Há pouco mais de uma década, as voltas do Movimento Judicial levaram-me a exercer funções no Tribunal de Oleiros, na Comarca de Castelo Branco. Aos primeiros julgamentos, sempre que precisava de questionar testemunhas sobre a data de factos mais longínquos, invariavelmente a resposta batia num marco temporal muito específico. “- Isso, senhor Juiz, ainda foi antes dos grandes incêndios”. A cada resposta similar, a evidência tornava-se mais cristalina. Os “grandes incêndios” deixaram uma marca indelével e perene no ideário coletivo daquela Vila, outrora pertencente à extinta sub-região do Pinhal Interior Sul.
Os violentos incêndios de 2003 consumiram 70% da floresta de Oleiros, reduzindo-a praticamente a cinzas, num total de 500 quilómetros quadrados em chamas. Morreram pessoas e ficaram destruídas várias dezenas de habitações. Foram dias de tragédia que afetaram também concelhos vizinhos como Proença-a-Nova, Pampilhosa da Serra e Fundão. Esses dias, para além do horror imediato, trouxeram também marcas importantes para a população de Oleiros, tanto a nível económico, como social. A devastação acarretou o desalojamento de várias famílias, sendo que a violência foi ao ponto de ter provocado a queda do altar-mor da Igreja Matriz. Durante cerca de um ano ali não se celebrou missa. Organizaram-se donativos e a tarefa hercúlea que estas populações tiveram pela frente foi desde a recuperação das habitações, passando pela rede viária e terminando com a reflorestação. Psicologicamente a marca ficou. Como ouvi de alguns: “parecia obra do diabo”. Infelizmente, e usando da mesma expressão, o diabo foi voltando, com maior ou menor força, ano após ano, marcando na nossa memória coletiva tragédias como a de Pedrógão Grande em 2017.
Volvido este tempo, 2025 foi um ano em que sobretudo o Interior foi novamente fustigado por incêndios devastadores, queimando hectares de floresta, consumindo casas, serrando vidas e deixando comunidades inteiras marcadas por cicatrizes físicas e emocionais. Por isso, e por ser de elementar justiça, impõe-se dirigir a todos os diretamente afetados, àqueles que perderam entes queridos, àqueles que perderam casas, memórias e meios de subsistência, uma palavra de profunda solidariedade, que igualmente se estende a todos os que vêm dedicando os seus dias e noites a combater as chamas: bombeiros, forças de proteção civil, forças de segurança, voluntários e moradores. São inúmeras as pessoas anónimas que têm arriscado as suas vidas para salvar os outros e o seu esforço mostra o melhor de nós enquanto sociedade, importando que os seus direitos fundamentais sejam protegidos e que se reconheça o seu inestimável sacrifício, com o apoio emocional e material de que carecem.
Nesta sequência, foi publicado, no passado dia 24 de agosto de 2025, o Decreto-Lei n.º 98-A/2025, de 24 de agosto, que veio estabelecer um conjunto de medidas de apoio e mitigação do impacto de incêndios rurais. Pese embora ali não se estabeleça qualquer alteração em matéria penal, ressalta do respetivo preâmbulo que o Governo tem como prioridade de ação a repressão deste flagelo.
Sendo a aplicação das penas matéria da competência exclusiva dos tribunais, parece resultar daquele texto legal uma aparente intenção de alteração da legislação penal em matéria de incêndios que vá de encontro às prioridades de repressão enunciadas pelo Governo. Sendo absolutamente louvável que, sem depender de declarações formais de calamidade, se criem mecanismos de apoio rápido, flexível e transparente, não se pode ignorar a colocação da tónica também no discurso punitivo que, não raro, nestes momentos, pugna pela agravação das molduras penais.
Vale a pena perder um minuto a olhar para a lei que nos diz: que o incêndio florestal dolosamente provocado é punido com pena de 1 a 8 anos de prisão; que se o incêndio florestal criar perigo para a vida ou integridade física de outrem ou para bens de elevado valor, se deixar a vítima em situação económica difícil ou se se tratar de atuação motivada pela intenção de obter benefício económico, é punido com pena de 3 a 12 anos de prisão; que se alguém impedir o combate aos incêndios é punido com pena de 1 a 8 anos de prisão; que se o agente do crime já tiver sido condenado em prisão efetiva anterior por crime idêntico, pode ser punido com uma pena relativamente indeterminada; e que se destes crimes resultar a morte ou a ofensa à integridade física grave de outra pessoa, as penas são agravadas de um terço nos seus limites mínimos e máximo, podendo assim chegar aos 16 anos de prisão.
Já o dissemos em artigo anterior (em “Violência doméstica: o desafio é agora” de 30.05.2025), que não nos parece que para o autor do crime o agravamento da pena seja decisivo. Se perante as penas já previstas a dissuasão não é suficiente, tal circunstância não decorre da sua aparente brandura, mas antes da sua não aplicação efetiva. Dados de há uma semana atrás diziam-nos que, durante este ano, foram detidas 99 pessoas por incêndio florestal, encontrando-se 39 a aguardar julgamento em prisão preventiva. Se a perceção pública aponta para um número muito maior de incendiários e se esse alarme social merece ser aplacado, cremos que o que mais urge é privilegiar a prevenção e dotar a vigilância e a investigação de meios que permitam trazer à justiça mais responsáveis. É fundamental dotar as polícias de meios técnicos, humanos e operacionais direcionados para esta problemática, investindo nas perícias forenses, com recolhas de provas em contexto florestal, com rastreios de cenários de ignição e com equipas especializadas e de pronta intervenção, quer para o apuramento das causas, quer para a identificação dos agentes e compreensão do respetivo contexto.
Sem esses passos verdadeiramente fulcrais, a mera austeridade plasmada na letra da lei apenas servirá para alimentar retórica punitiva, mas não para evitar novos incêndios nem para ajudar verdadeiramente as comunidades que estão cansadas de ver o tema sair da agenda ao primeiro sopro de outono.
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