Ninguém pode negar que o turismo, como qualquer outra atividade, gera uma série de externalidades negativas cujas causas e efeitos devem ser tratados da melhor maneira, procurando equilíbrios e tratando de minimizar os danos e inconvenientes que possa causar a terceiros, que os há e não são irrelevantes.
Mas isso nada tem que ver com a chamada turismofobia, um discurso ideológico que assenta na rejeição do turismo enquanto fenómeno global, que vê no turismo uma excrescência capitalista, a razão única de vários males, algo moralmente condenável porque explorador, castrador, violador das populações locais.
Se acham que exagero, pesquisem sobre o que andam a dizer os teóricos da turismofobia: o turismo é o novo colonialismo das classes dominantes, o instrumento através do qual se expulsam os trabalhadores dos seus lugares, a nova forma de explorar as classes desfavorecidas, o método pelo qual os mais ricos exploram os mais pobres, os locais.
Se acham que exagero, pesquisem sobre o que andam a fazer os teóricos da turismofobia: a vandalizar autocarros turísticos, carros de aluguer, apartamentos em renovação ou a perturbar pessoas, impedindo-as de seguir em paz o seu caminho e dar o seu mergulho no mar, ou a distribuir autocolantes ou panfletos chamando os turistas de intrusos, dizendo que os não querem lá.
O substrato da turismofobia, a nova causa da esquerda anticapitalista, é, pois, a luta de classes, o combate ideológico, e não a discussão, necessária, sobre os desafios, na gestão urbana ou na habitação, do turismo.
Convém dar alguma atenção a este discurso porque ele não só veio para ficar (basta ver o que está a passar-se em Espanha, é uma questão de segundos até chegar cá) mas é também um discurso eficaz, como aliás todos os que nascem do populismo: assenta num inimigo comum, que é externo e por isso não divide internamente, e que, sendo apresentado como causa única para vários problemas, deve ser combatido para que estes se resolvam.
E convém desmascarar o cinismo, o elitismo,
a xenofobia e o oportunismo desse discurso, que em nada contribui para a melhoria das nossas cidades ou da nossa qualidade de vida.
Cinismo, porque esse discurso só se aplica quando são outros a visitar o nosso país. Quando somos nós em viagem, de máquina fotográfica em punho, já não nos parece adequado que nos atirem ovos, que nos impeçam de ir tomar banho numa praia, que nos tratem com desprezo, que avaliem o nosso calçado, que nos acusem de exploradores capitalistas só porque somos turistas.
Elitista, porque esse discurso pretende recuar a um tempo em que o turismo era mais contido pela simples circunstância de ser mais caro. O turismo de massas, que anda na boca da turismofobia, não é outra coisa que não o turismo das classes trabalhadoras, que passaram a ter acesso a algo que antes era luxo reservado aos mais afortunados. Querem lá ver que as classes média e baixa não têm direito a ir de férias para uma grande capital europeia? De se passearem de chinelo no pé? De lá frequentarem os restaurantes mais em conta? Por outro lado, esse discurso é particularmente atrativo para a classe média-alta e alta, aquelas que, durante décadas, ignoraram os dormitórios de Lisboa, muito anteriores ao turismo, e feitos de gente que, lá está, não conseguia viver em Lisboa por lhes ser muito caro, e que agora se sentem muito prejudicadas porque há mochilas na Lapa, franceses no Príncipe Real e lojas baratas no Chiado.
Xenofobia, porque basta trocar a palavra “turistas” por “estrangeiros” para percebermos o perigo do discurso. Os turistas deixaram de ser pessoas, indivíduos, para serem amalgamados numa generalização discriminatória: os turistas isto e os turistas aquilo. Se não permitimos essas generalizações com etnias, orientações, religiões, porque aceitamos com turistas? E como se distinguem turistas de estrangeiros, daqueles que queremos acolher? Quando vejo um estrangeiro roubar o meu lugar no elétrico, como sei se ele é turista ou um estrangeiro a viver cá? E deixo de ser eu quando passo a fronteira, transformo-me num turista explorador?
Oportunista, porque este discurso não pretende uma reflexão sobre o turismo nem sobre a gestão urbana; ele pretende, isso sim, a instrumentalização dos desafios causados pelo turismo para proveitos ideológicos, numa confusão aterradora, mas que será tão melhor sucedida quanto mais facilmente nos deixarmos levar pelo desconforto que a alteração de quotidiano imposta pelo turismo nos causa.
(artigo publicado na VISÃO 1276, de 17 de agosto)