1. Enfim, parece haver uma “unanimidade” – na condenação da operação do MP nas buscas a sedes do PSD e à residência de Rui Rio. De facto, o que se passou foi surpreendente, incompreensível, inadmissível, por uma série de fatores dos quais sumario os mais notórios:
a) A acusação pelos crimes de peculato e abuso de poder, com base numa prática que nenhuma lei criminaliza e se sabe ser desde há muito seguida pelo menos nos maiores partidos;
b) O conhecimento prévio por órgãos de informação do dia e da hora das buscas a realizar, o que além do resto pressupõe uma violação do segredo de justiça;
c) A dimensão dos meios envolvidos, cem inspetores cem, de toda a evidência injustificável face à matéria a investigar e à recolha de prova alegadamente necessária;
d) A apreensão do telemóvel de Rui Rio, e, segundo o PSD, de muita documentação nas suas sedes que nada terá a ver com a acusação em causa.
2. Cada uma destas alíneas justificaria um desenvolvimento, aqui impossível. Há, entretanto, uma questão prejudicial, em sentido jurídico, que ainda não vi abordada. Não entro no debate sobre se a lei permite ou proíbe a indistinta utilização pelos partidos, na ação parlamentar e na atividade partidária, do dinheiro que recebem do Estado. Sou pela distinção o mais clara possível entre uma coisa e outra: desde logo um deputado, sendo do partido, antes de tudo é, ou devia ser, da Nação. Mas a lei, segundo a maioria das interpretações (algumas interesseiras…), permite a prática agora sob investigação, quanto ao pagamento dos funcionários do partido por verbas que vêm do Parlamento, ou no mínimo não é clara em proibi-la.
Ora, sendo assim, e tal prática, facto público e notório, desde há muito generalizada, sem suscitar qualquer tipo de procedimento sancionatório, mesmo que a mais correta interpretação da lei seja que não permite a dita prática, esta não pode ser considerada um crime. Além do mais por ser flagrante, inquestionável, a “falta de consciência da ilicitude”, indispensável para que crime exista.
Não se trata, pois, de dizer, “então é só o PSD, e os outros?”, nem de um crime deixar de ser crime porque os outros também o cometem e ficam impunes: trata-se de não haver crime e por isso esta investigação não fazer sentido nenhum. A não ser o de novo trazer para a ribalta as questões relacionadas com o poder, inseparável das enormes responsabilidades, do MP – e da justiça em geral.
3. Havendo no entanto, mal, investigação – o que há a investigar, quando os próprios assumem ter feito aquilo de que são acusados? Assumindo-o, não bastará uma documentação mínima, existente na(s) sede(s) do partido e fornecida pelos funcionários, para fundamentar a acusação? E se tal prática vem de trás e se mantém, porquê limitar a investigação ao período temporal da liderança de Rui Rio? E porquê invadir-lhe a casa, manhã cedo, e levar-lhe o telemóvel? Etc., etc. Muitos porquês, para que não vislumbro respostas justificativas. E tudo para quê?…
Infelizmente este caso faz-me lembrar outro, envergonhante, que aqui tratei, salientando a necessidade de consequências, que nunca houve. Refiro-me ao inquérito a Mário Centeno, em 2018, com buscas no Ministério das Finanças, de que era ministro. A partir de duas imaginárias coisas, ridículas, absurdas e absolutamente falsas, como de facílima verificação antes do inquérito e das buscas. Que, com os inerentes prejuízos para Centeno, tiveram grande repercussão nacional e até internacional, pois ele acabara de assumir a presidência do Eurogrupo.
4. Sei a importância do MP, valorizo o muito de bem que tem feito, julgo-o essencial inclusive para a defesa da democracia. Colaborei em iniciativas suas, desde o 25 de Abril, tendo à sua frente magistrados tão qualificados como o conselheiro Arala Chaves, o primeiro, até o meu colega e amigo Cunha Rodrigues, um excelente jurista, e vários outros. Evitar erros clamorosos, como o deste caso, quando ocorram reconhecê-los e quanto possível remediá-los, agir com eficácia mas no respeito integral pelas boas normas legais, deontológicas e éticas, impõe-se para o seu indispensável prestígio.
À MARGEM
José Luís Carneiro
Entendo que o ministro José Luís Carneiro tem dado muito boas provas e justifica larga aprovação no exercício do cargo. O que fez aumentar a perplexidade por vê-lo dar “cobertura” ao comando da PSP que se queixou de um cartoon passado na televisão pública, no qual se sugeriria haver racismo e/ou xenofobia na ação policial (segundo o autor em França, onde aconteceu o que se sabe); e, além disso, ele próprio telefonar ao presidente da RTP para o mesmo efeito. O que não só pode configurar uma tentativa de limitação da liberdade de imprensa como, para efeitos práticos pior, uma sujeição ou acomodação a atitudes que, em defesa da própria PSP, não devem ser tomadas nem toleradas.
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