O desejado regresso à normalidade não será, nem poderia ser, um regresso ao passado, mas será verdadeiramente um regresso ao futuro.
Longe de mim pretender fazer apologias, em que acredito pouco, do fim de uma era, do fim da história, da grande transformação do homem ou sequer vaticinar alegadas vitórias de uns contra os outros ou de certas ideologias sobre outras. A história seguirá o seu curso.
Mas, perante um cenário de crescente alívio das medidas de confinamento – inevitável e urgente para a coesão da nossa comunidade e para a subsistência dos nossos modos de vida –, é imprescindível o debate e a ponderação sobre as liberdades. É imprescindível o debate sobre como vamos viver com o coronavírus até que se encontre a cura ou a vacina e sobre como vamos gerir o risco epidemiológico versus a impossibilidade de manter o confinamento e a letargia económica e social durante meses. É desse debate que poderemos entrever aonde vamos regressar e qual a normalidade que nos espera.
Se me parece certo que as ditas estratégias de saída devem, tanto quanto possível, obedecer a critérios científicos e ser propostas por quem tem por missão avaliar e mitigar os riscos para a saúde pública, do outro lado, essas medidas devem ser ponderadas e decididas tendo em atenção o seu impacto sobre as liberdades.
A primeira premissa desse debate pode parecer óbvia. Porém, nestes tempos de pandemia e de medo, não é demais recordar: o critério político nunca pode ser um critério exclusivamente científico. Há, portanto, outros aspetos fundamentais que devem estar no centro desse debate. Lembrando Foucault, destaco dois: o vigiar e o punir.
O debate sobre o vigiar parece caminhar já para extremos ideológicos. O recurso a mecanismos eletrónicos de vigilância das pessoas e seus comportamentos, enquanto instrumentos de gestão da saúde pública e mitigação do contágio, não pode ser liminarmente rejeitado. A tecnologia pode ser um fator importante neste combate. No entanto, as concretas soluções a adotar, por exemplo através de aplicações que alertem para a proximidade ou contactos com pessoas infetadas, como já foi proposto, devem ser cuidadosamente ponderadas, pois, salvo o recurso a dados verdadeiramente anonimizados, implicam restrições significativas às nossas liberdades e são chão fértil para as mais variadas formas de discriminação.
Aliás, mesmo quando se propõe, como a Comissão Europeia o fez, que estas soluções sejam de adesão voluntária, os riscos para a privacidade e para a liberdade de conformação dos comportamentos de cada um de nós continuam a ser elevados. E, por isso, apesar da tentação que pode ser para o Governo a aparente aceitação pública destas soluções, as mesmas devem ser ponderadas sempre de acordo com um critério de necessidade e proporcionalidade, tornando-se imperativo demonstrar que os sacrifícios a impor justificam, de facto, os benefícios esperados e garantir que estas soluções não se tornarão no novo normal.
E não podemos esquecer o punir, designadamente o que pode e deve ser punido criminalmente. Porventura nunca no nosso tempo de democracia os princípios da legalidade e da intervenção mínima do Direito Penal estiveram tão carregados de sentido. Não sei se queremos crimes criados a martelo legislativo. Não sei se queremos regressar a uma vida em que, por exemplo, uma deslocação para uma habitação secundária tem de ser sempre justificada ou em que a utilização de máscara seja obrigatória em qualquer deslocação, sob pena de se incorrer em responsabilidade criminal.
Não sei se quereremos mesmo regressar a esse futuro.