A dicotomia esquerda/direita é hoje insuficiente para se organizar politicamente o eleitorado, e talvez por isso os partidos políticos, um pouco por toda a Europa, enfrentem dificuldades na atualização do seu discurso ou do seu posicionamento.
Desde logo, essa dicotomia tem sido atenuada pela realidade. O consenso sobre a superioridade do capitalismo, sobre a economia de mercado, estendeu-se da esquerda à direita. Com certeza que há diferenças, espaços para discussão, mas essas diferenças são cada vez mais acessórias ou de pormenor. Esquerda e direita estão de acordo sobre a necessidade de vivermos numa economia de mercado, no capitalismo. Não é de estranhar que muitas das caras que associamos à austeridade sejam de esquerda. O tão odiado Dijsselbloem, agora já menos odiado porque Centeno passou para o lado de lá, é socialista, é de esquerda, isto para dar só um exemplo.
Haverá exceções, com certeza, a este consenso, mas elas são raras e, em muitos casos, começam
a ser episódicas, porque a realidade tem muita força. Veja-se o Bloco de Esquerda que aprova orçamentos que deixam o investimento público em mínimos históricos, ou o Governo Syriza, que só entusiasmou as redações na oposição e de que agora não se houve falar, orientado em fazer da economia da Grécia uma economia competitiva de mercado. Estes exemplos confirmam a tendência, por mais folclore utilizado no seu disfarce, de consensualização, por convicção ou imposição da realidade, de que sem contas certas, credíveis, não é possível atrair investimento massivo.
Mas não é só. O eleitorado há muito deixou de conseguir rotular-se em dois grandes grupos, o da esquerda ou o da direita, coerentemente alinhados. Basta olhar à nossa volta, entre amigos e conhecidos, cada pessoa uma mescla nem sempre coerente de ideias e sentimentos, umas vezes concordando com partidos de esquerda, outras de direita.
Haverá espaço para os ferrenhos de um lado ou para os ideólogos de serviço do outro, mas o eleitorado há muito que vai fazendo as sínteses com que se sente confortável. Não é por acaso que os populistas vão buscar votos a todo o lado, mesmo ao que se supunha o oposto. Aconteceu com Trump ou Le Pen. Mas não são só os populistas, porque as variações eleitorais na Europa mostram uma flutuação que não encontraria explicação se o eleitorado se organizasse como os manuais de ciência política ordenam.
Há incoerência ideológica em muita gente, dirão. Incoerência que os partidos não devem aceitar, insistirão. Será? Ou será que essa dicotomia é que, sendo relevante, se tornou insuficiente para organizar o eleitorado? Será que essa dicotomia, uma vez alcançado um consenso ocidental pela economia de mercado, responde às questões do nosso tempo?
Tendo a considerar que a grande questão do nosso tempo, nesta vertigem de mudança que a globalização empresta, neste caminho de inovações, novidades, concorrência, nesta existência veloz, global, é sobretudo aquela que nos posiciona face a essa vertigem, a essa mudança.
Como reagir ao novo, ao estrangeiro, ao que nos desafia, ao que concorre, aos novos produtos e novos serviços e nova economia?
Como reagir à mudança, à velocidade? Essa talvez seja a questão do nosso tempo, e para a qual estão a organizar-se duas respostas. De um lado, os que aceitam a mudança, a concorrência, as novas empresas, os novos trabalhadores que procuram adaptar-se, aclimatar-se, aproveitar as vantagens, mitigando os custos de transição, convictos de que não há outra forma de subir na vida, de cumprir projetos de felicidade, senão entrar no comboio. De outro lado, os que receiam a mudança, que procuram preservar a realidade, protegendo empresas e pessoas de novas empresas e novos trabalhadores, fechando fronteiras, tentando atrasar o que possa perturbar a ordem estabelecida, sempre preferível.
É esta a dicotomia do nosso tempo, penso, que separa os que defendem uma sociedade aberta e uma sociedade fechada. E esta é uma divisão transversal. Temos direita que defende uma sociedade aberta e direita que defende uma sociedade fechada. O mesmo sucede com a esquerda. Talvez por isso haja tanto em comum nos populistas: por mais diferentes que sejam as suas histórias e inspirações, há muito a unir os populistas de esquerda ou os de direita, e por isso a sua atratividade de largo espetro. Da mesma forma, há muito a unir socialistas que aderem ao liberalismo e conservadores que há muito o adotaram, cientes de que só numa sociedade aberta poderemos crescer.
Não há nada de errado em continuar a falar de direita ou de esquerda. Eu sou de direita. O que se passa é que falar de direita ou de esquerda deixou de ser suficiente para se perceber as tendências sociais, o eleitorado, o que é sempre grave para partidos políticos que não prescindem de eleitores para existir.
(Artigo publicado na VISÃO 1301, de 8 de fevereiro de 2018)