As imagens de um Rossio meio vazio fazem desconfiar dos números divulgados por André Ventura de “três mil” participantes na inédita manifestação anti-imigração – contas que foram pronta e estranhamente aceites pela generalidade da comunicação social – que, ontem, percorreu as ruas de alguns bairros da capital portuguesa com a maior concentração de residentes estrangeiros.
No entanto, o caso não é para desvalorizar. A má notícia continua a ser, naturalmente, o Rossio meio cheio. Embora a marcha se tenha praticamente esgotado na força partidária do Chega (e de mais uns grupos marginais de extrema-direita, sem relevância de maior) – o que, diga-se, não é coisa pouca –, entre a multidão ouviram-se sotaques de todas as regiões do País; o Norte esteve representado em força.
A partir do palco, André Ventura repetiu o guião que, desde 2019, permitiu introduzir e normalizar posições racistas e xenófobas na política e na sociedade civil portuguesas. Do discurso do presidente do Chega, despontou uma frase certeira: “Isto era impensável há dois ou três anos atrás!”. É verdade. Por essa altura, o ódio e o preconceito mantinham-se silenciados pela vergonha pública.
Hoje, a vergonha perdeu-se. E apesar de ser muito fácil desmontar todos os argumentos anti-imigração que se foram ouvindo de André Ventura, dos deputados do Chega (presentes em peso) ou dos “milhares” que participaram nesta iniciativa, é preciso continuar a repetir os factos, e combater as notícias falsas e a desinformação – vai chegar o dia em que também os nossos trabalhadores estrangeiros vão ser acusados de “comer” gatos nas ruas do País.
Logo a abrir 2024, a VISÃO publicou uma grande reportagem que fez o retrato dos imigrantes que escolhem Portugal para viver e trabalhar. Hoje, é conhecida a importância vital dos imigrantes para que muitos setores de atividade possam funcionar: agricultura, pesca, turismo, restauração e hotelaria, por exemplo. A remigração sonhada pela extrema-direita teria um efeito “devastador” para a economia nacional, como alertam os patrões.
Hoje, sabe-se que os imigrantes foram responsáveis por um saldo positivo superior a 1.600 milhões de euros da Segurança Socialem 2023. E que, no ano passado, as contribuições de trabalhadores estrangeiros aumentaram 44%, em comparação com 2022, tornando-se um factor fundamental para a sustentabilidade do Estado social. Ou seja, a presença dos imigrante assegura a saúde e a educação públicas neste País; os imigrantes contribuem para os subsídios, não beneficiam deles.
Mas há mais: os estrangeiros vêm-nos roubar os empregos? É outra mentira. Atualmente, o desemprego está a um nível residual (6,1% em junho) e o emprego em níveis recorde, com 5,1 milhões de população empregada. Todas estas informações são fáceis de obter em relatórios abertos ao público.
A ideia racista e xenófoba mais forte assenta, porém, na teoria que associa a crescente presença de imigrantes ao aumento da criminalidade violenta em Portugal. O Público fez, este fim-de-semana, o trabalho de casa, analisando os dados disponíveis. Sem nenhuma surpresa, indo ao encontro de todos os relatórios conhecidos das autoridades, concluiu-se precisamente o contrário: os municípios com maior peso de imigrantes têm menos criminalidade.
Para quem chegou a este parágrafo, certamente, que o texto lhe parece familiar e repetitivo. A defesa antirracista e anti-xenófoba tem sido publicada em muitos outros sítios. Infelizmente, parece ser preciso continuar; e assim será, as vezes que for necessário.
Se chegou a este parágrafo, e os factos não lhe chegam para deixar de ter medo da diferença e do mundo em mudança; se continua permeável à mentira; se nega a realidade multicultural e progressista; se continua contaminado/a pelo ódio e pelo preconceito, então, talvez seja melhor parar para pensar: ao participar, num domingo de Sol, num passeio pela capital, ao lado de neonazis (condenados por crimes violentos), que ali se sentem em “casa”, não poderá estar do lado errado da História?
(Este artigo faz parte da newsletter VISÃO DO DIA, de 30 de setembro)