Nesta maldita pandemia do COVID-19, várias coisas eram expectáveis. Uma delas era que a situação epidemiológica iria agravar-se consideravelmente à medida que aumentasse o cansaço da população para este tema.
Outra era que, com o agravar da situação, iriam aumentar as tensões e divisões na sociedade portuguesa. É certo e sabido que nos momentos de crise que melhor se conhecem as pessoas e neste particular não nos faltam exemplos de como, à mínima dificuldade, rapidamente os portugueses começam a apontar os dedos uns aos outros.
É isso que vemos atualmente, seja na opinião publicada, seja nas redes sociais, seja no debate político.
A questão é que essa atitude de nada adianta. Porque muito poucos são os inocentes em toda esta história.
Não são inocentes muitos dos nossos políticos, estejam eles em lugares de decisão ou na oposição, porque não houve capacidade para perceber – e coragem para assumir a decisão que se impunha! – que o Natal não era momento para relaxar. Porque poderia colocar, como aparentemente colocou, um esforço enorme, com custos sociais e económicos brutais, para manter a evolução da pandemia dentro de números aceitáveis.
A população teria aceitado mais um esforço de contenção nessa época festiva. Mas o discurso dúbio de vários responsáveis – a começar uma vez mais pelo presidente da república, que a certa altura dava conta aos seus concidadãos dos cinco jantares de natal que estavam agendados (e depois felizmente desmarcados) – foi terreno fértil para que cada um interpretasse esse relaxamento à sua maneira.
Não são inocentes muitos dos nossos autarcas – entre os quais me incluo, porque também o sou – que não foram capazes de manter uma atitude coerente ao longo da pandemia. Contribuíram muitas vezes para uma desproporcionalidade da perceção do risco por parte das pessoas e o risco efetivo.
No início da pandemia abriram como cogumelos os “hospitais de campanha” um pouco por todo o país, sem que fossem indagados onde estavam os recursos humanos necessários para assegurar o seu funcionamento. E agora que eles são precisos, tal como teriam sido em vários casos pelo país para dar suporte a situações verdadeiramente delicadas que se viveram em muitos lares de terceira idade, onde estão?
Não é inocente o deputado médico que faz voluntariado (seguramente que remunerado, digo eu) nas urgências de um hospital. Porque o voluntariado é, por natureza, abnegado e desinteressado.
E abnegação e desinteresse foi tudo aquilo que não se viu na exploração de índole político-partidária que o deputado em questão fez após esse turno “voluntário”. Nem mesmo a intensidade de um turno nas urgências, por mais difícil que seja, pode desculpar a falta de decoro que se seguiu.
Não são inocentes os bastonários de algumas das principais ordens profissionais na área da saúde. Porque esqueceram, como já vinha sendo seu hábito, que são bastonários e não sindicalistas, parecendo mais interessados em continuar a tática de guerrilha sistemática ao governo do que em cumprir as atribuições das instituições que representam.
Apesar de relativamente novo, ainda sou do tempo em que o exercício do cargo de bastonário estava reservado a grandes figuras de referência da respetiva área profissional. Que saudades desses tempos!
Não são inocentes muitos dos jornalistas e dos órgãos de comunicação social. Porque nos inundaram com informação frequentemente irrelevante, especulativa, não confirmada, muitas vezes ao arrepio das boas práticas jornalísticas.
Desde ter visto ser dada voz a muitos pseudo-especialistas (porque eles sempre aparecem nestes momentos!), até à proliferação de falsas notícias, de tudo um pouco foi servido aos portugueses. Não me esqueço dos diretos em frente a um hospital, dizendo o repórter que tinha sido encerrada a urgência por falta de capacidade de resposta e as ambulâncias a passarem em direção a essa urgência, entregando os doentes ao cuidado de um serviço que o jornalista dizia estar encerrado…
Muito do jornalismo que tem sido feito no nosso país neste período pandémico contribuiu também para o cansaço das pessoas para este tema. Muito haveria para dizer sobre particular, mas não é esse o objetivo deste artigo.
Não sou inocente eu próprio. Porque também estou de tal forma física e mentalmente cansado disto tudo que, muitas vezes, me apetece fechar-me sobre mim próprio.
Mas não posso. Não podemos.
Não podemos ficar insensíveis ao que esta pandemia está a custar em número de vidas perdidas. Não podemos perder a capacidade de nos centrar no que é importante, porque a responsabilidade do estado a que chegámos nesta situação é de todos nós e apontar o dedo uns aos outros nada resolve.
Nenhum de nós foi responsável pelo surgimento deste vírus. Mas somos responsáveis pela forma como vamos sair deste pesadelo e apenas juntos iremos conseguir fazê-lo com o menor custo possível.