Há umas semanas, Jussie Smollett, ator da série Empire, denunciou uma agressão homofóbica e racista de que tinha sido vítima: dois homens brancos, com chapéus da campanha de Donald Trump, reconheceram-no como o “preto gay” da série Empire e, de seguida, agrediram-no violentamente.
A denúncia espalhou-se pelos noticiários e pelas redes sociais, e foi apresentada como exemplo da degeneração da América. Smollett associou mesmo a Administração Trump a este tipo de ataques, confirmando uma sociedade racista e homofóbica que, outrora escondida, é agora legitimada por Trump.
De pouco serviu que Trump tivesse condenado o ataque. Há tanta gente disposta a acreditar nessa tese, em responsabilizar um intratável político por atos alheios, que poucos verificaram a veracidade do caso, não fosse a verdade estragar uma boa história. Sucede que, na busca dos agressores, a polícia percebeu que a agressão teria mesmo sido encenada, que tinha sido o ator a pagar a duas pessoas para que o agredissem. E é agora Smollett que está a ser investigado. A confirmar-se, é mais um caso de falso crime de ódio, como o New York Times recordou.
Seria um erro aproveitar este e os outros casos para negar a existência de racismo e homofobia. As agressões reais existem e são em número esmagadoramente superior ao das simulações. Seria um profundo desrespeito pelas vítimas, como que fingindo que elas não existem, apagando-as, ignorando-as.
Mas não é possível ignorar que a natureza humana encontra espaço para a mentira, para a simulação, para a encenação, que há quem faça o pior para conseguir uma vantagem, para esconder um segredo, para superar um obstáculo, que se vitimize para lograr o que de outra forma não conseguiria.
Da vida pessoal à académica, da vida familiar à profissional, há casos sem fim de gente que mentiu ou simulou. Todos conhecemos casos desses, nem todos com as mesmas consequências, alguns visando apenas lutar por algo justo. Mas num tempo de mediatização extrema, uma falsa acusação pode ser uma condenação perpétua.
Excluir os denunciantes de um crime de ódio de um qualquer escrutínio, permitir que a sua palavra valha mais do que qualquer outra, permitir que algo na sua identidade ou condição possa bastar para a condição de vítima é, isso também, um erro e um profundo desrespeito pelas vítimas reais de crimes de ódio.
Claro que, estou consciente disso, ninguém defende tal exclusão, ninguém está propriamente apostado em criar um clima que possa favorecer a encenação, a mentira, a falsa acusação, o aproveitamento de uma condição.
Mas ele pode ser o resultado da pressão mediática que atemoriza quem se propõe duvidar, como se fazer perguntas equivalesse a legitimar o ódio, como se não aderir de imediato a uma versão significasse uma qualquer adesão à discriminação, como se pedir provas, obrigar alguém a explicar, fosse estar a favor do ódio.
Assim como pode ser o resultado de leis bem-intencionadas mas mal redigidas. Não podemos criar leis que de alguma forma possam ser instrumentalizadas, tergiversadas, dando ao denunciante um poder quase definitivo. E apontar para esse perigo não pode equivaler, de forma alguma, a uma espécie de desinteresse pelo sofrimento das vítimas.
Como pode igualmente ser a consequência de uma incontrolável vontade de provar um ponto político. A prática de um crime, de uma agressão, responsabiliza apenas quem o pratica, não o governo do momento, e não pode ser utilizada para o atacar, por mais detestável que este nos pareça. Se não nos passa pela cabeça culpar o governo que apoiamos pelos crimes praticados, mesmo que em seu nome, por terceiros, por que razão faz sentido culpar o governo que não apoiamos? Julgamo-nos com poder divino?
Parece-me importante chamar a atenção para estes pontos porque, nos tempos em que, e bem, estamos mais vigilantes à discriminação, à odiosa discriminação que tem por base a ideia de que não somos todos iguais, podemos cometer erros graves, com consequências para a vida de terceiros.
Este é um artigo que tinha para escrever há algum tempo, motivado então pelas supostas falsas acusações de assédio sexual no contexto do #MeToo, mas que fui adiando, quase sempre por recear ser mal interpretado. Esta é, aliás, outra das consequências desta pressão, a de afastar uma reflexão moderada. Mas ela tem de ser feita no momento em que redigimos leis que mudam a vida das pessoas, em que temos um mundo mediatizado ao segundo e que condena uma pessoa num segundo, em que nos deixamos levar pela necessidade de viver a indignação do momento.