O número choca e convida a uma reflexão que vá além do cinismo da circunstância: mais de 68% dos portugueses, deliberadamente, não votaram nestas europeias. O sol ou a chuva são argumentos tão válidos para o justificar quanto o futebol, os festivais ou qualquer outra frivolidade. Na sua grande maioria, os abstencionistas ignoraram e ignoram o chamamento cívico por preguiça, desleixo ou porque simplesmente não quiseram e não querem saber. Não querem saber da democracia. Ponto.
Sendo certo que perdem alguma da autoridade moral – nunca a legitimidade – para criticar os partidos e as instituições (nacionais e europeias), também os partidos (situação e oposição), mesmo os mais míopes, deveriam reconhecer os sinais de que estão a perder a autoridade para representarem as populações.
Este domingo, nos quartéis-generais das principais forças portuguesas, com mais ou menos champanhe à mistura, todos os líderes partidários e os respetivos cabeças-de-lista na corrida ao Parlamento Europeu alinharam no lero-lero de que a maior abstenção de sempre – tese que os números absolutos de votantes, aliás, contrariam – constituía a wake up call de que o sistema precisava.
E depois? Que ilações retiram dessa insofismável bofetada? Que ideias concretas apresentam para reformar os sistemas eleitoral e político? Que medidas acertam para assegurar mais transparência e lisura no exercício de cargos públicos? Quanto do seu capital de liderança investem na dignificação das funções em que investem alguns dos seus mais próximos? Que esforço dedicam ao combate ao aparelhismo, ao nepotismo e à corrupção? Que diligências tomam para reforçar o sentido cívico crítico dos cidadãos que para eles transferem, através do voto, o poder de decisão? Fazem muito poucochinho, arrisco. Para não dizer nada.
Quando António Costa delega a missão de responder ao furacão de endogamia que atravessou o Governo em Carlos César (pai do líder parlamentar do PS-Açores, marido da presidente da Casa da Autonomia, também naquele arquipélago, irmão de um assessor em vários governos socialistas, sogro da chefe de gabinete da secretária regional-adjunta para os Assuntos da Presidência e ainda tio de um quadro da Gebalis, a empresa que gere os bairros sociais em Lisboa), está a fazer mais pela revolta dos eleitores do que qualquer intervenção inflamada de André Ventura.
De igual modo, Rui Rio, ao incumbir José Silvano (o deputado que tinha uma colega de bancada a validar-lhe as presenças no Parlamento) de comentar as primeiras projeções da abstenção, encoraja as conclusões populistas de que os que ocupam o poder são todos iguais e de forma alguma mais recomendáveis do que o cidadão comum.
E doravante quem poderá levar Jerónimo de Sousa a sério quando rasgar as vestes pelos desmandos do setor financeiro, que todos pagamos, depois de Luís Filipe Vieira, um dos alegados campeões das dívidas a bancos, ter jantado com os candidatos da CDU no último dia de campanha eleitoral?
Analisando friamente o quadro que temos diante de nós, há que reconhecer um módico de sensatez aos portugueses. Perante o estado a que chegámos, ao invés de irem às urnas depositar votos irresponsáveis ou mesmo perigosos (como vemos acontecer Europa fora), ficam em casa ou evadem-se para os areais de norte a sul. Sempre é preferível queimarem a pele a derreterem a democracia.
A abstenção, convenhamos, tem essa virtude: apesar da fúria e da sobranceria com que a tentam castigar, lá vai sendo a padroeira de um relativo bom senso e a garantia de um mapa político minimamente salubre. Enquanto não tivermos mais do que esboços ou caricaturas de salvadores do regime – dos quais devemos desconfiar -, agradeçamos a liberdade de não votar que a Constituição garante a todos, especialmente aos alienados. Por mais assustador que nos pareça.
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