Há precisamente 29 anos, caiu o Muro de Berlim. Não caiu de velho, esquecido, obsoleto. Caiu a golpes de martelo, nas mãos de cidadãos fartos da repressão comunista, da falta de liberdade, das prisões políticas, dos assassínios, da polícia que reduzia a intimidade a coisa nenhuma, dos agentes que perseguiam as pessoas, da censura, das filas intermináveis para comprar bens essenciais, dos anos de espera pela autorização para ter um carro ou uma casa maior, dos tiros de metralhadora que abatiam quem o quisesse saltar, do desespero de quem não podia ter ou pensar ou fazer o que lhe ditasse a consciência ou a vontade.
Qual a necessidade de escrever estas palavras, com esta dureza? Não é por demais evidente que aquele muro, da morte e da vergonha, escondia uma ditadura assassina? Não é claro como água que os milhões que fugiram da Alemanha de Leste, aquele paraíso comunista, vinham em busca da mais básica das liberdades? Para quê, então, começar um texto assim, adjetivando o comunismo, descrevendo os seus terrores, como se fosse uma proclamação ou uma novidade?
Começo este texto assim porque, ao contrário do que possa pensar-se, há muita gente na esquerda, mesmo nos partidos ditos moderados, mesmo cá em Portugal, que se acomoda num permanente e perigoso estado de seminegação sobre o legado do comunismo, sobre o legado da Alemanha de Leste, sobre o real significado daquele muro.
Não falo dos comunistas que temos por cá, assumidos, ortodoxos, no regime, no Parlamento, a falar de liberdade enquanto não condenam uma única morte perpetrada pelo seu favorito regime, a distribuir certificados de democracia enquanto descrevem a Alemanha de Leste e as suas notáveis realizações nos planos económico, social e cultural. Não falo dos comunistas que temos por cá, mas poderia falar, porque a eles pouco ou nada se cobra pelos seus apoios, amizades, alianças, com regimes assassinos. Fechamos os olhos, normalizamos, fingimos que não vemos.
Falo, isso sim, daquela esquerda que, apreciando a liberdade, procura sistematicamente um qualquer favorecimento moral do comunismo para o distinguir, por melhor, de todas as outras ditaduras. Falo, isso sim, daquela esquerda que, genuinamente lutando pela democracia, procura repetidamente dissociar a teoria comunista da sua concreta prática. Falo, isso sim, daquela esquerda que, nunca duvidando da superioridade do pluralismo, procura reiteradamente chamar a atenção para os avanços e realizações do comunismo. Falo desta esquerda, tão bem descrita por Bret Stephens no New York Times, que romantiza, idealiza, uma parcela, uma seletiva parcela, do comunismo, de tal forma que vota votos de pesar a ditadores e faz por celebrar a revolução bolchevique.
Num tempo em que os autoritarismos voltam a seduzir multidões, em que o valor da liberdade se mitiga ou relativiza em nome de outros valores supostamente maiores, é essencial celebrar a queda do Muro de Berlim enquanto vitória moral da liberdade sobre um sistema que escravizou milhões de pessoas, que condenou milhões de pessoas à fome, que prendeu e matou, e que por isso, basta isso, não deve merecer, não pode merecer, qualquer romantismo, qualquer idealismo, qualquer contemporização.
Todas as ditaduras são más, péssimas, inaceitáveis. Qualquer ditadura assassina sê-lo-á por maioria de razão. E aqueles que se entretêm, de alguma forma, ou por algum critério, com uma espécie de hierarquização de autoritarismos, prestam um péssimo serviço à causa da democracia liberal, tão atacada nos dias que correm.
É que num tempo, como o que aqui tenho descrito, de polarização moral, de escolhas binárias, de desertificação do espaço da moderação, a mera possibilidade de alguém, um lado, vir relativizar ou condescender com uma ditadura, oferece imediatamente espaço, legitimidade, para que outro, o outro lado, venha fazer o mesmo com outra ditadura qualquer. E eis como a uma acusação sobre o comunismo ou a Venezuela se responde com uma acusação sobre Pinochet, numa espiral acusatória sem sentido, como se não fosse sempre, em qualquer um dos casos, a liberdade a ser massacrada.
A uma ditadura responde-se com liberdade, não se responde com outra ditadura.
A uma ditadura responde-se com liberdade, não se responde com acusações de que há ditaduras piores. A uma ditadura responde-se com liberdade, não se responde com fugas para a frente citando ditadores do outro lado do espetro.
E se repito a palavra liberdade, se a evoco tanto, é porque, 29 anos passados da queda do muro, há quem pareça considerar que a liberdade é um valor relativo, negligenciável, que deve ceder perante ambiciosos programas sociais ou novos reptos de segurança.
Relativizar a liberdade é um passo demasiado grande rumo ao autoritarismo. E o Muro de Berlim devia lembrar-nos disso mesmo.
(Artigo publicado na VISÃO 1341, de 15 de novembro de 2018)