O discurso político deste tempo é cada vez mais binário, uma espécie de confronto cultural e civilizacional e identitário entre dois blocos, duas forças contraditórias, e que só consente um desfecho: a vitória de um sobre o outro, apagando-o, esmagando-o, tornando-o decorativo.
Esta é uma das consequências do discurso identitário, da afirmação da identidade como força motriz da política e da mobilização social, que começou no final dos anos
60 nos Estados Unidos da América e que já se impôs na Europa, da direita à esquerda, influenciando quer os partidos e líderes populistas quer os partidos e líderes habitualmente classificados como moderados. Convoco o discurso identitário para este tempo binário porque boa parte dos confrontos políticos do nosso tempo provém daí.
O discurso identitário centra-se, faz sobressair, naquilo que nos distingue do outro: aquilo que nos torna diferentes dos outros países, dos outros continentes, das outras culturas, dos outros seres humanos. Há por isso nesse discurso, que há muito se vem concretizando académica e politicamente, uma afirmação nem sempre subtil de uma legitimidade especial – senão superior, a da nossa identidade – sobre as outras, ou da circunstância de a nossa identidade apenas poder afirmar-se e manifestar-se livremente fazendo recuar as outras. Não é sempre assumido, eu sei, mas quando se exalta uma característica identitária, há sempre uma vocação excludente, que é muitas vezes silenciada, mas que é a consequência natural dessa exaltação.
Como notavelmente escreveu Tony Judt em Edge People, um dos artigos da série de memórias publicada na The New York Review of Books, ser nacional de um país, de um continente, partilhar de uma identidade étnica ou sexual, vir de um determinado estrato ou ter combatido uma particular batalha, está a deixar de ser apenas uma identidade, um sentimento tolerante de pertença, para se converter numa rejeição, numa reprovação, daqueles que ela exclui ou que nela não se incluem, uma espécie de cartão de acesso que só é atribuído a quem pertencer ou partilhar da mesma identidade.
Ora, em matéria de segmentação identitária, as possibilidades são infinitas. Haverá sempre novas minorias, novas margens, novos excluídos. O filão, para quem quer fazer discurso e política a partir daqui, é inesgotável e abarca todos os gostos e sensibilidades, da esquerda à direita. Mas é muito perigoso, porque divide, porque exclui, porque segrega, mesmo quando o seu inicial propósito é o oposto.
Nestas eleições europeias veremos, um pouco por toda a Europa, como este discurso fará caminho, dividindo, segmentando, fazendo por ignorar que a Europa é o resultado da confluência, não do combate ou da guerra, de todas as nossas identidades, contraditórias desde logo. A Europa, enquanto espaço de paz, solidariedade, justiça, construiu-se precisamente na interseção, não na eliminação ou na sobreposição.
É por isso um erro que os europeístas procurem responder a estes discursos identitários com a afirmação da uma identidade europeia, somando um erro a outros erros. Assim como é um erro, absurdo diria eu, legitimar a reação de Trump à política de segmentação identitária apadrinhada pela esquerda americana no final dos anos 60, e bem evidenciada por Tony Judt em Edge People ao listar algumas das cadeiras lecionadas nas universidades americanas: “Gender Studies”, “Women’s Studies”, “Asian-Pacific-American Studies”, e dezenas de outras. É outra vez responder a um erro com outro erro.
Há por isso a redução da política, do debate e das grandes questões às emoções, à irracionalidade, à chantagem emocional, dividindo as pessoas por identidades, sejam elas nacionais sejam elas sociais sejam elas étnicas ou religiosas ou sexuais, convocando um combate, um choque, de identidades. Há como que uma exigência de definição, de escolha de um campo, e a ameaça, nem sempre velada, de que quem não escolhe, quem não opta, merece ser excluído por ser fraco, complacente, colaboracionista: se não estás com Trump é porque estás com Michael Moore, se não estás com Michael Moore é porque estás com Trump, e assim por diante.
Um pouco por toda a Europa assistimos a este belicismo, a este contar de armas, que se opõe ao consenso, à interseção, e que o confunde com brandura, idiotia. Há uma redução substancial do espaço dos moderados e uma insuportável confusão entre moderação e falta de coragem, impondo uma opção binária a todos os agentes políticos, que aliás nega a humaníssima possibilidade de, na mesma pessoa, conviverem diferentes emoções, diferentes perspetivas, muitas vezes contraditórias, em permanente evolução. Recuso-me a responder a esta opção binária, a este maniqueísmo, porque dela não surgirá nada de bom.
(Artigo publicado na VISÃO 1331, de 6 de setembro de 2018)