticas culturais e artísticas que é disponibilizado e difundido por muitas entidades públicas resulta de uma etapa prévia de depuração que tende a eliminar tudo aquilo que é considerado “ruído” ou “falha”, fazendo com que só venha a lume, como resultado final, o lado positivo do processo. Mas pelo meio há todo um conjunto de testagens, confirmações e refutações, avanços e retrocessos, afinações e correções, enganos e surpresas, cuja não divulgação/partilha pode levar a que frequentemente se cometam os mesmos erros e se sigam as mesmas vias equivocadas.
- Radares de dissensos: sinalizar as questões culturais fraturantes, aquelas que geram controvérsia e opiniões díspares ou até contraditórias, ou as que constituem assuntos-tabu, fomentando assim o contraponto, o pensamento divergente, valorizando a escuta respeitosa da diferença, estimulando a capacidade argumentativa (consistente e sustentada; e não a gratuita, vazia ou populista) e lutando, assim, contra uma certa bolha-espelho ou câmara de eco em que tendemos a viver (de que as redes sociais são um exemplo ilustrativo). Não recear a fricção, o confronto de ideias, a coabitação de interesses contrários, a complexidade democrática quando se debate cultura (que, por vezes, também é feita da ausência de consensos).
- Cadernos de perguntas: elaborar um repositório de interrogações sobre o estado do mundo na sua vertente cultural e criativa, privilegiando o desejo e a pergunta como motores para a transformação. No fundo, trata-se de um declarado, humilde e arrojado elogio do “não sei”, tido, não poucas vezes, como uma condição associada a fragilidade, ignorância e até inferioridade. Numa sociedade obcecada com fórmulas, receitas, respostas/soluções imediatas e compartimentadas em gavetas (a preto e branco), é vital valorizar a potência de quem ousa questionar (pois isso também transforma quem se interroga e dá mais espaço e voz ao interlocutor), de quem empreende as perguntas-chave (aquelas que acertam no centro das coisas).
- Cartas de reclamações das crianças: desafiar as crianças – os seres que melhor conjugam disponibilidade, criatividade e obstinação – a exteriorizar, em registo epistolar e confessional, as suas inquietações e reivindicações em relação a matérias de natureza relacional e cívica, das mais comuns às menos evidentes. A sua curiosidade, imaginação e ousadia congénitas fazem delas faróis privilegiados para um redireccionamento e afinação do olhar institucional/adulto sobre múltiplas temáticas, entre eles a cultura e a criatividade. As crianças vão sempre um pouco mais longe na sua espontânea formulação da vontade e na sua lógica desformatada de leitura do mundo.
- Dicionários e guias breves da descomplicação: construir publicações originais e visualmente apelativas, em formato portátil, visando uma maior acessibilidade intelectual aos universos da cultura e das artes através da transposição de expressões e conceitos técnicos, temas mais especializados/herméticos (áreas profissionais, legislação, mediação) e realidades mais complexas para uma linguagem mais simples, clara, resumida e generalista, de fácil apreensão para todos.
- Itinerários do feio (e do “vazio”): conceber propostas, de cariz exploratório local, que, através de uma imersão territorial e comunitária alternativa (não eufemística nem redutora), procuram, no fundo, desconstruir as ideias de que a cultura e as artes centram a sua ação numa aceção “convencional/canónica” de beleza/harmonia e numa lógica do aprazível, do agradável, do cómodo. Urge desmistificar estas perceções em torno da fealdade (humana, coisificada, natural, simbólica, identitária) e sensibilizar pedagogicamente para a sua riqueza, imprevisibilidade e complexidade, bem como para as importâncias estética e funcional do desconforto, da estranheza, do inesperado espanto.
- Masterclasses sobre tempo e prolixidade: dinamizar formatos de capacitação dirigidos a públicos diversos, preferencialmente em ambientes informais e não convencionais, incidindo em case studies que ilustrem, respetivamente, as ideias (e suas múltiplas derivações) de que um menor volume de produção cultural e criativa não é necessariamente sinónimo de uma maior qualidade e impacto das iniciativas e projetos realizados (“menos é mais”; “não fiz menos porque não tive tempo”), e de que a preservação de um tempo longo (por oposição à ansiedade, urgência e voragem quotidianas) para as práticas culturais se reveste de inegável utilidade para uma maior respiração, maturação e consolidação dos processos criativos e colaborativos (“tempo, esse grande escultor”).
- Bolsas de contagiadores: identificar aquilo a que se poderia chamar “cidadãos-passaporte”, muitas vezes discretamente dispersos na multidão, aqueles que no seio das comunidades locais estão predispostos e têm o condão de estabelecer pontes e de criar argamassa relacional. Alguns deles não são facilitadores ou mediadores profissionalizados, nem detêm formação académica específica nas áreas cultural e artística, mas são autênticas bibliotecas humanas, especialistas em acupuntura social (tocar, de modo sensível, no sítio certo) e carregam em si uma sabedoria e tato bebidos nas (contr)andanças dos dias, em lugares de encontro – pois “há quem seja comum / há que não tenha assunto / há quem traga mais um”, mas ainda “há quem traga um conjunto”, como proclama A Garota Não numa canção seminal.
- Dias do avesso: promover regularmente momentos de experimental inversão de papéis a nível das organizações municipais e das suas estruturas hierárquicas na área da cultura, abrindo também este formato à participação externa de agentes culturais independentes. Trata-se de calçar voluntariamente as sandálias do “outro” e assimilar as inquietações e dilemas de vestir uma outra pele que é nova e estranha, de se expor a situações e desafios não habituais no seu quotidiano, isto para um entendimento menos individualista e mais tolerante e humanizado das relações interpessoais em diversos contextos/funções de poder, mas também de subordinação (activa).
- E a sua proposta participativa para a cultura, qual é?
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