Como (quase) todos nós, de vez em quando, lá tenho de ir cortar o meu cabelo, que insiste em manter-se indomável e a não cair (como seria o seu esperado comportamento, agora que já anda há mais de 40 anos na minha cabeça).
Costumo ir a um barbeiro, num sítio giro e que tem vista para o jardim do aquário Vasco da Gama, local onde tantas vezes fui quando era miúdo e que agora continuo a visitar com os meus filhos.
Mas esta história não é sobre a barbearia, ou o sítio, ou mesmo sobre as minhas memórias de infância. Esta é uma história de dois gajos: um barbeiro e um psiquiatra, que, por acaso, começaram a falar enquanto me recostava na cadeira e ele afiava (ou limpava) a sua navalha.
Conversa puxa conversa e, ao contrário do que se poderia imaginar, não estamos a falar de futebol, ou de política, nem sequer de miúdas. O assunto que veio à baila foi a saúde mental! Sim, nesta altura já me tinha descaído quanto à minha profissão.
– Diogo, como é que tu fazes para lidar com o stress? É que quando eu estou aqui, os clientes contam-me a vida toda deles… e aquilo às vezes são cenas muita maradas. E eu sinto que os tenho de acompanhar na conversa e entrar nos seus estados de espírito. E isso stressa-me imenso! Chego aqui todo bem-disposto, cheio de energia, mas ao final do dia sinto-me “bué stressado”.
– David, percebo-te. Quando estamos em contacto com as pessoas, podemos deixar-nos infiltrar pelos seus “estados de alma”. É o que se chama empatia. Mas para que isso não seja demais é importante pores alguns limites. Tipo: a conversa está pesada, oferece uma cervejinha ao cliente ou tenta mudar o tópico para algo mais leve.
– Mas Diogo, quando eu saio daqui (tarde e más horas), e vou para minha casa ter com a minha mulher, noto que em vez de ser aquele gajo positivo, com boa energia, estou irritável, sinto-me cansado e sem paciência.
– Se calhar, devias começar a pensar em fechar o estaminé um pouco mais cedo, para antes de ires para casa voltares a reencontrar-te contigo e dissipares todas as histórias e stresses que te sugaram o bem-estar. Porque não ir fazer um desporto, ou ir ver o mar, ou ir beber um copo com um amigo?
Enquanto isso a máquina corta, a tesoura apara, entram pessoas a cumprimentar e a perguntar: “David, hoje por acaso não tens uma vaga extra para mim, aí depois das 20h”. Ele já me tinha dito que quer fechar às 20h (o horário que está na parede), mas que montes de vezes sai de lá quase à meia-noite.
– Estás a ver David? É isto, se calhar tens de dizer “não” mais vezes. Não há milagres… não podes ter um horário louco, aceitar pedidos extra a toda a hora e esperar não andar com stress.
– Tens razão, mas eu tenho muita dificuldade em deixar alguém “agarrado”. E depois fico ansioso e nervoso se não dou resposta.
– Lá está, olha é como esta nossa conversa. Venho aqui eu relaxar, fazer a barba e cabelo, e estou a falar de trabalho. Mas, se isto me estivesse a stressar iria dizer-te, de forma simpática, “vamos lá parar com esta conversa que eu quero é estar aqui a ser apaparicado, e manter-me relaxado, enfiado nos meus pensamentos”.
– Mas olha, eu não te quero incomodar.
– Não te preocupes, estava só a dar-te o exemplo que podemos proteger-nos das energias (negativas ou ansiosas) através de uma coisa muito simples: comunicar diretamente!
– Sabes, Diogo, eu acho que o pessoal utiliza o barbeiro como o seu psicólogo (ou o seu psiquiatra).
– Também acho, e as cabeleiras estão na mesma situação, e os padres, e os donos do café e muitas das pessoas que lidam com o público. Mas a verdade é que esse não é o vosso papel. Há técnicos especializados para estar com pessoas que precisam de falar dos seus problemas; que por uma razão qualquer não falam nem com profissionais, nem com amigos próximos, nem com familiares, mas despejam tudo no barbeiro. E claro que isso é muito desgastante. Então se eu, que sou treinado nesta área, chego ao final de um dia de consultas com a cabeça feita em água como é que tu não esperarias esse tal stress!?
– Diogo eu não te quero incomodar, mas estou a aproveitar imensa coisa desta nossa conversa.
– Ok David, então dividimos o preço da barba e corte a meias, ok? Até podemos montar uma parceria em que tu te dedicas aos cabelos e às barbas e eu fico aqui a conversar com as pessoas.
Ficamos os dois a pensar no absurdo que isto seria… entretanto, com a navalha apontada à minha glote, ele continua o seu processo, enquanto vai processando algumas das coisas que falámos.
– Sabes, tenho de dar mais prioridade às minhas coisas… mas por outro lado, sinto-me culpado se não der sempre o máximo no trabalho (o espaço é o negócio próprio dele); ainda por cima sou perfeccionista.
– David, lamento informar. Nada é perfeito. Tu gostas do que fazes, mas se estiveres sempre em “modo excessivo”, daqui a uns tempos, vais deixar de gostar disto. E, não tens de te sentir culpado por tirares um tempo para cuidar de ti. Faz uns intervalos, arranja uma ajuda para as marcações e pagamentos, arranja um estagiário para te ajudar e sai a horas decentes para estares bem com a tua família. Olha, eu às terças acabo de trabalhar às 15h. Depois vou almoçar com calma, venho aqui relaxar no barbeiro, vou andar a pé e depois tenho uma aula de surfskate.
– Mas eu também já te percebi, Diogo, tu tens toda esta calma aparente, mas também tens os teus stresses.
– Sim David, claro. Não sou nenhum monge budista (e mesmo esses…). Tenho 3 filhos pequenos, sou médico, lido com histórias difíceis, que muitas vezes não ficam no consultório quando saio de lá, a minha mulher é médica, temos horários completamente loucos. Por isso mesmo é que aprendi que tenho de impor limites. Que tenho de ter tempo para mim, para a minha família, para os meus hobbies… e que para conseguir isso tenho de ter a palavra “não” à mão de semear. Só assim consigo estar bem para os meus doentes.
– Isso é difícil.
– Pois é, mas vale a pena o esforço.
Acabou o nosso corte. Enquanto arruma as coisas, preparando-se para o próximo cliente, fica a olhar para mim e diz-me:
– Foi fixe termos tido esta conversa, vou tentar aplicar umas das coisas que me disseste.
Eu próprio, demorei mais de 40 anos a perceber que mais não é sempre melhor, que até é mais ao contrário: menos é melhor. Vivemos numa sociedade em que, constantemente, somos bombardeados por frases como: “tens de ser o melhor”, “tens de ter o carro topo de gama”, “tens de trabalhar mais”, “tens de estar sempre a evoluir”, “tens de ter mais, precisas de mais coisas”.
Então e quando é que sobra tempo para nós próprios? Para respirar e apreciar a vida que temos, os amigos, as relações ou a beleza que nos rodeia?
A saúde mental e o bem-estar não gostam de pressas e pressões, gostam de calma, limites, serenidade e aceitação de que nem tudo tem que ser “top” ou perfeito.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.